segunda-feira, 8 de julho de 2013

Poemas malditos, gozosos e devotos.




V

Para um Deus, que singular prazer.
Ser o dono de ossos, ser o dono de carnes
Ser o Senhor de um breve Nada: o homem:
Equação sinistra
Tentando parecença contigo, Executor.

O Senhor do meu canto, dizem? Sim.
Mas apenas enquanto dormes.
Enquanto dormes, eu tento meu destino.
Do teu sono
Depende meu verbo minha vida minha cabeça.

Dorme, inventado imprudente menino.
Dorme. Para que o poema aconteça.


XII

Estou sozinha se penso que tu existes.
Não tenho dados de ti, nem tenho tua vizinhança.
E igualmente sozinha se tu não existes.
De que me adiantam
Poemas ou narrativas buscando

Aquilo, que se não é, não existe
Ou se existe, então se esconde
Em sumidouros e cimos, nomenclaturas

Naquelas não evidências
Da matemática pura? É preciso conhecer
Com precisão para amar? Não te conheço.

Só sei que me desmereço se não sangro.
Só sei que fico afastada
De uns fios de conhecimento, se não tento.

Estou sozinha, meu Deus, se te penso.


XIX

Teus passos somem
Onde começam as armadilhas.
Curvo-me sobre a treva que me espia.

Ninguém ali. Nem humanos, nem feras.
De escuro e terra tua moradia?

Pegadas finas
Feitas a fogo e a espinho.
Teu passo queima se me aproximo.

Então me deito sobre as roseiras.
Hei de saber o amor à tua maneira.

Me queimo em sonhos, tocando estrelas.


XX

Move-te. Desperta.
Há homens à tua procura.
Há uma mulher, que sou eu.
A Terra mora na Via-Láctea
Eu moro à beira de estradas
Não sou pequena nem alta.

Sou muito pálida
Porque muito caminhei
Nas escurezas, no vício
De perseguir uns falares
Teus indícios.

Move-te Tua aliança com homens
Teu atar-se comigo
Tem muito de quebra e dessemelhança.
Muito de nós agonizam.
A terra toda. Há de ser quase
Brinquedo adivinhares
Onde reside o pó, onde reside o medo.

Não te demores.
Eu tenho nome: Poeira.

Move-te se te queres vivo.


XXI

Não te machuque a minha ausência, meu Deus,
Quando eu não mais estiver na Terra
Onde agora canto amor e heresia.
Outros hão de ferir e amar
Teu coração e corpo. Tuas bifrontes
Valias, mandarim e ovelha, soberba e timidez.

Não temas.
Meus pares e outros homens
Te farão viver destas duas voragens:
Matança e amanhecer, sangue e poesia.

Chora por mim. Pela poeira que fui
Serei, e sou agora. Pelo esquecimento
Que virá de ti e dos amigos.
Pelas palavras que te deram vida
E hoje me dão morte. Punhal, cegueira

Sorri, meu Deus, por mim. De cedro
De mil abelhas tu és. Cavalo-d’água
Rondando o ego. Sorri. Te amei sonâmbula
Esdrúxula, mas te amei inteira.



Hilda Hilst – Poemas malditos, gozosos e devotos.

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