11 DE SETEMBRO
A cidade nua
As 8 milhões de histórias de NY
RESUMO O autor de "Bombaim: Cidade Máxima", que
dividiu seus anos de juventude entre a metrópole indiana e Nova York, reflete
sobre sua experiência do multiculturalismo na maior cidade americana, muito
diferente do modelo das metrópoles europeias. Leia a íntegra do ensaio em
folha.com/ilustrissima.
Em 1948, o escritor E. B. White formulou uma definição dos
três tipos de nova-iorquinos que ficaria famosa: o nativo, o migrante diário
(que vem todos os dias para trabalhar ou estudar) e a pessoa de outro lugar que
vem em busca de alguma coisa.
Hoje existem três tipos diferentes de nova-iorquinos: as
pessoas que agem como se tivessem nascido aqui, que se sentem "donas"
da cidade, mesmo que tenham se mudado para cá depois de concluírem a faculdade;
as pessoas que estão aqui e gostariam de estar em outro lugar, tão tóxica a
cidade já se tornou para elas; e os nova-iorquinos virtuais do mundo inteiro,
que vivem em cidades que vão de Sarajevo a Santiago e gostariam de morar em
Nova York.
Esses são os três estados de espírito nova-iorquinos, e o
que eles têm em comum é o anseio e um elemento de autoilusão. Esta é uma cidade
de sonhadores e insones.
De minha janela em Manhattan, vejo o buraco no horizonte da
cidade onde antes ficava o World Trade Center. Vivo na mira de todos os malucos
e terroristas do mundo. Os terroristas do 11 de Setembro sabiam o que iam fazer
quando dois dos três aviões que sequestraram rumaram para Nova York. Quando os
malucos querem registrar suas objeções à
América, ao cristianismo, ao capitalismo, à dance music, a
qualquer coisa, sempre vêm para Nova York. Vivemos nesta cidade feito uma
língua entre os dentes.
DIVERSIDADE Mas isso não impede as pessoas de quererem se
mudar para cá, gente de todo o planeta: dois em cada três nova-iorquinos são
imigrantes ou filhos de imigrantes. Assim como eu era quando, aos 14 anos, me
mudei de Bombaim para Jackson Heights, no Queens, o distrito mais etnicamente
diversificado dos EUA.
Meus vizinhos eram indianos e paquistaneses, judeus e
muçulmanos, haitianos e dominicanos -vinham se matando mutuamente até pegar o
avião. Aqui, porém, essas pessoas vivem lado a lado com seus inimigos
seculares, e os filhos de uns namoram os de outros.
Podem até continuar sem se gostar, mas não se atacam, nem se
vandalizam; concordam em tolerar os vizinhos. Já faz anos que não acontece um
conflito étnico importante na cidade.
Como nenhuma etnia domina, nenhuma comunidade isolada é
vista como culpada quando há problemas ou quando a economia vai para o brejo.
Volta e meia explicam-se os problemas das cidades europeias
citando o desemprego ou a desigualdade. Mas Nova York é a cidade mais desigual
dos EUA. Em 2007, segundo estudo do Instituto de Política Fiscal, 1% dos
nova-iorquinos ganharam 45% da renda da cidade (em 1980, esse grupo recebeu 12%
da renda). Contas feitas, dá uma média de US$ 3,7 milhões por ano para as
34.500 famílias mais ricas da cidade. A renda diária média desse grupo é maior
que a renda anual média dos 10% mais pobres.
Por que, então, as pessoas ainda vêm tentar a sorte neste
lugar inóspito? A população deve crescer em mais 1 milhão nas duas próximas
décadas, sobretudo devido aos imigrantes.
Seriam as oportunidades ou uma ilusão o que os atrai?
HIERARQUIA Eles vêm porque todo recém-chegado que desembarca
no aeroporto JFK pode encontrar um lugar na hierarquia local. Num restaurante,
o chef pode ser francês; o pessoal que lava os pratos, mexicano; a hostess,
russa; o taxista, paquistanês; o dono do táxi, britânico. Não são todos iguais.
Não ganham a mesma coisa. Mas trabalham juntos para servir comida a pessoas com
fome. É feito o sistema de castas dos hindus: não é equitativo, mas cada um tem
seu lugar.
O que Nova York demonstra, sua lição às outras cidades ricas
como Amsterdã, Paris ou Tóquio, é que a imigração funciona. A cidade pode usar
os imigrantes, até mesmo os ilegais.
"Embora tenham infringido a lei ao atravessar nossas
fronteiras ilegalmente", observou o prefeito Michael Bloomberg, "a economia
da nossa cidade seria apenas uma sombra do que é se eles não tivessem feito
isso, e entraria em colapso se eles fossem deportados."
Cada imigrante é um épico em formação. É atraído pelo mito
fundador da cidade: tenta escapar da história pessoal e política. Para ele,
Nova York é a cidade da segunda chance.
Nova York é a maior, a mais rica e a mais acelerada cidade
dos EUA. Ela tem mais gente que Los Angeles, Chicago e Filadélfia -somadas. Há
8 milhões de histórias na cidade nua, e em pouco tempo serão 9 milhões (a área
metropolitana tem 22 milhões de habitantes -ou seja, um em cada 14 americanos).
Essas pessoas fazem dos 831 km2 de Nova York o lugar mais densamente povoado da
América do Norte. Como observou Le Corbusier, "uma parte considerável de
Nova York nada mais é que uma cidade provisória, uma cidade que será
substituída por outra cidade".
