A chegada às livrarias da Ficção Completa de Bruno Schulz (1892-1942), em tradução direta do polonês, renova o interesse por sua obra, que discute a preservação da ordem do mundo
18 de maio de 2012
UBIRATAN BRASIL – O Estado de S.Paulo
Mago que sabia transformar tudo em poesia, o polonês Bruno Schulz deixou uma obra curta mas intensa o suficiente para provocar a sensação de deslocamento e de falta de chão. As observações são de Henryk Siewierski, professor do Departamento de Teoria Literária da Universidade de Brasília, mestre em filologia polonesa e doutor pela Universidade de Cracóvia, responsável pela tradução de Ficção Completa, volume lançado pela Cosac Naify no qual estão reunidos Lojas de Canela e Sanatório Sob o Signo da Clepsidra, livros de contos editados pela Imago nos anos 1980, além de quatro textos curtos inéditos no Brasil.
Escritor absolutamente original, além de inspirado desenhista, Schulz consegue vencer, na visão de Siewierski, a comparação com Kafka, autor de quem se distancia pela exuberante prosa poética, que contrasta com o estilo menos ousado do ficcionista checo. Fiel à investigação da palavra, Schulz construiu uma obra nutrida por um triângulo de culturas, a polonesa, a judaica e a alemã, com as quais conviveu intimamente até ser morto por um oficial nazista, em 1942. Sobre a difícil, mas fascinante, tarefa de traduzir direto do polonês o conjunto de escrito, Siewierski conversou com o Sabático.
A ficção de Schulz é muito comparada à de Kafka, como se observa em muitos ensaios. Você considera justa essa comparação? Como distingui-los?
Essas comparações resultam mais da vontade de situar Bruno Schulz num determinado contexto histórico e geográfico do que de uma análise da sua ficção. Porque apesar de certas convergências temáticas, são os universos e estilos artísticos bem diferentes. A exuberância poética da ficção de Schulz e seu riquíssimo imaginário divergem do estilo protocolar da prosa kafkiana. Se procurarmos as convergências, elas podem ser encontradas sim, mas no plano que aproxima os escritores cujas obras têm caráter universal, pela intensidade com que enfrentam o mistério da vida humana e sua inserção no drama da história. No seu posfácio à primeira tradução do Processo em polonês, o próprio Schulz sinaliza em que poderia consistir o parentesco entre os dois, quando fala que as obras de Kafka são uma realidade autônoma que, além das alusões místicas e religiosas, tem a sua própria vida poética, polissêmica, impenetrável, que nenhuma interpretação pode esgotar.
Existe algum aspecto da ficção de Schulz que você acredita não ser suficientemente enfatizado?
A obra de Schulz é muito estudada, principalmente na Polônia, mas não só. Por exemplo, um dos mais significativos livros sobre ela foi publicado na Suécia, On the Margins of Reality – The Paradoxes of Representation in Bruno Schulz’s Fiction, de Krzysztof Stala. Seria difícil apontar um aspecto da sua prosa que até agora não tivesse despertado o interesse da crítica. A cada dois anos é organizado em Drohobycz, cidade de Schulz, hoje na Ucrânia, um festival e um congresso que reúne os tradutores e estudiosos da sua obra do mundo inteiro. Tive a oportunidade de participar dos dois últimos e observar como é amplo o leque temático e problemático dos estudos schulzianos. Para o congresso deste ano, que ocorrerá em setembro, os organizadores propuseram como tema o pensamento crítico e teórico de Schulz, sua “filosofia da literatura”, considerando este aspecto da sua obra ainda pouco estudado. A “teoria” ou “filosofia” da literatura, embora por ele mesmo nunca sistematizada, pode ser reconstruída, principalmente a partir da sua obra ficcional. Existem também outras fontes como seus ensaios críticos e cartas, sem esquecer dos desenhos que se correspondem com a prosa. Já foi apontada a familiaridade da sua concepção da literatura com a tradição do realismo mágico e/ou maravilhoso. Mas ela talvez merecesse ainda um olhar mais preciso.
O que o senhor diria do senso de humor de Schulz que não é imediatamente evidente, mas que está presente em sua prosa?
