Devemos evitar posturas que venham a contribuir para o
estabelecimento de um elo automático entre a coerção e a promoção da democracia
Comprometido no plano nacional com os direitos humanos, com
a democracia, com o progresso econômico e social, o Brasil incorpora plenamente
esses valores a sua ação externa.
Diante dos eventos da Primavera Árabe, expressamos nossa
solidariedade à mobilização social por maior liberdade de expressão e avanços
políticos e institucionais em países submetidos a regimes autoritários. Tanto
no Conselho de Segurança quanto no Conselho de Direitos Humanos da ONU,
condenamos as violações cometidas pelos regimes líbio e sírio.
Ao velar para que o compromisso com os valores que nos
definem como sociedade se traduza em atuação diplomática, o Brasil trabalha
sempre pelo fortalecimento do multilateralismo e, em particular, das Nações
Unidas.
A ONU constitui o foro privilegiado para a tomada de
decisões de alcance global, sobretudo aquelas relativas à paz e à segurança
internacionais e a ações coercitivas, que englobam sanções e uso da força.
Ações militares sem a legitimação do Conselho de Segurança
da ONU, além de trazerem descrédito para os instrumentos internacionais
subscritos pela comunidade internacional como um todo, tendem a se transformar
em fator de instabilidade, violência e violações de direitos humanos em grande
escala, como demonstrou a intervenção militar no Iraque.
Não nos esqueçamos de que o primeiro direito humano é o
direito à vida. A primeira obrigação da comunidade internacional ao deparar com
uma situação de crise é a de evitar o agravamento de tensões.
Cada vez que a violência se dissemina, as primeiras vítimas
são os segmentos mais vulneráveis: as crianças, as mulheres, os idosos, os
desvalidos.
Além de defendermos a legalidade das nossas ações
coercitivas perante a Carta da ONU e o direito internacional, devemos sempre
aplicar medidas adequadas, com os olhos voltados para os resultados almejados:
a promoção da democracia, dos direitos humanos, a proteção da população civil,
a criação de condições de estabilidade que geram oportunidade de progresso
econômico e social.
A ordem internacional não se fortalece com interpretações
livres de mandatos do Conselho de Segurança. E, sempre que a ordem se
enfraquece, quem mais padece são os mais fracos. Como bem assinalou o professor
Richard Falk, da Universidade Princeton, em entrevista à Folha, houve, no caso
da Líbia, uma lacuna entre o que foi autorizado pelo Conselho de Segurança e a
ação da Otan.
A relação entre a promoção da paz e segurança internacionais
e a proteção de direitos individuais evoluiu de forma significativa ao longo
das últimas décadas, a partir da constituição das Nações Unidas, em 1945. Não
se pode afirmar que essa evolução, positiva em seu conjunto, seja obra de um
grupo de países em particular.
Ela é fruto de um embate de ideias em que os militarmente
mais poderosos não estiveram necessariamente na vanguarda dos clamores por
justiça e equidade. Lembro que os primeiros esboços da Carta da ONU incluíam
referências escassas aos direitos humanos por razões que hoje podem parecer
surpreendentes.
Robert C. Hildebrand, que relata as negociações do documento
em sua obra "Dumbarton Oaks", credita essa circunstância ao fato de
que os Estados Unidos temiam questionamentos à segregação racial ainda vigente
no país e à preocupação do Reino Unido de que sua soberania sobre um vasto
império colonial viesse a ser posta em xeque -como efetivamente ocorreu.
A luta contra o apartheid proporciona um exemplo eloquente
de ação conjunta do mundo em desenvolvimento contra práticas que atentam contra
a dignidade humana. Quando o tema foi levado ao Conselho de Segurança da ONU,
as objeções à aplicação de sanções contra o regime minoritário sul-africano
partiram de membros permanentes ocidentais.
Desde a adoção da Carta da ONU, a relação entre promover
direitos humanos e assegurar a paz internacional passou por várias etapas.
Sofreu paralisia em função da rivalidade ideológica da Guerra Fria;
beneficiou-se do breve momento de consenso internacional do imediato pós-Guerra
Fria e da ação internacional pela reversão da invasão iraquiana do Kuait.
Em meados da década de 90 surgiram vozes que, motivadas pelo
justo objetivo de impedir que a inação da comunidade internacional permitisse
episódios sangrentos como os da Bósnia ou do genocídio em Ruanda, forjaram o
conceito de "responsabilidade de proteger".
Embora a responsabilidade coletiva não precise se expressar
por meio de ações coercitivas para ser eficaz, surgiram vozes particularmente
intervencionistas e militaristas no chamado "Ocidente" que continuam
gerando controvérsia e polêmica.
A Carta da ONU, como se sabe, prevê a possibilidade do
recurso à ação coercitiva, com base em procedimentos que incluem o poder de
veto dos atuais cinco membros permanentes no Conselho de Segurança -órgão
dotado de competência primordial e intransferível pela manutenção da paz e da
segurança internacionais.
O acolhimento da responsabilidade de proteger na normativa
das Nações Unidas teria de passar, dessa maneira, pela caracterização de que,
em determinada situação específica, violações de direitos humanos implicam
ameaça à paz e à segurança.
Para o Brasil, o fundamental é que, ao exercer a
responsabilidade de proteger pela via militar, a comunidade internacional, além
de contar com o correspondente mandato multilateral, observe outro preceito: o
da responsabilidade ao proteger. O uso da força só pode ser contemplado como
último recurso.
Queimar etapas e precipitar o recurso à coerção atenta
contra a "rationale" do direito internacional e da Carta da ONU. Se
nossos objetivos maiores incluem a decidida defesa dos direitos humanos em sua
universalidade e indivisibilidade, como consagrado na Conferência de Viena de
1993, a atuação brasileira deve ser definida caso a caso, em análise rigorosa
das circunstâncias e dos meios mais efetivos para tratar cada situação
específica.
Não há espaço, no estabelecimento de políticas consistentes
na área dos direitos humanos, para generalizações ingênuas nem para facilidades
retóricas.
Devemos evitar, muito especialmente, posturas que venham a
contribuir -ainda que indireta e inadvertidamente- para o estabelecimento de
elo automático entre a coerção e a promoção da democracia e dos direitos
humanos. Não podemos correr o risco de regredir a um estado em que a força
militar se transforme no árbitro da justiça e da promoção da paz.
ANTONIO DE AGUIAR PATRIOTA . foi ministro das Relações
Exteriores. Governo Dilma Rousseff
01 Sep 2011
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