terça-feira, 14 de dezembro de 2010

XXVI







Agora só me resta ouvir,

Para juntar o que oiço a este canto, para deixar que os sons contribuam para

ele.



Oiço bravuras de pássaros, o rumor do trigo que cresce, o crepitar das

chamas, o crepitar da lenha com que cozinho,

Oiço o som que amo, o som da voz humana,

Oiço todos os sons, juntos, combinados, fundidos ou seguindo-se,

Sons da cidade e sons fora da cidade, sons do dia e da noite,

Jovens conversando com quem gostam, o alto risco dos trabalhadores quando

almoçam,

Os irados sons da amizade quebrada, a voz débil dos doentes,

O juiz com as mãos agarradas à secretária, com os lábios pálidos ditando uma

sentença de morte,

As elevadas vozes dos estivadores descarregando os navios junto ao molhe,

o refrão dos que levantam a âncora,

As sirenes de alarme que tocam, o grito de fogo, o zumbido imediato dos

motores de dos carros dos bombeiros com as sirenes e as luzes de

cores,

O silvo do vapor, o sólido rodar da caravana de carroças que se aproximam,

A marcha lenta tocada à cabeça do grupo que avança aos pares,

(Vão a algum funeral, as bandeiras estão cobertas de musselina negra).



Oiço o violoncelo, (é o lamento de um coração jovem),

Oiço a corneta de chaves penetrando velozmente nos meus ouvidos,

Fazendo estremecer o meu ventre e o meu peito num doce espasmo.



Oiço o coro da ópera,

Ah, isto sim, é música - isto está em harmonia comigo.



Grandiosa e fresca como a criação enche-me a voz do tenor,

A órbita flexível da sua boca derrama-se e sacia-me.



Oiço a perfeita soprano (que vale o meu canto comparado com o seu?)

A orquestra conduz-me em círculos mais largos que os de Urano,

Desperta-me ardores de que nunca suspeitara,

Faz-me navegar, tocar águas com os pés nus, as ondas que os lambem

indolentemente,

O granizo bate-me com toda a fúria, perco o ânimo,

Mergulho na doce morfina, estrangulam-me os falsos sinais da morte,

Por fim, de novo me ergo para sentir o enigma dos enigmas,

Isso a que chamamos Ser.





Walt Whitman

in Canto de Mim Mesmo

Assírio & Alvim, 1999

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