O Amor Sagrado e o Amor Profundo, por Ticiano
Esta detestável pintura representa um velório nas margens do
Jordão. Raras vezes pôde a estupidez de um pintor aludir com
maior baixeza à esperança do Mundo num Messias que brilha
pela ausência; ausente do quadro que o mundo é, brilha horri-
velmente no obsceno bocejo do sarcófago de mármore, enquanto
o anjo encarregado de proclamar a ressurreição da sua carne
patibular espera impávido que os desígnios se cumpram. Não
preciso explicar que o anjo é essa figura nua, prostituída na sua
gordurosa maravilhosa, que se disfarçou de Madalena, ironia das
ironias, no momento em que a verdadeira Madalena avança pela
estrada (onde cresce a venenosa blasfémia de dois coelhos).
A criança que enfia a mão no sepulcro é Lutero, isto é, o
Diabo. Diz-se que a figura vestida representa a Glória no mo-
mento de anunciar que todas as ambições inumanas cabem numa
bacia; mas está mal pintadas e faz pensar num artifício de jasmins
ou num relâmpago de trigo.
Julio Cortázar.Histórias de Cronópios e de Famas. Trad. Alfacinha da Silva. Editorial Estampa, Lisboa, 1999, 2ª ed., p.17
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