- Renato Janine Ribeiro
Quando as pessoas compram avaliando não só o preço, mas o
que as empresas fazem de bom e de mau, a ética pressiona o capitalismo
Renato Janine Ribeiro
O capitalismo é ético? Eis uma questão muito difícil de
responder. Basicamente, hoje há duas grandes linhas a respeito. Uma enfatiza a
dinâmica de um sistema, ou um estilo, que libera a produção das amarras
tradicionais e assim revela capacidade inigualável de criar e talvez até
distribuir riquezas. Mas o preço dessa libertação é um caráter nada ou pouco
ético: o capitalista é movido por um "instinto animal", promove uma
"destruição criativa". Na melhor das hipóteses, é neutro eticamente,
o que chamamos de "amoral". Com frequência é até predatório, o que
chamamos de "imoral". Só por ele, não respeitaria direitos
trabalhistas - tanto assim que, nas últimas décadas, vários deles foram
reduzidos - nem teria reverência pela natureza e o ambiente.
Isso não representa contudo, necessariamente, uma condenação
do capitalismo. Apenas mostra que ele é excelente naquilo que se propõe:
produzir. Precisa, porém, de controles externos. Esses podem ser exercidos pelo
Estado, pela sociedade, pela opinião pública. Desse ponto de vista, o que pode
introduzir ética na economia são as pessoas, enquanto não empresários. Isto é,
o próprio empresário, por valores éticos que não são seus como empresário, mas
como pessoa, como sujeito moral, pode orientar sua atividade produtiva numa
direção melhor. Se não for ele, será a sociedade. Quando cada vez mais pessoas
compram levando em conta não só o preço, mas o que as empresas fazem de bom e
de mau, é isso o que acontece. Exemplo importante no Brasil foram as campanhas
- movidas por pessoas, inclusive empresários da Abrinq - contra o trabalho
infantil. A Zara, acusada há dias de comercializar produtos em que se usa
trabalho escravo, padece em sua imagem por isso.
Esse é um primeiro modo de ver o capitalismo, digamos,
"selvagem". Mas há outra percepção, ou concepção, do capitalismo.
Esta aparece quando organizações como a Etco se empenham em defender um
ambiente limpo de corrupção para os negócios melhor florescerem. Aqui o
problema é, como se vê na série sobre a cultura das transgressões que saiu pela
editora Saraiva (de cujo terceiro volume participei), de que maneira evitar a
primazia da transgressão, que faz as boas regras - boas segundo a lei e a ética
- serem violadas em nome de uma vantagem fácil que, porém, desmoraliza a
sociedade, amoraliza a economia e imoraliza a política. Essa linha de
pensamento estaria mais perto dos calvinistas de Max Weber, que sentiam a
"ética protestante" expressando-se no "espírito do
capitalismo". Pessoas empreendedoras, que mourejam, fazem de tudo para a
sociedade prosperar: o empresário weberiano do século 16 ou 17 nada tem a ver
com o banqueiro da caricatura, fumando charuto, indolente, espertalhão,
mancomunado com os poderosos, corruptor. Esse empreendedor dos começos da
modernidade pode não ser simpático - nas Américas, seria senhor de escravos, na
Holanda, não reconheceria direitos a seus empregados -, mas ele próprio
trabalhava, e muito. De certa forma, quando se fala num capitalismo que requer
uma ética intensa, é nele que se pensa.
Mas em nossos dias surge um upgrade. Cada vez mais, no lugar
da ética protestante e moralista, aparece uma preocupação ética que nasceu da
ideia do meio ambiente e agora se desenvolve para a sustentabilidade. Não tem
mais por modelo ideal o empresário calvinista que faz, da empresa, sua razão de
vida. Ao contrário, cada vez mais a vida é a razão de ser de tudo o que se
faça, inclusive (mas não só, nem prioritariamente) a empresa. Tudo começa com o
descontentamento ante a poluição. A economia que se desenvolve desde a
Revolução Industrial tem um custo altíssimo para a vida - humana, animal,
vegetal. Londres passa cem anos coberta pelo fog, uma neblina que se deve à
poluição das fábricas. As pessoas não se enxergam. A cidade fica invisível e os
cidadãos, cegos ao seu entorno. Contudo, após a 2ª Guerra Mundial, uma
preocupação com a natureza cresce pelo mundo. Movimentos verdes lutam contra a
má qualidade do ar, da água, em prol da preservação de florestas. A essa
altura, por "verde" se entende o meio ambiente natural ou assimilado.
Contudo, com os anos, as causas verdes anexam um elenco de outros valores. Não
é só a defesa do mundo não contaminado pelo homem. É a defesa do homem, contra
o que o desgasta ou desvaloriza.
