Wales, Great Britain, 1961
sábado, 30 de novembro de 2013
Telefonaste para lembrar-me
de eu haver dito que o Nobel
devia ser recusado, porque
nem sempre é dado ao melhor.
Forgive me, aceito-o por medo.
Uma recompensa conspícua não ofende
ao contrário preserva das insídias
da desvalorização. Não esperes
um gesto de coragem de um velhote.
Os reconhecimentos chegam
sempre com atraso, quando parece
inútil até mesmo um título cobiçado.
O tempo dos eventos
é diverso do nosso.
(Eugenio Montale - Diário Póstumo)
Não tenho pressa. Pressa de quê?
Não tenho pressa. Pressa de quê?
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salta por cima da sombra.
Não; não tenho pressa.
Se estendo o braço, chego exatamente onde o meu braço chega
-
Nem um centímetro mais longe.
Toco só onde toco, não onde penso.
Só me posso sentar onde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente
verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra
cousa,
E somos vadios do nosso corpo.
- Alberto Caeiro [Heterônimo de Fernando Pessoa], In Poemas
Inconjuntos - In Poesia, Assírio e Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard
Zenith, 2001
Confissão
Que esta minha paz e este meu amado silêncio
Não iludam a ninguém
Não é a paz de uma cidade bombardeada e deserta
Nem tampouco a paz compulsória dos cemitérios
Acho-me relativamente feliz
Porque nada de exterior me acontece...
Mas,
Em mim, na minha alma,
Pressinto que vou ter um terremoto!
- Mario Quintana, in: Velório sem defunto, 1990.
O ofício de viver
O ofício de viver
Vou sempre além de mim mesmo
em teu dorso, ó verso.
O que não sou nasce em mim
e, máscara mais verdadeira
do que o rosto, toma conta
de meus símbolos terrestres.
Imaginação! teu véu
envolve humildes objetos
que na sombra resplandecem.
Vestíbulo do informulável,
poesia, és como a carne,
atrás de ti é que existes.
E as palavras são moedas.
Com elas, tudo compramos,
a árvore que nasce no espaço
e o mar que não escutamos,
formas tangíveis de um corpo
e a terra em que pisamos.
Se inventar é o meu destino,
invento e invento-me. Canto.
- Lêdo Ivo, in "Poesia Completa", 2004.
http://www.elfikurten.com.br/2013/04/ledo-ivo-uma-aventura-poetica.html
sexta-feira, 29 de novembro de 2013
quinta-feira, 28 de novembro de 2013
Talves poesia
Poemas e cores do sertão e do agreste
Contrastes de verticalidade gótica e de volúpias rasteiras,
rudezas do alto sertão e do agreste,
maciços de catingueiras
salpicadas
nos tempos de chuva de vermelhos
que são ao sol como pintas de sangue fresco,
e de amarelos vivos,
de roxos litúrgicos.
No verão chupadas pelo sol de todo esse sangue e de toda
[essa cor,
quase reduzidas
aos ossos dos cardos.
Paisagem animada de tantos verdes
tantos vermelhos, tantos roxos, tantos amarelos
em tufos, cachos, corolas e folhas
como os cachos rubros em que esplende a ibirapitanga e
[arde o mandacaru,
como as formas verdadeiramente heráldicas em que se
[ouriçam os quipás,
como as folhas em que se abrem os mamoeiros
e as manchas violáceas das coroas-de-frade.
- Gilberto Freyre, do livro “Talves poesia”, 1962.
http://www.elfikurten.com.br/2012/02/gilberto-freyre-o-mestre-de-apipucos.html
"A educação corrente e formal, simplificadora das
realidades do mundo, subordinada à lógica dos negócios, subserviente às noções
de sucesso, ensina um humanismo sem coragem, mais destinado a ser um corpo de
doutrina independente do mundo real que nos cerca, condenado a ser um humanismo
silente, ultrapassado, incapaz de atingir uma visão sintética das coisas que
existem, quando o humanismo verdadeiro tem de ser constantemente renovado, para
não ser conformista e poder dar resposta às aspirações efetivas da sociedade,
necessárias ao trabalho permanente de recomposição do homem livre, para que ele
se ponha à altura do seu tempo histórico."
- Milton Santos.
quarta-feira, 27 de novembro de 2013
Vietnã
Wislawa Szymborska
Mulher, como você se chama? - Nao sei.
Quando voçê nasceu, de onde voçê vem? - Nao sei.
Para que cavou uma toca na terra?- Nao sei.
Desde quando está aqui escondida?- Nao sei.
Por que mordeu meu dedo anular?- Nao sei.
Nao saber que nao te vamos fazer nenhum mal? - Nao sei.
De que lado voçê está? - Nao sei.
É a guerra, voçê tem que escolher.- Nao sei.
Tua aldeia ainda existe? - Nao sei.
Esses sao teus filhos? -Sao.
Traduçao: Regina Przybycien.
Los Adioses
"El sabía, porque yo se lo había dicho. Todos, los
sanos y los otros, los que estaban de paso en el pueblo y los que aún podían
convencerse de que estaban de paso, todos los que se dejaban sorprender por las
fiestas como por un aguacero en descampado, los que habitan los hoteles y las
monótonas casitas rojiblancas, todos adoptaban desde el atardecer de ambas
vísperas, una forma de locura especial y tolerable. Y siempre las fechas les
caían encima como una sorpresa; aunque hicieran planes y cálculos, aunque
contaran los días, aunque previeran lo que iban a sentir y lucharan para evitar
esta sensación o se abandonaran al deseo de anticipar e irla fortaleciendo para
asegurarle una mayor potencia de crueldad. Tenían entonces algo de animales,
perros, caballos, mezclaban una dócil aceptación de su destino y circunstancia
con rebeldías y espantos, con mentirosas y salvajes intenciones de fuga.
(...)
Sabía que iban a estar gimiendo sin sonido bajo la música,
los gritos, las detonaciones, teniendo sus orejas hacia supuestos llamados, de
machos y hembras, de supuestas almas afines que se alzarían al otro lado de la
selva, en Buenos Aires, o en Rosario, en cualquier nombre y distancia." In
Los Adioses, JUAN CARLOS ONETTI, p. 58-59.