EXPERIMENTO Às vezes Nova York inteira dá a impressão de ser
um vasto experimento social, em que exilados de todo o planeta se reúnem para
sentar-se a uma mesa comprida e falar sobre as coisas que importam: amor, morte
e dinheiro. Hoje os nova-iorquinos vêm de mais de 180 países.
O Queens é o condado mais diversificado dos EUA. Mais da
metade dos moradores do Queens e do Bronx não fala inglês em casa. É uma cidade
que volta e meia difere dos EUA; enquanto 40% de Nova York nasceu fora dos EUA,
esse é o caso de apenas 12% do país. Nova York é uma ilha num país em que, até
recentemente, 80% da população nacional não tinha passaporte.
A população imigrante da cidade cresceu 38% entre 1990 e
2000. Dos cinco distritos de Nova York, o Queens é o mais estrangeiro, com 46%
de seus habitantes nascidos no exterior, e bairros como Elmhurst têm 70%
nascidos fora dos EUA. Apenas 16% dos moradores da verdejante Staten Island
nasceram no exterior, embora esse distrito tenha grandes comunidades de
italianos (mais de metade da população é de origem italiana), cingaleses e
nigerianos.
A cidade é muito mais diversa hoje do que era no século
passado: 31% branca, 20% negra, 14% asiática e 35% hispânica. O maior grupo
imigrante é formado pelos 532 mil dominicanos da cidade, mas mais moradores têm
origem italiana que qualquer outra origem. O grupo em crescimento mais rápido é
formado pelos mexicanos, cujo número cresceu em mais de um terço nos últimos
cinco anos.
Nos últimos anos, Nova York ganhou mais moradores que
qualquer outra cidade americana. Com 800 mil novos nova-iorquinos, já passou as
cidades do Cinturão do Sol, hoje em franco crescimento. Depois do 11 de
Setembro, porém, muita gente pensou que Nova York ficaria mutilada; as empresas
financeiras do centro falaram em deixar a cidade. A população de Manhattan
diminuiu. Apartamentos em Battery Park foram postos à venda por uma pechincha.
RECUPERAÇÃO Mas a cidade se recuperou, e com força. Nova
York não virou Nova Orleans. Não é uma cidade segregada. Os imigrantes salvaram
Nova York e a mantiveram em ação. As escolas teriam se desfeito, não fosse pela
energia e pelo investimento pessoal de pais imigrantes.
Nova York teria sofrido um declínio populacional líquido,
não fosse pelos imigrantes. Os imigrantes, ricos e pobres, não se deixaram
desanimar pelo 11 de Setembro; muitos já viram coisa muito pior em suas terras
de origem. Enquanto um número considerável de pessoas da classe média deixou a
cidade após o desastre, os imigrantes permaneceram.
Agora Nova York vai receber 1 milhão de novos habitantes nos
próximos anos, a imensa maioria imigrantes ou filhos de imigrantes. Os
imigrantes também conseguem superar a crise habitacional sem se abaterem. Como
observa Joe Salvo, chefe da divisão de planejamento demográfico de Nova York,
"os imigrantes não se importam com a densidade. Eles simplesmente dobram a
ocupação dos lugares".
Assim como Bombaim é um símbolo de certo tipo de megacidade
no mundo em desenvolvimento -como São Paulo, Lagos e Jacarta-, Nova York é a
joia na coroa de outro grupo de cidades no planeta: Londres, Paris, Sydney,
Toronto. Todas seguem seus próprios métodos para lidar com porcentagens de
estrangeiros que não têm precedentes históricos.
Paris achou que tinha a questão resolvida -bastava empurrar
os pobres e os estrangeiros para a periferia-, até explodir em 2005, quando
bandos de jovens imigrantes atravessaram o Boulevard Périphérique e atearam
fogo a carros nas margens do Sena. O experimento com o multiculturalismo
empreendido em Paris, Amsterdã e Berlim vem sofrendo problemas porque os
imigrantes nessas cidades nunca chegam a se sentir realmente franceses,
holandeses ou alemães. Dá para se sentir americano ao desembarcar do avião.
Nos últimos dez anos, Nova York tem estado em primeiro lugar
no país como a cidade na qual as pessoas mais gostariam de morar ou da qual
mais gostariam de estar perto. Há alguma coisa em Nova York que está
funcionando.
As pessoas vêm para cá, vindas de partes do mundo onde
estavam a se matar, mas em Nova York elas vivem ao lado de seus antigos
inimigos, e os seus filhos namoram as filhas deles. Como acontece esse milagre
do dia a dia?
Se entendermos como Nova York funciona, poderemos enxergar
como poderia funcionar em outras cidades, como as cidades-campos de batalha da
Europa.
Quando os malucos querem registrar suas objeções à América,
ao cristianismo, ao capitalismo, à dance music, a qualquer coisa, sempre vêm
para Nova York
Nova York dá a impressão de ser um vasto experimento social,
onde exilados de todo o planeta se reúnem para falar sobre as coisas que
importam: amor, morte e dinheiro
Os imigrantes, ricos e pobres, não se deixaram desanimar
pelo 11 de Setembro; muitos já viram coisa muito pior em suas terras de origem
SUKETU MEHTA
TRADUÇÃO CLARA ALLAIN
Posted: 11 Sep 2011
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