A gramática particular de Schulz é uma montagem de fragmentos de histórias eternas
18 de maio de 2012
LUIS S. KRAUSZ – O Estado SP
A publicação da obra completa de ficção de Bruno Schulz, que consiste das coletâneas de contos (que também podem ser lidas como romances) Sanatório sob o Signo da Clepsidra e Lojas de Canela, além de quatro contos avulsos, é um acontecimento da maior importância no cenário literário brasileiro. Venerado por escritores como Philip Roth, J.M. Coetzee, Cynthia Ozick e David Grossmann, que a ele dedicaram ensaios e reflexões, Schulz é um dos poucos nomes incontornáveis da literatura do século 20, ao lado de Franz Kafka, James Joyce e Marcel Proust. Mas sua estatura só foi reconhecida fora da Polônia postumamente. Para o pesar de todos que gostam de literatura, seu maior romance, intitulado O Messias, no qual trabalhava quando foi confinado pelos nazistas no gueto de sua cidade natal, Drohobycz (então Polônia, hoje Ucrânia), perdeu-se sob os escombros da 2.ª Guerra Mundial.
Sobreviveram, ainda, uns poucos ensaios, cartas e resenhas – que continuam inéditos em português.
No gueto de Drohobycz, Schulz foi protegido por um oficial alemão, para quem pintava afrescos – pintou, inclusive, um grande painel que decorava o clube da SS. E um rival desse oficial o matou, na rua, como ato de vingança. Seu prematuro desaparecimento representa, portanto, uma dupla tragédia: para além da vida humana que se perdeu da forma mais estúpida, o tiro disparado por este oficial também cravou uma lacuna profunda na literatura universal.
A prosa luminosa de Schulz partilha do poder inefável das antigas fórmulas encantatórias: as palavras, em sua obra de um lirismo absoluto, tornam-se signos de realidades esquecidas, numa poética de alta voltagem, concebida por alguém que partilhava de crenças cuja origem está nas antigas cosmogonias do Oriente Médio – como as cosmogonias bíblica e do antigo Egito – segundo as quais o mundo surgiu a partir da pronúncia de palavras.
Num breve ensaio intitulado A Mitificação da Realidade, Schulz postula que o ofício do escritor é reconduzir as palavras de volta ao seu sentido original, mítico. “A vida da palavra consiste no fato de que ela se espicha, em busca de milhares de associações, assim como o corpo esquartejado de uma serpente lendária cujos pedaços buscam um pelo outro, no escuro”, escreveu este autor de narrativas construídas a partir de pontas e de pedaços de mitos díspares, que criou uma bizarra mitologia do bricabraque, de um grande mercado de pulgas em que elementos das tradições bíblica, clássica, cristã e cabalística se confundem com episódios da vida cotidiana para desvelar realidades surpreendentes.
A mitologia particular de Schulz, então, é uma assemblage de fragmentos de histórias eternas – ou de pedaços de estátuas de deuses. Sua estética barroca, de demolição e de reagrupamento, lhe assegura o caráter sempre moderno, calcado na efemeridade dos significados, na desconstrução de todas as certezas e no movimento constante do princípio poético, representado entre uma forma e outra. O dinamismo inerente a cada palavra, que Schulz liberta, restituindo seu fulgor e vitalidade originais, transforma a leitura de suas obras num retorno ao intangível e ao misterioso, banidos do mundo numa época de amesquinhamento da consciência – que ele denomina nossa “era da pequenez” e à qual contrapõe a perdida “época da genialidade”.
Schulz nasceu há 120 anos, a 12 de julho de 1892, e sua Drohobycz natal era então uma cidade da Galícia, província do Império Austro-húngaro. Foi estudante universitário em Viena e filho de uma geração que acreditava na integração dos judeus no ecúmeno da monarquia habsburga – e que por isso mesmo rompera os laços com a tradição judaica. Forçado a abandonar os estudos de arquitetura por causa da 1.ª Guerra Mundial, tornou-se professor de desenho num colégio da cidade natal. Sua obra pictórica, hoje também bastante divulgada, retrata um universo sinistro cuja origem remonta ao imaginário de Goya.
