ENTREVISTA - Ellen Gracie:
A ministra que saiu do Supremo Tribunal Federal
avalia o papel do Judiciário no cumprimento das leis e na manutenção das
liberdades e direitos constitucionais
A juíza Ellen Gracie Nonhfteet, de 63 anos, entregou há três
semanas seu pedido de aposentadoria do Supremo Tribunal Federal (STF). lndicada
pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2000. Ellen foi a primeira mulher
a chegar à mais alta corte do país. Ao longo de dez anos e meio, proferiu cerca
de 30.000 decisões, presidiu o STF e o Conselho Nacional de Justiça e foi
vice-presidente do Tribunal Superior Eleitoral. A ministra poderia continuar no
tribunal até 2018, mas ela se considera "muito realizada". Apesar de
ter se formado e construído a carreira no Rio Grande do Sul - onde. moram a
única filha e a neta -. Ellen está a caminho do Rio de Janeiro natal. A curto
prazo, vai retomar o registro na Ordem dos Advogados do Brasil para trabalhar
com pareceres, consultoria e arbitragem. Segue o desejo, no entanto, de ser
nomeada para um fórum internacional. Em 2008, ela foi derrotada na disputa por
um assento na corte de apelação da Organização Mundial do Comércio. "Se
houver uma oportunidade, vou analisar", diz a ex-ministra. "Mas não
em qualquer lugar. Não estou fugindo do país." No seu apartamento em
Brasília, ela concedeu a seguinte entrevista a VEJA.
Foram quase onze anos no Supremo. O tribunal mudou muito
nesse tempo?
Creio que a corte de dez anos atrás era mais contida, mais
dada ao judicial restraint, uma expressão em inglês que indica um esforço para
não se substituir ao legislador. Acontece que a demanda para que o STF
resolvesse impasses políticos também era menor. Hoje, há temas controversos que
o Congresso não aborda. Os parlamentares não querem se comprometer com uma
posição. As demandas, então, vão parar no Supremo, que não tem outra saída
senão decidir sobre tais assuntos. Há também o famoso "terceiro
turno" - quando a minoria vencida no Legislativo recorre à corte para
reverter ou amenizar a derrota. Eu não diria que existe no STF uma atitude
concertada para adotar o ativismo judicial. Alguns ministros - muito bem
amparados na doutrina e na técnica - avançam mais nessa direção. Outros, menos;
Não vejo, contudo, um interesse em aumentar o poder do Supremo. Nosso poder já
é bem grande. O certo é que nesses últimos dez anos foram as circunstâncias que
fizeram do dilema entre ativismo e contenção um aspecto central para a corte.
Uma das decisões em que o ativismo do Supremo ficou mais
patente é aquela que confere o status de família à união estável entre pessoas
do mesmo sexo. A Constituição é explícita em dizer que a família no Brasil é
formada por homem e mulher. A corte reescreveu a Carta Magna?
O Brasil, desde o pórtico de sua Constituição, diz que não
admite discriminação. Então não há motivo para que concidadãos nossos sejam
tratados de maneira diferente por causa de sua orientação sexual. Assim como
nós não admitiríamos que eles fossem tratados diversamente por questões de cor
ou de religião, também a orientação sexual não deve ser um fator impeditivo a
que eles gozem de isonomia em relação aos outros cidadãos. Essa é a base da
decisão. Um país decente não discrimina entre os seus cidadãos. Meu voto foi no
sentido de que todos os direitos correspondentes a uma união estável entre
pessoas de sexo oposto sejam estendidos aos homossexuais, inclusive o direito
de adoção. Mas as discussões sobre os direitos dos homossexuais ainda não
terminaram no Supremo, elas certamente voltarão ao plenário.
A senhora foi a primeira mulher a assumir uma cadeira no
tribunal. É importante que uma mulher a substitua?
Acredito que a sociedade brasileira entrou em outra fase.