AINDA PENSO NAQUELA NOITE
pássaros se revoltam
o gavião ataca
Afonsina atravessa o mar
um pouco antes
ao anoitecer
Violeta dispara sua arma
a quietude se instala
em La Reina
mas os poetas não desistem
apesar do tiro no peito
apesar do cheiro de gás
apesar do mergulho
apesar do tamanho da queda
os pássaros ainda sobrevoam
o mundo
e o silêncio pesa
ao amanhecer
Lalo Arias
FUGA
Poema de Lera Auerbach
Estou coreografando
meu próprio descontentamento.
Os dias se acumulam
em vaidade seca e frugal,
complicando manobras
de mãos sempre em movimento,
pêndulo oscilante
do suicídio ao sacrifício,
do êxtase à gratidão
em todos os tons de cinza.
A fuga se acelera:
ainda lembro seu tema principal,
mas seu contra-sujeito me deixa
sem ar.
Esse contraponto é venenoso
em maiores quantidades,
e não tenho um antídoto
para essa música infecciosa.
Minha febre está subindo.
As pontas quentes dos meus dedos tocam
o corpo intocável da fuga —
ela não pode ser totalmente capturada
nas redes de notas e compassos,
ela foge, selvagem,
pelo riso indomesticável
de deuses e demônios, quem quer
que esteja vigiando as portas do som,
as quimeras lamuriantes
do céu e do inferno.
Olho para a chama negra.
Logo ela consumirá meus dias,
já congela meu coração,
e toma tudo o que ainda chamo de “meu”,
transformando em colheita seca
que queima — oh, tão intensamente —
até que já não seja
até que seja só cinzas,
até que retorne ao pó,
vire aquela nota silenciosa
depois do fim, mas logo
antes do aplauso
enquanto as mãos do maestro ainda seguram
as asas de uma frase musical
e a audiência segura a respiração
como que para não perturbar a mágica;
exceto por ninguém estar esperando
por mim do outro lado, não há
nenhum aplauso ou cumprimento, nem bravi,
mas apenas aquele momento de infinita
solidão
quando o som morre.
Tradução de Sofia Mariutti.
Sirin and Alkonost (the Birds of Joy and Sorrow)
Sirin is a mythological creature of Russian
legends, with the head and chest of a beautiful woman and the body of a bird
(usually an owl). According to myth, the Sirins lived "in Indian
lands" near Eden or around the Euphrates River. These half-women
half-birds are directly based on the Greek
myths and later folklore about sirens. They were usually portrayed wearing a
crown or with a nimbus. Sirins sang beautiful songs to the saints, foretelling
future joys. For mortals, however, the birds were dangerous. Men who heard them
would forget everything on earth, follow them, and ultimately die. People would
attempt to save themselves from Sirins by shooting cannons, ringing bells and
making other loud noises to scare the bird off. Later (17-18th century), the
image of Sirins changed and they started to symbolize world harmony (as they
live near paradise). People in those times believed only really happy people
could hear a Sirin, while only very few could see one because she is as fast
and difficult to catch as human happiness. She symbolizes eternal joy and
heavenly happiness. The legend of Sirin might have been introduced to Kievan
Rus by Persian merchants in the 8th-9th century. In the cities of Chersonesos
and Kiev they are often found on pottery, golden pendants, even on the borders
of Gospel books of tenth-twelfth centuries. Pomors often depicted Sirins on the
illustrations in the Book of Genesis as birds sitting in paradise trees.
The Alkonost is, according to Russian mythos and folklore, a creature with the body of a bird but the head of a beautiful woman. It makes sounds that are amazingly beautiful, and those who hear these sounds forget everything they know and want nothing more ever again. She lives in the underworld with her counterpart the sirin. The alkonost lays her eggs on a beach and then rolls them into the sea. When the alkonost's eggs hatch, a thunderstorm sets in and the sea becomes so rough that it is untravelable. The name of the alkonost came from a Greek demigoddess whose name was Alcyone. In Greek mythology, Alcyone was transformed by the gods into a kingfisher.
The Alkonost is, according to Russian mythos and folklore, a creature with the body of a bird but the head of a beautiful woman. It makes sounds that are amazingly beautiful, and those who hear these sounds forget everything they know and want nothing more ever again. She lives in the underworld with her counterpart the sirin. The alkonost lays her eggs on a beach and then rolls them into the sea. When the alkonost's eggs hatch, a thunderstorm sets in and the sea becomes so rough that it is untravelable. The name of the alkonost came from a Greek demigoddess whose name was Alcyone. In Greek mythology, Alcyone was transformed by the gods into a kingfisher.
segunda-feira, 25 de novembro de 2013
La turba turba
La tumba turba
La turba tumba
La tumba tumba
¿No oyen, hermanitos,
al viento amarillo
retumbar como cañones
sus corazones de miedo
tambores negros
entre las raíces de la tierra?
La tumba tumba
La turba tumba
La tumba turba
La turba turba
¿A quién le toca tocar ahora
este cuero cansado
oveja solitaria que salta
el mismo alambrado
viene y va y nadie puede
ya dormir ni morirse del todo?
La turba turba
La tumba tumba
Turba la tumba turbia
la turbia turba
Gustavo Caso Rosendi
“A beleza ainda me emociona muito. Não só a beleza física,
mas a beleza natural. Hoje, com quase oitenta e cinco anos, tenho uma visão da
natureza muito mais rica do que eu tinha quando era jovem. Eu reparava mais em
certas formas de beleza. Mas, hoje, a natureza, para mim, é um repertório
surpreendente de coisas magníficas e coisas belas. Contemplar o vôo do pássaro,
contemplar uma pomba ou uma rolinha que pousa na minha janela... Fico estático
vendo a maravilha que é aquele bichinho que voou para cima de mim, à procura de
comida ou de nem sei o quê. A inter-relação dos seres vivos e a integração dos
seres vivos no meio natural, para mim, é uma coisa que considero sublime.”
- Carlos Drummond de Andrade, em trecho da última entrevista,
publicada no suplemento Idéias - Jornal do Brasil, de 22 agos/1987.
As musas cegas
IV
É preciso falar baixo no sítio da primavera, junto
à terra nocturna. Junto à terra transfigurada.
Tudo ouve as minhas palavras talvez irremediáveis..
