Dedico este post aos militantes dos movimentos negros.
Eu não esperava apoio para o que venho dizendo há pelo menos
30 anos, assim como os colegas Peter Fry e Yvonne Maggie entre vários outros,
de Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, dois intelectuais reconhecidamente de
esquerda. Eles dois não citam nossos trabalhos, mas estão de pleno acordo com
eles. O texto completo está em Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, no 1, 2002, pp.
15-33.
"Em um campo mais próximo das realidades políticas, um
debate como o da “raça” e da identidade dá lugar a semelhantes intrusões etnocêntricas.
Uma representação histórica, surgida do fato de que a tradição americana calca,
de maneira arbitrária, a dicotomia entre brancos e negros em uma realidade
infinitamente mais complexa, pode até mesmo se impor em países em que os
princípios de visão e divisão, codificados ou práticos, das diferenças étnicas
são completamente diferentes e em que, como o Brasil, ainda eram considerados,
recentemente, como contraexemplos do “modelo americano”. A maior parte das
pesquisas recentes sobre a desigualdade etno-racial no Brasil, empreendidas por
americanos e latino-americanos formados nos Estados Unidos, esforçam-se em
provar que, contrariamente à imagem que os brasileiros têm de sua nação, o país
das “três tristes raças” (indígenas, negros descendentes dos escravos, brancos
oriundos da colonização e das vagas de imigração européias) não é menos
“racista” do que os outros; além disso, sobre esse capítulo, os brasileiros
“brancos” nada têm a invejar em relação aos primos norte-americanos. Ainda
pior, o racismo mascarado à brasileira seria, por definição, mais perverso, já
que dissimulado e negado. É o que pretende, em Orpheus and Power (1994), o
cientista político afro-americano Michael Hanchard: ao aplicar as categorias
raciais norte-americanas à situação brasileira, o autor erige a história
particular do Movimento em favor dos Direitos Civis como padrão universal da
luta dos grupos de cor oprimidos. Em vez de considerar a constituição da ordem
etno-racial brasileira em sua lógica própria, essas pesquisas contentam-se, na
maioria das vezes, em substituir, na sua totalidade, o mito nacional da
“democracia racial” (tal como é mencionada, por exemplo, na obra de Gilberto
Freyre, 1978), pelo mito segundo o qual todas as sociedades são “racistas”,
inclusive aquelas no seio das quais parece que, à primeira vista, as relações
“sociais” são menos distantes e hostis. De utensílio analítico, o conceito de
racismo torna-se um simples instrumento de acusação; sob pretexto de ciência,
acaba por se consolidar a lógica do processo (garantindo o sucesso de livraria,
na falta de um sucesso de estima).
Em um artigo clássico, publicado há trinta anos, o antropó-
logo Charles Wagley mostrava que a concepção da “raça” nas Amé- ricas admite
várias definições, segundo o peso atribuído à ascendência, à aparência física
(que não se limita à cor da pele) e ao status sociocultural (profissão,
montante da renda, diplomas, região de origem, etc.), em função da história das
relações e dos conflitos en- tre grupos nas diversas zonas (Wagley, 1965). Os
norte-americanos são os únicos a definir “raça” a partir somente da ascendência
e, exclusivamente, em relação aos afro-americanos: em Chicago, Los Angeles ou
Atlanta a pessoa é “negra” não pela cor da pele, mas pelo fato de ter um ou
vários parentes identificados como ne- gros, isto é, no termo da regressão,
como escravos. Os Estados Uni- dos constituem a única sociedade moderna a
aplicar a one-drop rule e o princípio de “hipodescendência”, segundo o qual os
filhos de uma união mista são, automaticamente, situados no grupo in- ferior
(aqui, os negros). No Brasil, a identidade racial define-se pela referência a
um continuum de “cor”, isto é, pela aplicação de um princípio flexível ou
impreciso que, levando em consideração traços físicos como a textura dos
cabelos, a forma dos lábios e do nariz e a posição de classe (principalmente, a
renda e a educação), engendram um grande número de categorias intermediárias
(mais de uma centena foram repertoriadas no censo de 1980) e não implicam
ostracização radical nem estigmatização sem remédio. Dão testemunho dessa
situação, por exemplo, os índices de segregação exibidos pelas cidades
brasileiras, nitidamente inferiores aos das metrópoles norte-americanas, bem
como a ausência virtual dessas duas formas tipicamente norte-americanas de
violência racial como são o linchamento e a motim urbano (Telles, 1995; Reid,
1992). Pelo contrário, nos Estados Unidos não existe categoria que, social e
legalmente, seja reconhecida como “mestiço” (Davis, 1991; Williamson, 1980).
Aí, temos a ver com uma divisão que se assemelha mais à das castas
definitivamente definidas e delimitadas (como prova, a taxa excepcionalmente
baixa de intercasamentos: menos de 2% das afro-americanas contraem uniões
“mistas”, em contraposição à metade, aproximadamente, das mulheres de origem
hispanizante e asiática que o fazem) que se tenta dissimular, submergindo-a
pela “globalização” no universo das visões diferenciantes.
Mas todos esses mecanismos que têm como efeito favorecer uma
verdadeira “globalização” das problemáticas americanas, dando, assim, razão, em
um aspecto, à crença americanocêntrica na “globalização” entendida,
simplesmente, como americanização do mundo ocidental e, aos poucos, de todo o
universo, não são su- ficientes para explicar a tendência do ponto de vista
americano, erudito ou semi-erudito, sobre o mundo, para se impor como pon- to
de vista universal, sobretudo quando se trata de questões tais como a da “raça”
em que a particularidade da situação americana é particularmente flagrante e está
particularmente longe de ser exemplar. Poder-se-ia ainda invocar,
evidentemente, o papel motor que desempenham as grandes fundações americanas de
filantropia e pesquisa na difusão da doxa racial norte-americana no seio do
campo universitário brasileiro, tanto no plano das representações, quanto das
práticas. Assim, a Fundação Rockefeller financia um programa sobre “Raça e
Etnicidade” na Universidade Federal do Rio de Janeiro, bem como o Centro de
Estudos Afro-Asiáticos (e sua revista Estudos Afro-Asiáticos) da Universidade
Candido Mendes, de maneira a favorecer o intercâmbio de pesquisadores e
estudantes. Para a obtenção de seu patrocínio, a Fundação impõe como condição
que as equipes de pesquisa obedeçam aos critérios de affirmative action à
maneira americana, o que levanta problemas espinhosos já que, como se viu, a
dicotomia branco/negro é de aplicação, no mínimo, arriscada na sociedade
brasileira."
Alba Zaluar
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