Sim, o senso de humor é sem dúvida um dos traços característicos da prosa de Schulz. O humor faz com que a prosa ganhe uma boa dose de poesia. Não foi Edmond Jabès que disse “o humor é poesia, o cômico é prosa”? Vejamos, por exemplo, o conto O Segundo Outono, em que é apresentada uma teoria climatológica do Pai, segundo a qual, o outono tardio, que se prolonga até ao inverno, é o resultado da contaminação do clima pela arte barroca, acumulada nos museus da região. Não deixa de ser uma tentativa de aproximação entre a ciência e a poesia, mas ao mesmo tempo sentimos aqui um piscar de olho do narrador a dizer que este casamento não pode ser tomado muito a sério. Schulz foi um observador atento da ciência contemporânea, e percebia como os físicos e os filósofos do novo século iam aos poucos desmanchar a visão coesa e familiar do universo, situando o homem numa realidade fragmentada e caótica. Mesmo sabendo que não há retorno ao passado, ele procurava, assim como os neognósticos do século 20, reconstruir, unir o que foi desintegrado pela ciência, unir de novo numa estrutura mítica, universal, homens, coisas e signos. Porém, seria difícil considerar Schulz mais um representante da gnose contemporânea, justamente pelo seu distanciamento da seriedade dessas ambições holísticas e pelo caráter não confessional de suas ideias. A sua opção pelo sentido e contra o absurdo parece ter a ver com a convicção de que para salvar o sentido da sua vida, o homem tem que se desprender da seriedade paralisante e mortífera das teorias, e com um senso de humor – que é a poesia -, com uma boa dose de ternura, tentar religar as partes separadas do seu universo. O humor de Schulz tem várias faces, coexiste com o patético e o burlesco, leva ao limite da paródia, é lírico, mas também interage com a ironia tão presente na sua obra. Numa carta ao colega Stanislaw Witkiewicz, ele diz que nos seus livros reina “um clima próprio dos bastidores, atrás da cena, onde os atores, tirando os seus trajes, morrem de rir ao pensarem no patético dos seus papéis”.
Quais são os perigos e as armadilhas da tradução de sua obra em português? Qual o risco de perda de um tradutor?
Mais do que as armadilhas semânticas que aparecem, porque elas sempre aparecem na tradução literária devido às diferenças culturais e linguísticas, neste caso específico foi preciso ficar especialmente atento ao ritmo. Os períodos sintáticos longos compostos de orações subordinadas, ramificadas, emaranhadas mantêm-se unidos não só pelos recursos da sintaxe, mas também pelo ritmo, pela musicalidade, e perdê-los seria perder a alma dessa prosa. Outro perigo pode vir da ousadia e da originalidade das construções metafóricas. Elas podem parecer muito estranhas para o leitor da tradução, parecer até um tropeço do tradutor e, ele, pode sucumbir à tentação de domesticar o que é estranho. Mas a graça da tradução não seria justamente levar o leitor a outras regiões do imaginário, mesmo as que cheirassem heresia, fazer com que ele esteja surpreendido assim como é surpreendido o leitor do original? Porém, quando a questão não é só surpreender, mas também encantar, como o faz o original, não há como recorrer aos métodos ou roteiros preestabelecidos, tem que entrar em jogo a intuição e aquilo que é chamado a arte de tradução. Os perigos não faltam, por isso também a dívida que o tradutor tem com os revisores, os verdadeiros parceiros de tradução.
O que seria mais duradouro e convincente da ficção de Schulz?
O mundo desta ficção, bem ancorado na tradição da mitologia e da cultura, se apresenta ao leitor como uma variante própria e inconfundível desta herança. Ela resulta da uma transfiguração dos modelos e poéticas existentes num processo de criação de uma mitologia pessoal, bastante divertida, poeticamente exuberante, repleta de humor e de ironia, mas em que está em jogo a preservação do sentido do mundo diante dos processos de sua desintegração. É o que talvez torne esta ficção duradoura e se não convincente, pelo menos sedutora.
É possível explicar o motivo de Schulz escrever em polonês e não em iídiche?
Sim, é possível, mas se ele escrevesse em iídiche, também não seria difícil explicar o motivo. Na cidade de Lvov, próxima a Drohobycz, havia um meio literário judaico muito dinâmico que antes da 2.ª Guerra produziu muitas obras em iídiche. Por exemplo, a escritora Debora Vogel, amiga de Schulz, escrevia em polonês e em iídiche, e até em hebraico. Havia também escritores judeus que escreviam só em polonês. Schulz participava desse meio, identificava-se com ele, publicava alguns dos seus textos nas revistas judaicas. Ele nasceu e até os 16 anos viveu no império austro-húngaro, numa cidade pequena, mas cosmopolita. A irradiação de Viena fazia com que ele fosse bem familiarizado com a literatura da língua alemã. Falava tão bem alemão como polonês. Mas a identificação com a língua polonesa deve ter sido mais forte, não só porque em sua casa paterna se falava essa língua, mas contavam também a iniciação na sua literatura e cultura e, depois, as intensas relações com o meio literário polonês. Escrever em polonês não o impedia de lembrar e parafrasear o que na tradição judaica era mais significativo e mais universal, como o culto do Livro, como a autoridade do Pai. O trabalho do artista era uma tarefa messiânica que dava continuidade ao Livro. A última obra de Schulz, que se perdeu na guerra e até hoje não foi encontrada, tinha o título de O Messias.
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