Infatigável perfume se acrescenta nos jacintos, fogo
sem fim circunda suas raízes leves.
É preciso não acordar do seu ofício a luz que inclina
os meus espinhos frios, a lua que inclina
meu sangue ligado e o sangue da terra nocturna.
Agora a primavera trabalha nas galerias mais antigas,
bate os seus martelos contra um milhão de estrelas.
É uma coisa estupenda a primavera que trabalha
nas caveiras dos cavalos enterrados.
E os cavalos ressuscitam pela noite adiante.
Inspiro-me na primavera com suas grutas de água
atenta, e amo a loucura -
a cabeça gelada sobre a corrente pura do terror.
Tenho medo de erguer a voz mais alto
que o meu coração, onde uma candeia
concentra um grande silêncio.
A primavera é algo prodigioso para o meu desbarato.
Que a tristeza me ajude, que me ajudem
os dentes da minha boca, os dedos das minhas mãos,
todos os mortos, todos os que amam
entre sangue no mundo, entre as águas das noites eternas.
Sinto os ossos ascenderem às cobras da cabeça -
e a obra está nas mãos.
Terra, terra preenchida. Enquanto os outros dormem,
fundo-me no verbo interior da primavera
como o vermelho se funde na flor futura.
Tu cantavas, sangue, a torrente translúcida da morte.
Cantavas o que já se não quebra com o uso
das vozes. Porque tu eras a minha
água salgada.
Fecho os olhos para ver como as acácias se iluminam
e a rutilação ascende pelas veias.
Tomo entre meus dedos a soturna amplidão dos mortos.
Primavera, como cresces.
Desespero ou alegria, como correm
nos membros reaparecidos.
Dizer devagar na humidade da carne, evocar
tuas colinas de sal, mistério.
Tudo em volta da primavera e da noite
com uma porta no coração para passar
num tremendo silêncio.
Ressuscitar uma vez com a cara extrema
junto a líquenes inocentes.
Entre os meses saber de um só que pede
a mudez aterradora.
A primavera cresce num núcleo de ideias, as cabras
evaporam-se, reaparecem em espírito
mastigando giestas. Primavera é uma palavra
numa língua demasiado estrangeira.
Uma coisa enorme, sem música.
Falo tão devagar que mal distingo
a noite sobre a terra
da minha garganta onde os animais passam
lentamente inspirados.
Só encosto a testa ao oculto fogo dos nomes,
e o sangue alimenta a loucura
devagar, devagar - como quem ressuscita.
Herberto Helder
Fotografía de la muchedumbre
En la fotografía de la muchedumbre
mi cabeza es la séptima de la orilla,
o tal vez la cuarta a la izquierda,
o la veinte desde abajo;
mi cabeza no sé cuál,
ya no una, no única,
ya parecida a las parecidas,
ni femenina, ni masculina,
las señales que me hace
son ningunos rasgos personales;
quizás la ve el Espíritu del Tiempo,
pero no la mira;
mi cabeza estadística
que consume acero y cables
tranquilísima, globalísimamente;
sin la vergüenza de ser una cualquiera,
sin la desesperación de ser cambiable;
como si no la tuviera en absoluto
a mi manera y por separado;
como si se hubiera desenterrado un cementerio
lleno de anónimos cráneos
en un aceptable estado de conservación
a pesar de su mortalidad;
como si ya hubiera estado allá
-mi cabeza, una cualquiera, ajena-
donde, si recuerda algo,
sea tal vez el profundo futuro.
De "Si acaso" 1978
Versión de Abel A. Murcia
La habitación del suicida
Seguramente crees que la habitación estaba vacía.
Pues no. Había tres sillas bien firmes.
Una lámpara buena contra la oscuridad.
Un escritorio, en el escritorio una cartera, periódicos.
Un buda despreocupado. Un cristo pensativo.
Siete elefantes para la buena suerte y en el cajón una
agenda.
¿Crees que no estaban en ella nuestras direcciones?
Seguramente crees que no había libros, cuadros ni discos.
Pues sí. Había una reanimante trompeta en unas manos negras.
Saskia con una flor cordial.
Alegría, divina chispa.
Odiseo sobre el estante durmiendo un sueño reparador
tras las fatigas del canto quinto.
Moralistas,
apellidos estampados con sílabas doradas
sobre lomos bellamente curtidos.
Los políticos justo al lado se mantenían erguidos.
No parecía que de esta habitación no hubiera salida,
al menos por la puerta,
o que no tuviera alguna perspectiva, al menos desde la
ventana.
Las gafas para ver a lo lejos estaban en el alféizar.
Zumbaba una mosca, o sea que aún vivía.
Seguramente crees que cuando menos la carta algo aclaraba.
Y si yo te dijera que no había ninguna carta.
Tantos de nosotros, amigos, y todos cupimos
en un sobre vacío apoyado en un vaso.
Wislawa Szymborska
sábado, 23 de novembro de 2013
Não há literatura sem memória
"Não há literatura sem memória. A pátria de todo
escritor é a infância. Acho que o momento da infância e da juventude é
privilegiado para quem quer escrever. É onde a memória sedimenta coisas
importantes: as grandes felicidades, os traumas, as alegrias e também as
decepções. Certamente não estou falando da lembrança pontual e nítida. O que
interessa é a memória desfalcada, a memória não lembrada. Isso é bom para a
literatura porque aí é que se instala o espaço da invenção."
- Milton Hatoum - in: “Não há literatura sem memória”.
[Entrevista concedida a Luiz Henrique Gurgel]. Na ponta do Lápis. Ano IV, n. 8.
AGWM Editora e Produções editoriais, p. 2-4, Junho/2008, p. 4.
A Traição das Elegantes
(...)
Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que
não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que
explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo
menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena
palavra: adeus.
A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra
perdido numa tarde de domingo.
- Rubem Braga, do livro "A Traição das Elegantes",
Editora Sabiá – Rio de Janeiro, 1967, pág. 83.
Lavoura arcaica
“... rico só é o
homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se
dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o
seu curso, não irritando sua corrente, estando aberto para o seu fluxo,
brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira; o
equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com
acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não
corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é.”
