(…) Que era, então, a vida? Era calor, calor produzido por um fenómeno sem substância própria que conservava a forma; era uma febre da matéria que acompanhava o processo de incessante decomposição e reconstituição de moléculas de albumina de uma estrutura intimamente complicada e infinitamente engenhosa. Era o ser daquilo que na realidade não pode ser, que oscila numa doce e dolorosa suspensão sobre o limite do ser, nesse processo contínuo e febril de decomposição e renovação. Não era matéria nem era espírito. Era qualquer coisa entre os dois, um fenómeno sustentado pela matéria, como o arco-íris sobre a queda de água, e semelhante à chama. Mas, se bem que não dependesse da matéria, era sensual até à volúpia e até ao desgosto o impudor da natureza tornada irritável e sensível com respeito a si própria e à forma impúdica do ser. Era uma veleidade secreta e sensual no frio casto do universo, uma impureza intimamente voluptuosa composta de nutrição e de excreção, um sopro excretor de ácido carbónico e de substâncias nocivas de procedência e natureza desconhecidas. Era a vegetação, a desenvolução, a proliferação de uma coisa túmida, de água, de albumina, de sal e de gorduras a que se chamava carne e se convertia em forma, imagem e beleza, mas que era o princípio da sensualidade e do desejo. Porque essa forma, essa beleza não eram conduzidas pelo espírito, como nas obras da poesia e da música, nem tão pouco por uma substância neutra e absorvida pelo espírito, que encarnasse o espírito de uma maneira inocente, como o são a forma e a beleza das obras plásticas. Era, pelo contrário, conduzida e alaborada pela substância, despertada, de modo desconhecido, para a voluptuosidade, pela substância orgânica, pela própria matéria que vive decompondo-se, pela carne perfumada…
Agasalhado de lã e de peles destinadas a evitarem perda de calor, o jovem Hans Castorp repousava acima do vale cintilante, enquanto, nessa noite glacial, iluminada pelo brilho do astro cintilante lhe aparecia a imagem da vida. Flutuava diante dele, num lugar do espaço, longínquo e todavia próximo dos seus sentidos, esse corpo de uma brancura embaciada, exalando odores e nevoeiros, viscoso e nessa imagem havia, a pele com toda a impureza e imperfeição que lhe eram peculiares, com manchas, papilas, rugas, despigmentações, zonas granulosas ou escamosas, revestida de correntes e dos suaves torvelinhos da lanugem rudimentar. Distante do frio da matéria inanimada repousava na sua esfera vaporosa, descuidada, a cabeça coroada de alguma coisa fresca, córnea, pigmentada, que era um produto da sua pele, as mãos unidas por detrás da nuca, e sob as pálpebras baixas, olhava o espectador, com aqueles olhos que uma dobra da pele da pálpebra fazia aparecer oblíquos, com os lábios entreabertos, um tanto grossos, apoiada numa das pernas, de modo que o osso ilíaco que suportava o peso ressaltava nitidamente da carne, ao passo que o joelho da outra perna, levemente dobrado, roçava o interior da perna de apoio e o pé tocava o solo apenas com a ponta dos dedos. Estava ali de pé, voltava-se sorrindo, certa da sua graça, com os cotovelos luzidios apontando para a frente, na simetria das suas pernas gémeas.
À sombra das axilas, de exalação acre, correspondia, num triângulo místico, a obscuridade do sexo, assim como aos olhos a boca vermelha e epitelial, e às corolas rubras dos seios o umbigo vertical e alongado. Sob a acção de um órgão central e de nervos motores que partiam da coluna vertebral, o ventre e o tórax, a caverna pleuroperitonal, dilatava-se e retraía-se, o hálito esquentado e humedecido pelas mucosas do trato respiratório, escapava-se por entre os lábios, após ter combinado, nos alvéolos dos pulmões, o seu oxigénio com a hemoglobina do sangue, para possibilitar a respiração interna. (…)
in A Montanha Mágica, Thomas Mann.
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