domingo, 12 de dezembro de 2010

Instruções para perceber três pinturas célebres

O Amor Sagrado e o Amor Profundo, por Ticiano









Esta detestável pintura representa um velório nas margens do

Jordão. Raras vezes pôde a estupidez de um pintor aludir com

maior baixeza à esperança do Mundo num Messias que brilha

pela ausência; ausente do quadro que o mundo é, brilha horri-

velmente no obsceno bocejo do sarcófago de mármore, enquanto

o anjo encarregado de proclamar a ressurreição da sua carne

patibular espera impávido que os desígnios se cumpram. Não

preciso explicar que o anjo é essa figura nua, prostituída na sua

gordurosa maravilhosa, que se disfarçou de Madalena, ironia das

ironias, no momento em que a verdadeira Madalena avança pela

estrada (onde cresce a venenosa blasfémia de dois coelhos).

A criança que enfia a mão no sepulcro é Lutero, isto é, o

Diabo. Diz-se que a figura vestida representa a Glória no mo-

mento de anunciar que todas as ambições inumanas cabem numa

bacia; mas está mal pintadas e faz pensar num artifício de jasmins

ou num relâmpago de trigo.









Julio Cortázar.Histórias de Cronópios e de Famas. Trad. Alfacinha da Silva. Editorial Estampa, Lisboa, 1999, 2ª ed., p.17

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