- Raduan Nassar, in: Lavoura arcaica, 1975.
http://www.elfikurten.com.br/2013/05/raduan-nassar-tradicao-e-vanguarda.html
Corren buenos tiempos,
buenos tiempos para la bandada
de los que se amoldan a todo
con tal que no les falte de nada.
Tiempos fabulosos,
fabulosos para sacar tajada
de desastres consentidos
y catástrofes provocadas.
Tiempos como nunca
para la chapuza,
el crimen impune
y la caza de brujas.
Corren buenos tiempos,
buenos tiempos para equilibristas,
para prestidigitadores
y para sadomasoquistas.
Y silenciosa
la mayoría,
aguantando el chaparrón
al pie de un cañón
de papel maché,
come el pan nuestro
de cada día
con un culo así
contra la pared.
Llorando en el mar
viéndolas venir,
viéndolas pasar,
pasar,
pasar.
Corren buenos tiempos,
buenos tiempos para esos caballeros
locos por salvarnos la vida
a costa de cortarnos el cuello.
Tiempos fabulosos
fabulosos para plañideras,
charlatanes visionarios
y vírgenes milagreras.
Tiempos como nunca
para echarle morro
o sacar coraje
y pedir socorro.
Corren buenos tiempos,
buenos tiempos preferentemente
para los de toda la vida
para los mismos de siempre.
Para los mismos de siempre.
Siempre.
Siempre.
J. M Serrat
Quem é Lêdo Ivo?
"- É muito difícil saber isso. Você é você e você é
aquilo que você pensa que é. E você é o que os outros pensam que você é. Então,
você se faz com esta dupla imagem: uma real e outra imaginária. Embora ninguém
saiba onde começa a realidade ou termina o imaginário. O filósofo alemão
Schopenhauer (1788-1860) diz que o mundo é a representação que a pessoa tem
dele. Este é o problema. Vivemos hoje numa época de incertezas. Guerras
absurdas. Fome. Crises terríveis. Retrocessos. Um mundo cada vez mais
kafkaniano como se a própria vida real -a vida acordada- fosse o pesadelo para
milhões de pessoas. Talvez o próprio mundo em que vivamos seja hoje um mundo
virtual no qual a gente não tem como sair. Esta é a minha visão. E dentro deste
mundo eu não sei o que sou, nem quem sou."
- Lêdo Ivo, em 'entrevista' a Jairo Máximo/EuroLantinNews.
http://www.elfikurten.com.br/2013/04/ledo-ivo-uma-aventura-poetica.html
"Desde seus primórdios, as cidades surgiram nos lugares
onde existe produção excedente, aquela que vai além das necessidades de
subsistência de uma população. A urbanização, portanto, sempre foi um fenômeno
de classe, uma vez que o controle sobre o uso dessa sobreprodução sempre ficou
tipicamente na mão de poucos. Sob o capitalismo, emergiu uma conexão íntima
entre o desenvolvimento do sistema e a urbanização."
David Harvey no Blog da Boitempo. Amanhã é sua última
conferência no Rio de Janeiro. Ele estará em Florianópolis no dia 25 e em São
Paulo no dia 26! Saiba mais: http://goo.gl/TytDhj
quinta-feira, 21 de novembro de 2013
Versos escritos n'água
Os poucos versos que aí vão,
Em lugar de outros é que os ponho.
Tu que me lês, deixo ao teu sonho
Imaginar como serão.
Neles porás tua tristeza
Ou bem teu júbilo, e, talvez,
Lhes acharás, tu que me lês,
Alguma sombra de beleza...
Quem os ouviu não os amou.
Meus pobres versos comovidos!
Por isso fiquem esquecidos
Onde o mau vento os atirou.
- Manuel Bandeira, em "A Cinza das Horas", 1917.
Há sol na rua
Há sol na rua
Gosto do sol mas não da rua
Portanto fico em casa
Esperando que o mundo venha
Com suas torres douradas
E suas cascatas brancas
Com suas vozes de lágrimas
E as canções das pessoas alegres
Ou pagas para cantar
E à noitinha chega um momento
Em que a rua se torna outra coisa
E desaparece sob a plumagem
Da noite repleta de talvez
E dos sonhos dos que estão mortos
Então desço à rua
Que se estende até a aurora
Bem perto, uma fumaça se espreguiça
E caminho em meio à água seca
Água áspera da noite fresca
O sol não demora a voltar.
Boris Vian, poemas e canções. Trad. Ruy Proença
Alma ferida
Alma ferida pelas negras lanças
Da desgraça, ferida do Destino,
Alma, de que a amargura tece o hino
Sombrio das Cruéis desesperanças;
Não desças, Alma feita das heranças
Da Dor, não desças do teu céu divino.
Cintila como o espelho cristalino
Das sagradas, serenas esperanças.
Mesmo na Dor espera com clemência
E sobe à sideral resplandecência,
Longe de um mundo que só tem peçonha.
Das ruínas de tudo ergue-te pura
E eternamente na suprema Altura,
Suspira, sofre, cisma, sente, sonha!
- Cruz e Sousa, in: Antologia dos Poetas Brasileiros -
Poesia da fase Simbolista (Org.). Manuel Bandeira, Editora: Nova Fronteira,
1996.
ELES QUEBRAM O MUNDO
Eles quebram o mundo
Em pedacinhos
Eles quebram o mundo
A marteladas
Para mim não faz diferença
Não faz diferença alguma
Ainda me sobra muito
Ainda sobra muito
Basta que eu ame
Uma pena azul
Uma trilha de areia
Uma ave assustada
Basta que eu ame
Um ramo frágil de erva
Uma gota de orvalho
Um grilo do campo
Eles podem quebrar o mundo
Em pedacinhos
Ainda me sobra muito
Ainda sobra muito
Terei sempre um pouco de ar
Um filete de vida
Uma nesga de luz no olhar
E o vento nas urtigas
E mesmo se, mesmo
Se me prenderem
Ainda me sobra muito
Ainda sobra muito
Basta que eu ame
Esta pedra corroída
Estes ganchos de ferro
Onde um pouco de sangue se demora
Eu amo, eu amo
A madeira gasta da minha cama
O estrado e o colchão de palha
A poeira do sol
Amo o postigo que se abre
Os homens que entraram
Que avançam, que me levam
A reencontrar a vida do mundo
A reencontrar a cor
Amo este par de altas traves
Esta lâmina triangular
Estes senhores vestidos de preto
É minha festa e me orgulho
Eu amo, eu amo
Este cesto cheio de farelo
Onde vou pousar a cabeça
Oh, eu amo deveras
Basta que eu ame
Um raminho de erva azul
Uma gota de orvalho
Um amor de ave assustada
Eles quebram o mundo
Com seus maciços martelos
Ainda me sobra muito
Ainda sobra muito, meu coração.