Neste momento, o país é presidido por uma mulher. No Supremo, temos ainda a
ministra Cármen Lúcia. O peso simbólico de uma escolha feminina já não é tão
grande. Se a presidente quiser escolher uma mulher,no entanto, sua gama de
alternativas será bem grande. O Judiciário brasileiro se destaca no mundo
porque 30% da primeira instância é formada por mulheres, e quase o mesmo
porcentual se repete na segunda instância. Existe uma massa crítica muito boa
da qual a presidente poderá tirar um nome feminino, se tal for a sua vontade.
O Supremo vivia atulhado de processos. Essa questão foi
equacionada?
Até 1988, O Supremo podia escolher os casos que iria
analisar. Isso mantinha o número de processos em um patamar manejável. A
Constituição de 1988 tirou essa prerrogativa da corte. Além disso, por ser
muito detalhista, a Carta permite que os advogados sempre encontrem uma raiz
constitucional para os seus pleitos. Desde a faculdade, eles são orientados a
incluir questões constitucionais em suas petições, de modo que a causa possa
mais tarde subir até o Supremo. Tudo isso acarretou uma explosão do número de
causas que tramitam na corte. Em meados da década passada, chegou a haver 150
000 processos distribuídos entre os gabinetes dos ministros. Isso torna
inviável o trabalho de uma corte constitucional. Houve, no entanto, um divisor
de águas que nos levou de volta ao bom caminho. Estou falando da Emenda e das
leis que a regulamentaram, permitindo o uso da repercussão geral e da súmula
vinculante. Depois disso, houve uma clara redução de número Em 2010, apenas 15
000 processos foram distribuídos. E muito, em comparação com outros países. mas
um avanço inegável para nós.
Se o instrumento é eficaz, por que é pequeno o número de
súmulas publicadas?
Sou uma defensora da adoção das súmulas vinculantes há
trinta anos. Sou também muito restritiva no uso dessa ferramenta. Não há
contradição aí. As súmulas diminuem o número de processos que chegam ao Supremo
na exata medida em que aumentam a segurança jurídica. Para desempenhem esse
papel,é fundamental que sejam muito precisas. Se a súmula não é feita com
cuidado enseja uma nova dúvida, ela não cumpre o seu papel de estabelecer uma
jurisprudência que permita que processos semelhantes ao analisado sejam
julgados com mais rapidez e não cheguem mais às instâncias superiores.Isso às
vezes acontece. Há súmulas que os próprios ministros quiseram reescrever já no
dia seguinte à publicação. Por isso, o tribunal está certo em não se apressar na
edição de súmula.
Em maio, o tribunal determinou a prisão do jornalista
Pimenta Neves, onze anos depois do assassinato que ele confessou. Com a redução
no número de processos, o Supremo tende a decidir com maior velocidade?
O grande problema do Judiciário hoje é a lerdeza. As ações
demoram muito, especialmente as penais. O sistema de recursos e nulidades do
processo penal brasileiro é inacreditável, quase impede uma condenação. Um bom
advogado tem à sua disposição um arsenal quase infinito de manobras para
dificultar o desenvolvimento do processo. Ou seja, a culpa não é exclusivamente
do Judiciário. Mas nós também temos nossa parcela de responsabilidade.
Deveríamos nos equipar, ter mais juízes criminais. E acredito que, mesmo na
corte suprema, nem sempre tomamos a melhor decisão. Em 2009, por exemplo, o
tribunal alterou sua jurisprudência com relação à possibilidade de cumprimento
das penas logo depois da confirmação da sentença em segundo grau. Até então, o
tribunal sempre tinha entendido que, confirmada a sentença no Tribunal de
Justiça, nada impedia o início da execução. Em 2009, isso mudou. Não concordei
com essa posição e discordo dela até hoje.
A senhora é considerada linha-dura em questões penais.
Concorda com essa definição?
Sou rigorosa em matéria penal. Acho que é preciso ser. No
Brasil, depois da redemocratização, passamos por um período de rechaço absoluto
a tudo que significasse repressão. Mas qualquer país democrático precisa ter
repressão ao crime. É preciso que haja consequência para o delito, que o
direito penal seja efetivo. No entanto, quando for aplicada a pena, é
necessário que o sistema prisional cumpra sua finalidade de ressocialização. As
penas não existem apenas para punir. Elas devem preparar a pessoa para que saia
em condições de ser reabsorvida pela sociedade. E isso não acontece até hoje.
