Crescente em todo o país, o consumo de crack é uma tragédia
que se consuma em duas frentes. Uma, a da Saúde, produz números cada vez mais
preocupantes sobre a quantidade de usuários entregues ao vício, praticamente
irreversível e com um poder de destruição do corpo que leva, se não à morte em
pouco tempo, mas seguramente a um horrendo processo de degradação física.
Outra, a da Segurança, dá conta de estatísticas, principalmente nos grandes
centros urbanos, que mostram uma relação direta entre a dependência e o aumento
da violência decorrente da criminalidade. Em ambas as áreas, a vítima
preferencial desse horror social são os jovens - o que só torna o fenômeno
ainda mais condenável.
Os dados sobre o aumento do consumo do crack, uma substância
derivada da pasta de cocaína e que provoca dependência quase imediata, sugerem
que o problema deve ser tratado como assunto prioritário. A curva ascendente
foi detectada por organismos como o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e
Crimes (UNODC). Segundo o órgão, a apreensão desse tipo de entorpecente no
Brasil cresceu de 200 quilos em 2002 para quase 600 quilos em 2007 (o
equivalente a 82% de todo o crack apreendido na América do Sul).
A droga já é a segunda maior causa de procura por
atendimento nos centros do SUS especializados em abuso de álcool e tóxicos. No
Rio, o vício se espalha principalmente entre a população de rua, afetando em
geral menores desassistidos de amparo social. Em Salvador, até 2009 quase seis
mil novos usuários haviam passado a ser atendidos por um programa de redução de
danos da Universidade Federal da Bahia. Em Pernambuco, o crack está presente em
todos os 184 municípios do estado - um quadro que se estende a quase todo o
Nordeste. Em São Paulo e Minas, é assustador o aumento do consumo. Em Porto
Alegre, um levantamento entre pacientes internados por dependência química
mostrou, já em 2006, que 43% eram usuários de crack. Decorrente desse quadro de
virtual epidemia, o consumo do crack liga-se diretamente ao aumento de
indicadores de violência, principalmente homicídios.
Trata-se de uma tragédia que exige respostas imediatas do
poder público e da sociedade como um todo. Neste sentido, é altamente positiva
a decisão do município do Rio de recolher compulsoriamente a centros de
internação menores flagrados no uso da droga em áreas conhecidas como
cracolândias. A iniciativa, que começou a ser adotada no início de junho,
logrou tirar das ruas, até a segunda quinzena de julho, 51 jovens dependentes.
Logo em seguida, a prefeitura de São Paulo também anunciou adesão à política de
internação compulsória, a ser implementada a partir de um parecer da
Procuradoria Geral do Município.
São passos importantes, mas tímidos, por pontuais. As duas
cidades e, de resto, todo o país, ainda não têm uma estrutura de atendimento
aos dependentes em escala capaz de dar conta da crescente demanda de vítimas do
vício. E recolher sem tratar corresponde apenas a manter uma realidade na qual,
uma vez de volta às ruas, o usuário se reencontra com a droga. Também não
contribuem para enfrentar o problema críticas a programas de internação, com
argumentos segundo os quais, ao recolher menores viciados, o poder público lhes
está negando o direito de ir e vir, e "sociologismos" do tipo. O
flagelo é real, mostram os números e uma extensa crônica de tragédias
provocadas pela droga. É uma luta sem espaço para a hipocrisia.
Recolher não é acolher - Wanderley Rebello Filho
TEMA EM DISCUSSÃO: Internação compulsória de menores
viciados em crack
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência e discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão. Isto é o que consta do artigo 227
da Constituição. Há muito aprendi a não aceitar as coisas como elas são, e vou
continuar assim. Doa a quem doer!
Crianças não têm educação, não têm profissionalização, não
têm alimentação, não têm lazer, e agora não têm liberdade. Há um futuro sombrio
para elas! Em reunião recente de que participei na OAB/RJ, sobre o tema
"Recolher não é acolher", tomei conhecimento de detalhes das
operações da Secretaria municipal de Assistência Social, sob o aval do MP e da
Justiça. Trata-se do recolhimento e internação compulsórios de crianças e
adolescentes, já tendo sido recolhidas mais de 240, sendo que destas, de acordo
com a SMAS, apenas cerca de 80 estariam recolhidas. Mas estariam elas em locais
adequados e com toda a assistência necessária? Dizem que não! Dizem que a
natureza dessa operação é higienista? Espero que não seja!
Uma coisa eu sei: jamais funcionaram quaisquer ações que
elejam a internação compulsória para posterior tratamento de dependentes
químicos, ainda mais em se tratando de crianças e adolescentes que pertencem às
classes populares menos favorecidas, em situação de rua. O "querer se
tratar" é fundamental. Aprisionar para tratar - é isto que pode estar
acontecendo - me assusta. Pode produzir resultados piores do que a própria
dependência. O crack invade as ruas e quem paga é o usuário. Poucos traficantes
são presos, a polícia não chega nem perto de alguma repressão, e quem vai para
uma cadeia travestida de "acolhimento" são as crianças e os
adolescentes.
Tem até certa razão o secretário quando disse que
"ninguém faz nada", e que ele, ao menos, está tentando "fazer
alguma coisa por essas crianças". Acho até que há boas intenções na
iniciativa, mas elas só serão dignas de crédito quando houver mais
transparência. Eu mesmo fui convidado a visitar a Casa Viva, em Laranjeiras,
desde que marcasse dia e hora. Com hora marcada não visito mais nada! Minha
experiência no Conselho Penitenciário do Estado me mostrou as maquiagens que
são feitas nessas "cadeias" quando vão receber inspeções. Dizem que
há crianças gritando diariamente nesses locais, já há denúncias de violências e
de fugas, entre outras mazelas. Há uma linha tênue que separa o que é
"Casa Viva" e o que pode ser uma casa de morte; que separa o que é
recolher para tratar do que é recolher para torturar; que separa o que é céu do
que é inferno para crianças e adolescentes. Cada um faz o seu currículo de
vida, e não gostaria que isto desse errado para o signatário da medida.
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