Boris Vian, poemas e canções. trad. Ruy Proença
A Serenidade
A serenidade não é feita nem de troça nem de narcisismo, é
conhecimento supremo e amor, afirmação da realidade, atenção desperta junto à
borda dos grandes fundos e de todos os abismos; é uma virtude dos santos e dos
cavaleiros, é indestrutível e cresce com a idade e a aproximação da morte. É o
segredo da beleza e a verdadeira substância de toda a arte.
O poeta que celebra, na dança dos seus versos, as
magnificências e os terrores da vida, o músico que lhes dá os tons de duma pura
presença, trazem-nos a luz; aumentam a alegria e a clareza sobre a Terra, mesmo
se primeiro nos fazem passar por lágrimas e emoções dolorosas. Talvez o poeta
cujos versos nos encantam tenha sido um triste solitário, e o músico um
sonhador melancólico: isso não impede que as suas obras participem da
serenidade dos deuses e das estrelas. O que eles nos dão, não são mais as suas
trevas, a sua dor ou o seu medo, é uma gota de luz pura, de eterna serenidade.
Mesmo quando povos inteiros, línguas inteiras, procuram explorar as profundezas
cósmicas em mitos, cosmogonias, religiões, o último e supremo termo que poderão
atingir é essa serenidade.
Hermann Hesse, in 'O Jogo das Contas de Vidro'
Um a mais
Um a mais
Um sem motivo
Mas já que os outros
Se perguntam perguntas dos outros
E lhes respondem com palavras dos outros
O que fazer
Além de escrever, como os outros
E hesitar
Repetir
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Não achar
Se chatear e dizer
Isto não serve para nada
Valia mais ganhar a vida
Mas a vida, já tenho a minha
Logo, não preciso ganhá-la
Não é um problema, eu asseguro,
E só esta coisa não o é
Pois todo o resto são problemas
Mas todos já estão formulados
Todos se consultaram, todos,
Sobre os mais ínfimos assuntos
Agora eu, o que me resta?
Usaram as palavras fáceis
Belas palavras feitas verbo
Espumantes, quentes, vistosas
Os céus, os astros, as lanternas
E estas brutas lânguidas ondas
Raivam roem rochedos rubros
Tudo em torno trevas e gritos
Tudo cheio de sangue e sexo
Tudo ventosas e rubis
Agora eu, o que me resta?
Em silêncio me perguntar
Sem escrever e sem dormir
Lançar-me a procurar por mim
Sem dizer nem ao zelador
Nem ao anão sob o assoalho
Nem ao paparlante em meu bolso
Nem ao padre em minha gaveta
Preciso urgente me sondar
Sozinho, sem freira rodeira
Que me segure a maçaneta
E me adentre como um polícia
Com cassetete e vaselina
Preciso urgente me enfiar
Um cotonete no nariz
Contra uremia cerebral
E que veja jorrar palavras
Todos se consultaram, todos
Não tenho direito à palavra
Usaram as belas brilhantes
E estão todos bem lá no topo
Onde se guardam os poetas
Com suas liras a pedal
Com suas liras a vapor
Com suas liras de oito relhas
E seus Pégasos nucleares
Não me resta o menor estímulo
Só me restam palavras rasas
Palavras idiotas frouxas
Somente em mim o a os
De por para que quem o quê
É ela ele nós vós nem
Como vocês querem que eu faça
Um poema com esta lei?
Tanto pior, não o farei.
Boris Vian, poemas e canções. Trad. Ruy Proença
domingo, 17 de novembro de 2013
Pastores da Noite
“E, se não fôssemos
nós, pontais ao crepúsculo, vagarosos caminhantes dos prados do luar, como iria
a noite – suas estrelas acendidas, suas esgarçadas nuvens, seu manto de negrume
– como iria ela, perdida e solitária, acertar os caminhos tortuosos dessa
cidade de becos e ladeiras? Em cada ladeira um ebó, em cada esquina um mistério,
em cada coração noturno grito de súplica, uma pena de amor, gosto de fome nas
bocas de silêncio, e Exu solto na perigosa hora das encruzilhadas.”
- Jorge Amado, em "Pastores da Noite".
Fábulas
"as fábulas constituem um alimento espiritual
correspondente ao leite na primeira infância. Por intermédio delas a moral, que
não é outra coisa mais que a própria sabedoria da vida acumulada na consciência
da humanidade, penetra na alma infante, conduzida pela loquacidade inventiva da
imaginação. Esta boa fada mobiliza a natureza, dá fala aos animais, às árvores,
às águas e tece com esses elementos pequeninas tragédias donde ressurte a
‘moralidade’, isto é, a lição da vida. O maravilhoso é o açúcar que disfarça o
medicamento amargo e torna agradável a sua ingestão."
- Monteiro Lobato, em Fábulas, 1918.
furacão na Botocúndia.
"O chamado progresso não passa de uma escravização cada
vez mais apertada, que as massas consentem e aplaudem e, portanto, impõem à
minoria individualista (...) Ignoro se é para o bem ou para o mal nosso que
progredimos em corporatividade e diminuímos em indivíduo. Vamos tendendo para a
vida da colméia, onde o indivíduo não conta. A marcha para a frente é dirigida,
mais e mais, por fatores corporados, com rumo a um ideal coletivo. O motor e a
eletricidade, como os temos agora, a imiscuírem-se em quase todos os atos da
nossa vida diária, nos gregarizam mil vezes mais do que no tempo de
Thoreau."
- Monteiro Lobato, em América, p. 265. Apud AZEVEDO, Carmen
Lúcia de: Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia. São Paulo, Ed. SENAC, 1997,
p. 249.
And when they ask us how clangerous it was
we never will tell them , we never will tell them,
how we fought in some cafe
with wild women night and day
it was the wonder fullest war you ever knew.