Também se propõe uma reorientação da ciência. Tomemos o
filósofo que é o primeiro grande referencial de toda preocupação com o meio
ambiente, Rousseau. É um amante da natureza. Começa seus Devaneios do
Caminhante Solitário narrando um passeio pelos arredores de Paris, em que olha
as plantas, identifica-as, extasia-se. Mas é também alguém que faz seu début
literário com um escrito, premiado pela Academia de Dijon, sustentando que
"as artes e as ciências" - isto é, o que chamamos de tecnologia e
ciência - fizeram mal, mais do que bem. Desnaturaram o mundo. Degeneraram o
homem. Rousseau não vê em nada moderno, seja a economia, a política ou a
ciência, capacidade de reverter o processo pelo qual "o homem nasceu bom e
a sociedade o corrompe".
Mas o que notamos na ciência das últimas décadas é um forte empenho
em reduzir e mesmo suprimir os danos acarretados pelo desenvolvimento.
Lembremos que não faz muito tempo a ciência e a tecnologia eram, em ampla
medida, influenciadas por encomendas militares. Isso mudou. Tenhamos em mente
que muitas pesquisas são conduzidas em nome de causas destrutivas, ainda hoje.
Muitos desconfiam que os cultivos transgênicos, ou têm certeza de que os
veículos de transporte individuais, causam males em maior número que as
vantagens. Os carros são bons a curto prazo para poucos, mas péssimos para o
futuro da humanidade como um todo. Mesmo assim, porém, em casos como o da
indústria do tabaco, cientistas cortaram seu elo umbilical com ela, como se vê
no filme O Informante. E são cientistas de renome que formam o "core"
da Comissão Internacional de pesquisa sobre as Mudanças Climáticas, que talvez
constitua o órgão mais prestigioso na luta por mudar o mindset que governa uma
produção de custos negativos para a sociedade e a natureza.
Com uma ciência e uma tecnologia mais amigas do verde, um
verde que saiu das plantas e colore tudo o que é vida e mesmo cultura, isto é,
passa a propor uma qualidade de vida melhor para os humanos e seus parceiros no
planeta, com a defesa da biodiversidade e do que podemos chamar a
culturo-diversidade, por que não uma economia de novo recorte? Será possível o
projeto de uma empresa ter no seu cerne a sustentabilidade, isto é, a proposta
de que nenhuma intervenção humana piore o que foi recebido? Essa é uma
exigência alta. Para eu me alimentar, tenho de matar animais ou mesmo vegetais.
(O momento mais engraçado do filme Notting Hill, para mim, foi quando uma moça
se disse vegetariana lapsariana. Lapso significa queda. O que ela dizia é que
só comia frutas e legumes que já tivessem caído da planta que as gerou. Não
comeria uma maçã arrancada da macieira, porque estaria matando um ser vivo.
Fica difícil, claro, viver com uma ética tão radical.) Mas, se tenho de matar
ou causar danos, posso reduzi-los, talvez revertê-los por completo e, quem
sabe, um dia (esse é o sonho!), até melhorar as condições do que foi recebido.
Aqui amplio a ideia de que recebemos insumos "da natureza" para a de
que recebemos insumos também humanos: o trabalho, a saúde, a boa disposição uns
dos outros. É sustentável a ação que não apenas zera o dano causado, mas também
promove ganhos. Suponhamos uma empresa que decida fornecer, a seus
funcionários, alimentação saudável - a cada três horas, como hoje se recomenda,
em vez de poucas e lautas refeições. Pode melhorar a saúde deles. Ela assim terá
devolvido mais do que consumiu. É claro que há tantos insumos que o cálculo não
pode isolar um dos outros. Mas é um exemplo.
Porque, no fundo, nossa questão é: o que fará uma empresa ou
um empresário agir eticamente, ser ético? Tudo o que afirmei não dá uma
resposta definitiva. Quando uma empresa faz questão de não explorar o trabalho
infantil ou de preservar a natureza, essa iniciativa é "da empresa"
ou dos indivíduos que, entre outras coisas, são seus donos? A diferença é
importante. Toda empresa busca o lucro. Mas o que a faz criar limites para sua
voracidade? É algo que faz parte do próprio projeto empresarial, ou serão
elementos externos, inclusive os valores pessoais dos proprietários? Para sair
da moral e entrar no moralismo, conta-se que houve um tempo em que um vinho que
tem no nome a palavra "diabo" não era distribuído aqui porque os
importadores eram cristãos fervorosos. Era um valor deles, não da empresa. E
uma empresa pode ter valores? Uma empresa é diferente dos seres humanos que são
seus donos, que a fazem? Questões difíceis. O que parece certo, isso sim, é que
uma empresa pode ter no seu próprio projeto de negócios uma solidez sustentável
e que isso será mais viável se ela tiver compromissos sociais e ambientais e,
além disso, estiver na linha de ponta, no cutting edge, da ciência. O mais,
resta a esclarecer - ou a fazer.
RENATO JANINE RIBEIRO É PROFESSOR TITULAR DE ÉTICA E
FILOSOFIA POLÍTICA DA USP
Nenhum comentário:
Postar um comentário