domingo, 12 de dezembro de 2010

A noite

A noite veio de dentro, começou a surgir do interior

de cada um dos objectos e a envolvê-los no seu halo negro.

Não tardou que as trevas irradiassem das nossas próprias

entranhas, quase que assobiavam ao cruzar-nos os poros.

Seriam umas duas ou três da tarde e nós sentíamo-las

crescendo a toda a nossa volta. Qualquer que fosse a pers-

pectiva, as trevas bifurcavam-na: daí a sensação de que,

apesar de a noite também se desprender das coisas, havia

nela algo de essencialmente humano, visceral. Como ins-

tantes exteriores que procurassem integrar-se na trama

do tempo, sucediam-se os relâmpagos: era a luz da tarde,

num estertor, a emergir intermitentemente à superfície das

coisas. Foi nessa altura que a visão se começou a fazer

pelas raízes. As imagens eram sugadas a partir do que

dentro de cada objecto ainda não se indiferenciara da luz

e, após complicadíssimos processos, imprimiam-se nos

olhos. Unidos aos relâmpagos, rompíamos então a custo

a treva nasalada.







Luís Miguel Nava. Vulcão I.Poesia Completa 1979-1994.Prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Organização e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações D. Quixote, 2002.

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