E quando nos perguntaram se corremos perigo,
jamais lhe diremos , jamais lhe diremos,
como lutamos num bar
com mulheres impetuosas, dia e noite,
foi a mais maravilhosa das guerras.
Cole Porter.
we never will tell them , we never will tell them,
how we fought in some cafe
with wild women night and day
it was the wonder fullest war you ever knew.
E quando nos perguntaram se corremos perigo,
jamais lhe diremos , jamais lhe diremos,
como lutamos num bar
com mulheres impetuosas, dia e noite,
foi a mais maravilhosa das guerras.
Cole Porter.
"Uma amiga me contou que, quando foi recebida na cadeira de cinema da Universidade de Colúmbia,em Nova York, autoridades universitárias lhe deram as boas vindas dizendo que o cinema era a segunda atividade dos Estados Unidos. A número um é a venda de armas. A venda de armas e a venda de filmes não pertencem a economias distintas .Ambas são feitas com a mesma violência e os mesmos critérios culturais. Não há nenhuma inocência. "
Lucrécia Martel. cineasta argentina.Folha de São Paulo.Ilustrada.2002.08 de Maio.
Lucrécia Martel. cineasta argentina.Folha de São Paulo.Ilustrada.2002.08 de Maio.
A Galinha
Certa manhã de domingo , eu caminhava pela rua Stanton quando vi uma galinha poucos metros adiante de mim.Como eu andava mais rápido do que ela, fui me aproximando gradualmente. Pouco antes da 18 Avenida , eu já estava bem perto do animal. a galinha entrou à direita na 18. Na quarta casa, ela fez uma curva na calçada ,subiu aos pulos os degraus da escada da frente de uma casa e bateu com o bico na porta de metal.Depois de alguns instantes , a porta se abriu e a galinha entrou .
Linda Elegant, de Portland, Oregon.
História extraída do livro "Achei que meu pai fosse Deus ", organizado por Paul Auster
Linda Elegant, de Portland, Oregon.
História extraída do livro "Achei que meu pai fosse Deus ", organizado por Paul Auster
segunda-feira, 11 de novembro de 2013
Un pacto
Yo hago un pacto contigo, Walt Whitman.
Ya te he detestado lo suficiente.
Llego a ti como un niño crecido
Que ha tenido un padre testarudo;
Ya tengo edad para hacer amigos.
Fuiste tú el que partió la nueva leña,
Ahora es el tiempo de tallar.
Nosotros tenemos la raíz y la savia:
Que haya intercambio entre nosotros.
Ezra Pound
Meditatio
Cuando considero cuidadosamente los curiosos hábitos de los
perros
Estoy obligado a concluir
Que el hombre es un animal superior.
Cuando considero los curiosos hábitos del hombre,
Le confieso, mi amigo, que me sorprendo.
Александр Пушкин (Гаврилиада, 1821)
. . .
Поговорим о странностях любви
(Другого я не смыслю разговора).
В те дни, когда от огненного взора
Мы чувствуем волнение в крови,
Когда тоска обманчивых желаний
Объемлет нас и душу тяготит,
И всюду нас преследует, томит
Предмет один и думы и страданий, -
Не правда ли? в толпе младых друзей
Наперсника мы ищем и находим.
С ним тайный глас мучительных страстей
Наречием восторгов переводим.
Когда же мы поймали на лету
Крылатый миг небесных упоений
И к радостям на ложе наслаждений
Стыдливую склонили красоту,
Когда любви забыли мы страданье
И нечего нам более желать, -
Чтоб оживить о ней воспоминанье,
С наперсником мы любим поболтать.
Navegação
Fatiha Morchid
eu e o mar aqui
... e o teu respirar
num telemóvel
... leva-me
para lá
uma vela,
sem bússola,
e o horizonte os teus olhos...
A Sociedade do Espetáculo
"Nunca a tirania das imagens e a submissão alienante ao
império da mídia foram tão fortes como agora. Nunca os profissionais do
espetáculo tiveram tanto poder: invadiram todas as fronteiras e conquistaram
todos os domínios - da arte à economia, da vida cotidiana à política -,
passando a organizar de forma consciente e sistemática o império da passividade
moderna."
- Guy Debord, em "A Sociedade do Espetáculo -
comentários sobre a sociedade do espetáculo". Rio de Janeiro: Contraponto,
2004, p. 9.
Kordian
"A tristeza é um livro sábio que se tem no coração e
que nos diz centenas de coisas - impede-nos de apodrecer como um cogumelo
debaixo de uma árvore; pouco a pouco vai fabricando uma provisão de
ensinamentos para a vida."
- Juliusz Slowacki; Kordian, Akt I, Scena I
ARTE DE AMAR
MANOEL BANDEIRA
Se queres sentir a felicidade de amar,
Esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixe o teu corpo entender-se com outro corpo,
porque os corpos se entendem, mas as almas não
Canção do tempo das chuvas
Elizabeth Bishop
Oculta, oculta,
na névoa, na nuvem,
a casa que é nossa,
sob a rocha magnética,
exposta a chuva e arco-íris,
onde pousam corujas
e brotam bromélias
negras de sangue, liquens
e a felpa das cascatas,
vizinhas, íntimas.
Numa obscura era
de água
o riacho canta de dentro
da caixa torácica
das samambaias gigantes;
por entre a mata grossa
o vapor sobe, sem esforço,
e vira para trás, e envolve
rocha e casa
numa nuvem só nossa.
À noite, no telhado,
gotas cegas escorrem,
e a coruja canta sua copla
nos prova
que sabe contar:
cinco vezes — sempre cinco —
bate o pé e decola
atrás das rãs gordas, que
coaxam de amor
em plena cópula.
Casa, casa aberta
para o orvalho branco
e a alvorada cor
de leite, doce à vista;
para o convívio franco
com lesma, traça,
camundongo
e mariposas grandes;
com uma parede para o mapa
ignorante do bolor;
escurecida e manchada
pelo toque cálido
e morno do hálito,
maculada, querida,
alegra-te! Que em outra era
tudo será diferente.
