domingo, 12 de dezembro de 2010

Poema Conjectural

Etiquetas: Haiku, Matsuo Bashô



O doutor Francisco Laprida, assassinado no dia

22 de Setembro de 1829 pelos «montoneros» de

Aldao, pensa antes de morrer:

Zumbem as balas pela tarde última

Há vento e há cinzas sobre o vento,

dispersam-se o dia e a batalha

disforme, e a vitória é dos outros.

Triunfam os bárbaros, os gaúchos.

Eu, que estudei as leis e mais os cânones,

eu, Francisco Narciso de Laprida,

cuja voz declarou a independência

destas cruéis províncias, derrotado,

de sangue e de suor manchado o rosto,

sem esperança nem medo e perdido,

vou para Sul por arrabaldes últimos.

Como aquele capitão do Purgatórioque,

debandando a pé e ensanguentado

o plaino, a morte fez cegar, tombar

lá onde um rio obscuro perde o nome,

assim hei-de eu cair. Hoje é o termo.

A noite lateral de infindos pântanos

espia-me e demora-me. Oiço os cascos

da minha quente morte que me busca

com ginetes, com belfos e com lanças.

Eu que ansiei ser outro, ser um homem

de sentenças, de livros, de ditames,

sob o céu jazerei entre lameiros;

mas endeusa-me o peito inexplicável

um júbilo secreto. Entretanto enfim

o meu destino sul-americano.

A esta fatal tarde me levava

o labirinto múltiplo de passos

que meus dias teceram desde um dia

da meninice. Descobri por fim

a recôndita chave dos meus anos,

a sorte de Francisco de Laprida,

a letra que faltava, essa perfeita

forma que soube Deus desde o princípio.

No espelho desta noite recupero

o meu insuspeitado rosto eterno.

Vai-se fechar o círculo e aguardo.

Pisam meus pés a sombra dessas lanças

que me buscam. A mofa já da morte,

os ginetes, as crinas, os cavalos

adejam sobre mim...Já o primeiro

golpe me fende o peito, o duro ferro,

a faca interior sobre a garganta.

Jorge Luis Borges in Poemas Ecolhidos. Edição bilingue. Trad. e

selecção de Ruy Belo. Dom Quixote, 2003., pp.17/19

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