A lerdeza que a senhora mencionou também dificulta o combate
à corrupção, e ajuda a disseminar o sentimento de que corruptos, especialmente
políticos, não são punidos no Brasil. O julgamento do mensalão, que se
aproxima, vai mudar esse roteiro?
Eu não vou participar do julgamento do mensalão, e não me
arrisco a prever seu desfecho. Se não me engano, já foi decretada a prescrição
de um crime. Outros réus talvez sejam condenados a penas pequenas que, pela
passagem do tempo, não será viável executar. De modo geral, contudo, esse
processo andou de maneira célere no Supremo. O relator, ministro Joaquim
Barbosa, já ouviu 600 testemunhas em dois anos. Nenhuma vara criminal neste
país teria tido capacidade para fazê-lo . Isso foi possível, em parte, porque
houve a digitalização completa do processo. Minha primeira observação,
portanto, é que mudanças nos métodos de trabalho podem trazer resultados
fantásticos. O Judiciário ainda lida com práticas herdadas do século XIX, mas
estamos nos livrando de muitas delas, o que deve racionalizar nosso trabalho.Em
segundo lugar, o papel do Supremo não é punir. Mas julgar de maneira correta e
respeitar as garantias que são de todos os cidadãos. Não podemos cercear a defesa,
nem passar por cima dos direitos dos acusados. Isso talvez crie frustrações
momentâneas, mas, a "longo prazo, a consolidação das instituições
democráticas é o que importa.
Nos últimos anos, houve algumas discussões muito ríspidas
entre ministros. O clima no Supremo é tenso?
O tribunal está em paz. E, em geral,o convívio entre os
ministros é muito bom. Discussões acaloradas sempre ocorreram na corte - a
diferença é que atualmente, com a televisão, as reações mais exaltadas ficam à
vista de todos.
É bom que as sessões do Supremo sejam transmitidas ao vivo
pela TV?
Se os ministros tivessem podido votar sobre o assunto lá
atrás, quando o canal foi ao ar, acredito que a maioria teria sido contrária.
Eu mesma não teria aprovado a ideia. Sempre que um juiz estrangeiro visita o
Brasil, a transmissão das sessões ao vivo causa espanto. É algo que não existe
em outros lugares. Para muitos, é uma subversão da lógica de funcionamento de
uma corte suprema. Há tribunais que mantêm em segredo até o nome do relatar de um
processo. Mas agora os benefícios da televisão estão claros. Ela dá grande
transparência à Justiça. Essa transparência é importante, não é possível
regredir. Durante a minha presidência, discutimos a possibilidade de editar as
sessões. Mas aí ficamos com um problema seríssimo: quem faria essa edição? Quem
haveria de cortar a palavra deste ou daquele ministro? Mantivemos o formato,
que está bem aceito pela comunidade jurídica. Mesmo que às vezes deixe os
ministros muito expostos.
Quando a senhora entrou no Supremo, ainda havia ministros
indicados pelo governo militar. Com sua saída, restam apenas três ministros
indicados antes do governo Lula. Quanto a indicação influência a trajetória de
um ministro na corte?
Pertencer ao Supremo, o topo da pirâmide judiciária, é uma
dignidade tão grande que não admite vinculações, subordinações, sujeições a
nenhuma outra instância. A melhor homenagem que um ministro pode fazer ao
presidente que o nomeou é ser um bom juiz. Ou seja, um juiz isento. Não vejo
ninguém atrelado à mesma linha do governo que o nomeou. Seria uma pessoa menor
aquela que se atrelasse a uma linha político-partidária. O Supremo faz, sim,
política. Mas política ampla, de desenvolvimento nacional, de contribuição ao
crescimento do país, de atenção às realidades nacionais. A primeira virtude de
um juiz tem de ser a independência. E a independência não é coisa abstrata. É
independência do poder econômico, do poder político, do poder da imprensa e da
opinião pública, independência dos próprios preconceitos. Felizmente, vejo essa
independência posta em prática diariamente não apenas no Supremo, mas em todo o
Judiciário, que é o menos corrupto dos poderes.
Ellen Gracie.30 Aug 2011
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