(Ah, diferença que mata,
ou intimida, boa parte
da nossa mínima,
humilde vida!) Sem água
a grande rocha ficará
desmagnetizada, nua
de arco-íris e chuva,
e o ar que acaricia
e a neblina
desaparecerão;
as corujas irão embora,
e todas as cascatas
hão de murchar ao sol
do eterno verão.
Tradução _ Paulo Henriques Britto.
excerto de O Homem revoltado
''O revoltado, no sentido etimológico, é alguém que se
rebela. Caminhava sob o chicote do senhor, agora o enfrenta. Contrapõe o que é
preferível ao que não o é. Nem todo valor acarreta a revolta, mas todo
movimento de revolta invoca tacitamente um valor. (…) Segundo os bons autores,
o valor ‘representa, na maioria das vezes, uma passagem do fato ao direito, do
desejado ao desejável (em geral, por meio do geralmente desejado)’ (Lalande,
Vocabulário Filosófico). A revolta passa do ‘seria necessário que assim fosse’
ao ‘quero que assim seja’, mas talvez, mais ainda, a essa noção de superação do
indivíduo para um bem doravante comum. O surgimento do Tudo ou Nada mostra que
a revolta, contrariamente à voz corrente, e apesar de oriunda daquilo que o
homem tem de mais estritamente individual, questiona a própria noção de
indivíduo. Se com efeito o indivíduo aceita morrer, e morre quando surge a
ocasião, no movimento de sua revolta, ele mostra com isso que se sacrifica em
prol de um bem que julga transcender o seu próprio destino.”
Albert Camus
sábado, 9 de novembro de 2013
crônica de uma dor
Poetas
seresteiros e
prostitutas tem algo incomum
todos
durante a execução de suas ‘obras’
suportam
comedidamente
a dor
ainda que esta
seja
lancinante
Jeronimo
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
Ferreira Gullar
Mamíferos
“Por que você fracassou no amor? Sem dúvida
você encontrou uma pessoa com a qual teria podido juntar os trapos, uma moça ou
um cara meio malucos. Foi há muito tempo. Você já bebia, mas não era a mesma
coisa. Você os esperava em bares ardentes, em noites dilatadas. Eles apareciam
com atrasos maravilhosos. Você não suportava que eles dormissem, e como era
verão e eles tinham vinte anos, você os acordava. A vida era uma alvorada
ininterrupta. Era uma moça alta ou um cara meio violento que desapareciam de
vez em quando. Claro, você amou outros, e sem dúvida mais duradouramente. Você
não quer estabelecer uma hierarquia das pessoas que amou. Você teve instantes
gloriosos entre vinte e trinta anos, e acredita que não terá mais.
(...)
Oh, vamos aos bares intermináveis que não
julgam ninguém!
(...)
...andava cada vez mais devagar na rua com seus
pés gangrenados.
(...)
Enquanto não vem a velhice ou um hipotético
juízo final, nós o aconselhamos vivamente a continuar com toda serenidade essa
vida feita de álcool, fumo, café e angústia borbulhante.
(...)
O que é uma crise de angústia? Uma crise de
angústia clássica dura cerca de duas horas. A gente acha que vai morrer. Não há
perigo. Se você tiver duas ou três por semana, porém, vai pensar em se
suicidar. A angústia afeta um número crescente de indivíduos, mas, felizmente,
nem todos chegam à crise. O álcool é um excelente ansiolítico, depois se torna
um ansiógeno. É um fator agravante num sujeito já ansioso. Há muitos motivos
para ser ansioso: os genes, a educação, a vida moderna, conflitos internos
insolúveis etc. O ar que você respira, os barulhos que você ouve, as cenas que
você vê todos os dias, tudo isso é carregado de tensão. Sua carne absorve uma
massa crescente de sinais alarmantes. São os sintomas do mundo. O mundo do qual
você faz parte não vai nada bem. É burro, agressivo e hostil.
(...)
Há quem viva somente de sensações e para as
sensações [...]. Na realidade, eles foram tapeados pela vida e, como apenas
intuem isso, caem sempre numa profunda tristeza em que não resta outro recurso
senão aturdir-se, mentindo miseravelmente para si mesmos.
(...)
A busca da sensação implica um egoísmo que me
aterroriza. É evidente que isso não me impede de amar, mas faz os seres amados
parecerem simples ocasiões para gozar ou sofrer, e me leva a esquecer por
completo que existem por si mesmos. Vivemos no meio de fantasmas. Sonhamos em
vez de viver.
(...)
Com o passar das semanas, foi evitando-a cada
vez mais.
(...)
Depois se evitaram totalmente.
(...)
A vida no leva a crer hoje em dia que podemos
os separar das pessoas e amar em profusão. Claro que é mentira. Amar é
excepcional. Não amar é a regra. Aceitar essa regra devia proporcionar um
início de felicidade.
No entanto, vivemos nos queixando e quem aceita
essa regra é acusado de complacência. Olhe à sua volta: os sofrimentos afetivos
se multiplicam, os clubes de encontros se enriquecem. Eles mantém a ilusão do
encontro no coração daqueles e daquelas cuja vida social não contribui para os
encontros. Quem não tem dificuldade na ridícula arte da abordagem sabe que o
problema não está aí: multiplicam-se os encontros e, quanto mais eles se
multiplicam, menos o satisfazem. Os corações circulam de cama em cama como
notas de dinheiro sem validade. Vocês, casais que preparam em silêncio o que
acreditam ser a grande salvação – a separação –, que pensam que o amor, o
verdadeiro amor, prolifera em torno de vocês como corpos num catálogo, cujas
páginas somente seu cônjuge lhe impede de virar, não se enganem: em torno de
vocês reina o terrível mercado da ausência de amor.
(...)
Não paramos de amar os que um dia amamos. Mas
de pessoa em pessoa, de peça em peça, gostaríamos de acreditar que pouco a
pouco montamos um puzzle e que certo dia um rosto aparecerá. E não precisaremos
mais procurar. No entanto, em termos de imagem total só temos a última, e ela
não apaga as precedentes. Nenhuma figura é esquecida, nenhuma nos retém. É o
que faz nossa vida não ser uma sucessão de fracassos, mas uma construção
incerta inteiramente destinada ao amor.
