terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O Temor da Morte

I



Que a morte me desmembre em outro, e eu fique

Ou o nada do nada ou o de tudo

E acabo enfim esta consciência oca

Que de existir me resta.



Sinto um tropel esfuziante e quente

De propósitos-sombras, e de impulsos

Transbordando do cálix da consciência

Para cima da vida...



II



....só um sentimento

De desejar eterna inquietação,

Ambição vaga de fechar os olhos

E vaga esp'rança de não mais abri-los.

Ânsia cansada de não mais viver;

Meu cérebro esvaído não lamenta

Nem sabe lamentar. Tumultuárias

Ideias mistas do meu ser antigo

E deste, surgem e desaparecem

Sem deixar rastos à compreensão.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...



Já deslumbradas, vãs, incoerentes

Amargas,[vagas] desorganizações

Que nem deixam sofrer. Vem pois, oh Morte!

Sinto-te os passos!Sinto-te! O teu seio

Deve ser suave e ouvir o teu coração

Como uma melodia estranha e vaga

Que enleva até ao sono e passa o sono.

Nada. Já nada [passa] - nada, nada...

Vai-te, Vida!



III



Ah, o horror de morrer!

E encontrar o mistério frente a frente

Sem poder evitá-lo, sem poder...



IV



Gela-me a ideia de que a morte seja

O encontrar o mistério face a face

E conhecê-lo. Por mais mal que seja

A vida e o mistério de a viver



(...)



Fernando Pessoa

in Poemas Dramáticos

Edições Ática

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