Mesmo depois do desmembramento do império, em 1918, e da incorporação de Drohobycz à recém-criada república da Polônia, a cidade e boa parte de sua comunidade judaica continuaram como lugares cercados pela efígie do imperador Francisco José I. O império permaneceria na memória de sua família como signo de uma ordem inflexível, portadora de segurança, que foi rapidamente destruída no período entreguerras, tanto pelo desaparecimento das instituições monárquicas quanto pela descoberta de petróleo naquela região, que resultou num boom e colocou em xeque formas consagradas de vida e de sociabilidade. O crepúsculo da velha ordem coincidiu com a falência do comércio de seu pai, incapaz em adaptar-se às novas regras do jogo, precipitou a família na pobreza e levou o pai à loucura. Entrava em cena uma nova classe social, cegada por um projeto econômico tacanho e as consequências disso foram a vulgarização, a reificação e a banalização das relações sociais, bem como a transformação dos rituais solenes da velha classe mercantil num sistema de mero trânsito de mercadorias.
O desaparecimento do caráter na ordem social e sua substituição pelos simulacros vazios delineiam a perturbadora realidade subjacente às narrativas de Schulz onde, não por acaso, os manequins, as aves empalhadas e as figuras de cera são presenças constantes enquanto o pai que definha constela a impossibilidade do retorno das coisas à origem de suas existências. Os expedientes manipulativos que substituíram a dignidade das antigas instituições são por ele contrapostos aos restos de um universo desaparecido, onde cada atividade humana tinha um significado cósmico, isto é, em que cada trabalho era também um “estado”, uma atividade misteriosa, reservada a iniciados e, como tal, um ritual de comunhão com o invisível.
Na estética expressionista de Schulz, a dilatação do tempo e a dissecação dos mínimos gestos são recursos narrativos frequentes. Em suas mãos, um instante transforma-se em metáfora de uma estação inteira. É o que ocorre, por exemplo, no conto Outono, uma meditação sobre os presságios que pairam no ar quando a falência do verão já se torna irreversível, uma memória da era em que a vida transcorria em harmonia com as épocas do ano, e uma constatação da impossibilidade de se capturar o tempo. Em República dos Sonhos, outro dos contos inéditos no Brasil, Schulz contempla o território metafísico que é a fonte de sua poética – um universo cravado às margens do mundo, que é também uma terra prometida e uma cidade celestial, a partir da qual se relativizam todos os termos da realidade. O Cometa, que recorda a passagem do cometa de Halley, em 1910, se volta com ironia mordaz (como Lojas de Canela) sobre o universo da casa paterna, perpassado pelos encantos de uma civilização que não parece ter contradições com a natureza rebelde, mas que está prestes a sucumbir à era dos milagres da tecnologia e ao barateamento dos valores, quando “o condutor elétrico passa a abrir caminho ao coração das mulheres”. A Pátria, de estrutura bem mais tradicional do que as outras narrativas conhecidas de Schulz, tematiza o exílio dos egressos de mundos em extinção e antevê a náusea do assim chamado “mundo desenvolvido”: o protagonista, que subitamente ascende dos porões da nave social para as altas esferas, respira, até enjoar-se, a atmosfera sobrecarregada da prosperidade.
Assim, as diferenças entre a vida sob o signo do mito e a vida profana, sob o signo da moeda, estão no cerne das narrativas de Schulz. É sobre essas disparidades que ele constrói um dos episódios mais queridos de Lojas de Canela, ao comparar a mal-afamada Rua dos Crocodilos, com seus gestos vazios, seu caráter ambíguo e suas fachadas que são caricaturas de si mesmas, aos remanescentes do comércio secreto de um outro tempo. Já as províncias distantes, presas ao imobilismo da sociedade de raiz medieval, descritas em tom nostálgico em O Sanatório sob o Signo da Clepsidra, são signos de uma existência que espelha uma ordem superior, determinada pela experiência do sagrado e por hierarquias imutáveis.
A criação poética de Schulz, assim, é também um ritual de recolha dos escombros gerados pela marcha da história, e um retorno ao mito como forma de reparar aquilo que a humanidade arruinou com o sonho do progresso e a obsessão pelo futuro. Ao preservar o legado de um cosmo intocado pelas forças que acirraram a condição de alienação da humanidade, ele criou antídotos para a malaise de seu tempo – talvez também a do nosso tempo.
LUIS S. KRAUSZ É PROFESSOR DE LITERATURA HEBRAICA E JUDAICA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO E AUTOR DE RITUAIS CREPUSCULARES: JOSEPH ROTH E A NOSTALGIA AUSTRO-JUDIACA (EDUSP) E DESTERRO: MEMÓRIAS EM RUÍNAS (TORDESILHAS), ENTRE OUTROS TÍTULOS
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