Guerras são travadas, solidão contra solidão. Feridos enfrentam outros
feridos, e o amor é a causa. O que recriminamos ao outro não é o fato de
compartilhar conosco o mesmo ferimento, é o de ele ter encontrado os mesmos
remédios. O amor é quando cada um acredita que o outro encontrou um remédio
diferente, que vai curá-lo. mas na maior parte do tempo lutamos contra seres
que se parecem demais conosco, que sofrem tanto quanto a gente, e nisso são
invencíveis.”(Pierre Mérot – Mamíferos)
The State and Revolution
"We are in favor of a democratic republic as the best form of state
for the proletariat under capitalism. But we have no right to forget that wage
slavery is the lot of the people even in the most democratic bourgeois
republic."
Lenin
Espaços em branco
E por mais que seja pequena, toda e qualquer possibilidade
permanece. Até um movimento reduzido à aparente ausência de movimento. Um movimento,
por exemplo, tão mínimo quanto a própria respiração, o movimento que o corpo
faz quando inala o ar. Num livro de Peter Freuchen que eu li uma vez, o famoso
explorador do Ártico descreve como ficou preso numa nevasca no norte da
Groenlândia. Sozinho, com os mantimentos chegando ao fim, ele decidiu construir
um iglu e esperar que a tormenta passasse. Muitos dias se passaram. Com medo,
acima de tudo, de ser atacado por lobos - pois ele os ouvia se esgueirar
famintos sobre o teto do iglu - ele periodicamente saía e cantava a plenos
pulmões para espantá-los. Mas o vento soprava furioso, e por mais que cantasse
alto, a única coisa que ele ouvia era o vento. Mas se esse era um grande
problema, o problema do iglu era muito maior. Pois Freuchen começou a perceber
que as paredes de seu minúsculo abrigo estavam gradualmente se fechando sobre
ele. Por causa das condições particulares do tempo lá fora, a respiração dele
estava literalmente congelando nas paredes, e com cada exalação, as paredes
ficavam mais espessas, o iglu ficava menor, até que por fim mal havia espaço
para o corpo dele. É certamente coisa assustadora, a ideia de que a sua
respiração possa trancar você num caixão de gelo, e para mim é
consideravelmente mais convincente, digamos, O poço e o pêndulo, de Poe. Pois
neste caso é o próprio homem que é o agente de sua destruição, e mais ainda, o
instrumento daquela destruição é exatamente aquilo de que ele necessita para se
manter vivo. Pois é certo que um homem não pode viver se não respirar. Curiosamente,
eu não lembro como Freuchen conseguiu escapar dessa dificuldade. Mas é
desnecessário dizer que ele escapou.
Paul Auster
Karl Marx: Sobre o trabalho assalariado
"(...) o operário assalariado só está autorizado a
trabalhar para manter a sua própria vida, isto é, a viver, uma vez que trabalha
grátis durante um certo tempo para o capitalista (e, portanto, também, para
aqueles que, com ele, embolsam a mais-valia); (...) todo o sistema de produção
capitalista gira em torno do prolongamento deste trabalho gratuito, alongando a
jornada de trabalho ou desenvolvendo a produtividade, ou seja, acentuando a
tensão da força de trabalho (...) portanto, o sistema de trabalho assalariado é
um sistema de escravidão, uma escravidão que se torna mais dura à medida que se
desenvolvem as forças sociais produtivas de trabalho, quer o operário esteja
melhor ou pior remunerado."
Karl Marx
Crítica ao Programa de Gotha
Londres, Inglaterra, 1875
Tempos-juncos
Na margem do lago,
Onde as pedras são tempo,
Onde o tempo é de pedra.
No lago da margem,
Tempos, juncos,
Na margem do lago,
Santos, juntos.
1908 ou 1909
(Tradução: Augusto de Campos e Boris Schnaiderman).
quarta-feira, 6 de novembro de 2013
Um homem que dorme
"Você tem tudo a
aprender, tudo aquilo que não se aprende: a solidão, a indiferença, a
paciência, o silêncio.
(...)
Dorme com os olhos arregalados como os idiotas.
(...)
Livre como uma vaca, como uma ostra, como um rato!
(...)
Os vulcões misericordiosos não se debruçaram sobre você.
(...)
Chegar ao fundo, nada quer dizer. Nem ao fundo do desespero, nem do ódio, nem da decadência etílica, nem da solidão orgulhosa.
(...)
Você nada aprendeu, a não ser que a solidão nada ensina, que a indiferença nada ensina: era um engodo, uma ilusão fascinante e enganadora. Você estava só e eis tudo e queria proteger-se; que entre o mundo e você as pontes estejam para sempre rompidas. Mas você é tão pouca coisa e o mundo é uma palavra tão grande: você jamais fez outra coisa a não ser vagar por uma cidade grande, a não ser caminhar ao longo de alguns quilómetros de fachadas, de parques e de cais.
(...)
"Não. Você não é mais o dono anônimo do mundo, aquele sobre o qual a história não tinha influência, aquele que não sentia a chuva cair, que não percebia a noite chegar. Você não é mais o inacessível, o límpido, o transparente. Você tem medo, espera. Você espera..."
(...)
Dorme com os olhos arregalados como os idiotas.
(...)
Livre como uma vaca, como uma ostra, como um rato!
(...)
Os vulcões misericordiosos não se debruçaram sobre você.
(...)
Chegar ao fundo, nada quer dizer. Nem ao fundo do desespero, nem do ódio, nem da decadência etílica, nem da solidão orgulhosa.
(...)
Você nada aprendeu, a não ser que a solidão nada ensina, que a indiferença nada ensina: era um engodo, uma ilusão fascinante e enganadora. Você estava só e eis tudo e queria proteger-se; que entre o mundo e você as pontes estejam para sempre rompidas. Mas você é tão pouca coisa e o mundo é uma palavra tão grande: você jamais fez outra coisa a não ser vagar por uma cidade grande, a não ser caminhar ao longo de alguns quilómetros de fachadas, de parques e de cais.
(...)
"Não. Você não é mais o dono anônimo do mundo, aquele sobre o qual a história não tinha influência, aquele que não sentia a chuva cair, que não percebia a noite chegar. Você não é mais o inacessível, o límpido, o transparente. Você tem medo, espera. Você espera..."
(Georges
Perec - Um homem que dorme)
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