Em vez de lembrar o que escrevi sobre as torres do World
Trade Center no décimo aniversário da sua destruição, vou repetir o que escrevi
na época sobre o pintor Morandi.
O que o italiano Giorgio Morandi, morto em 1964, tem a ver
com os dois edifícios do World Trade Center derrubados em 11/9 de 2001?
Absolutamente nada. Foi justamente por isso que a primeira coisa que fiz ao
chegar a Paris depois de fugir de Nova York e das ruínas ainda fumegantes das
torres foi ir ver uma exposição do Morandi.
Eu sabia exatamente o que ia encontrar. Morandi pintou
essencialmente a mesma coisa a vida inteira. Conjuntos de garrafas, caixas,
vasos e vasilhames que ao mesmo tempo se integravam ao fundo e entre si como
formas abstratas e mantinham sua distinção concreta de sólidos. Não foi só
porque ainda tinha na retina as imagens das torres em chamas que pensei
imediatamente nelas diante daquelas caixas e garrafas longilíneas firmemente
postas numa superfície real, com volume e peso, e magicamente postas em outra
dimensão, a salvo do tempo, da história, até de interpretação.
Os objetos que Morandi reproduzia nos seus conjuntos eram
sempre os mesmos, o que ele estava pintando, na verdade, era a sua permanência,
enquanto a vida e o pintor passavam por eles. Não eram os objetos,era a sua
existência silenciosa que estava nos quadros de Morandi. Cada pintura era um
novo registro daquele mistério, uma coisa existindo, persistindo em existir. O
contraste era inescapável com as caixas de ferro evanescentes que eu vira se
desmanchando em Nova York, aquelas formas que
se declaravam triunfalmente eternas desaparecendo em
minutos.
Não aparecem figuras humanas na obra de Morandi. A vida que
existe em seus quadros é toda inferida: a mudança na perspectiva de um
conjunto, uma ou outra marca de uso na superfície de um dos seus objetos
domésticos, um sombreado denunciando a existência de uma fonte de luz em algum
lugar fora do quadro. Nenhum movimento, e tudo se repetindo. O humano só existe
na sua obra como contraponto ao que se vê, às coisas reduzidas a elas mesmas e
a sua persistência. O humano é tudo na obra de Morandi que não se vê. O próprio
pintor interfere o menos possível no seu trabalho e deixa que a obsessão o
guie. Ou a única coisa humana na arte do Morandi é a obsessão.
Minha impressão ao olhar seu trabalho era que estava diante
do ultimo homem tranquilo do mundo. Na vida parada dos seus quadros havia
desprezo pelo drama humano, e eu estava ali atrás daquela tranquilidade. Queria
me convencer da transitoriedade da angústia, o sentimento mais humano do
momento, e esquecer as mortes e a destruição. Se pudesse passaria o dia e a
noite ali, armazenando tranquilidade para enfrentar o que estava por vir – mas
o museu fechava às cinco e meia. De qualquer maneira foi bom saber que os
objetos do Morandi continuariam lá, independentemente do nosso olhar, da nossa
passagem e da nossa angústia, sólidos, indestrutíveis, significando apenas sua
propria permanência. E silêncio.
- LUIZ FERNANDO VERISSIMO. 11 Sep 2011
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