sexta-feira, 30 de abril de 2010
A moeda
Não há legislação para a música como não há legislação para a doença. A natureza é ilegal e bruta e nós não somos natureza enquanto estamos vivos e ricos, com o corpo esquecido. Mas quando somos velhos somos natureza e quando estamos doentes somos natureza, e quando morremos somos ainda natureza.
E não ter dinheiro é isso: é ser mais natureza, estar mais dependente da falta de legislação que há na música e nos bichos: as coisas escuras amedrontam, tornam-te cobarde, escondes os teus filhos atrás do teu corpo, mas sabes que a bala virá por trás.
Dizem que Lúcifer caiu durante nove dias, mas tal viagem não amedronta ninguém. Não foi uma queda, foi um passeio. Porque nove dias são nove dias, por isso o diabo caiu tão bem, com a roupa direita, engravatado, sem uma dorzinha. Percorre as ruas e parece aos outros o corpo de quem subiu até aqui, e não de quem desceu tanto: nove dias, dizem, foram os dias que demorou Lúcifer a cair.
A maldade não se distingue; como as meninas gémeas que vão para o colégio de mãos dadas, com a vestimenta azul, igual. A maldade não tem uma marca na testa como as vacas que têm doenças e foram marcadas na testa pelo dono.
- Esta é para ser morta, não é para ser vendida.
A doença tem marcas, a pobreza tem marcas, mas a maldade não tem marcas. Os feios têm marcas.
Um vagabundo pedia esmola num semáforo. Passou de um carro para outro, depois para outro. Um deles abriu o vidro da sua porta só uns centímetros e deixou cair uma moeda valiosa ao chão, depois arrancou porque o semáforo estava verde. O pedinte baixou-se para apanhar a moeda e veio um carro que só viu o semáforo verde e atropelou-o. Apanhou-o em cheio, partiu-lhe os ossos da anca.
Já numa maca, em cima do passeio, o dedo esticado do vagabundo não era compreendido por ninguém porque ele não conseguia falar.
- Alguém conhece este homem? Sabem se já não falava antes?
Ele apontava para a moeda no meio da estrada, mas ninguém percebia. E foi levado.
( A química não estuda aquilo que muda na matéria quando a matéria é o nosso corpo e alguém o abraça no momento exacto.)
Três meses depois, quando saiu do hospital, ele coxeava e não falava. Ninguém sabe se foi do acidente ou se antes já ele era mudo e com olhos de louco, porque ninguém o conhecia. (Ninguém podia confirmar se ele já era louco antes. Mas agora era louco.) Nesse mesmo dia ele foi ao sítio do acidente e no meio da estrada perigosa ainda estava a moeda. Meteu-a no bolso. um carro aproximou-se e ele correu para o passeio. Ficou em segurança e acariciou a moeda com os dedos.
Do carro, que novamente quase o atropelara, uma mulher chamou-lhe maluco. Mas ele, o louco, estava contente.
Conto de Gonçalo M.Tavares, incluído no livro "água, cão, cavalo, cabeça", Ed. Caminho
E não ter dinheiro é isso: é ser mais natureza, estar mais dependente da falta de legislação que há na música e nos bichos: as coisas escuras amedrontam, tornam-te cobarde, escondes os teus filhos atrás do teu corpo, mas sabes que a bala virá por trás.
Dizem que Lúcifer caiu durante nove dias, mas tal viagem não amedronta ninguém. Não foi uma queda, foi um passeio. Porque nove dias são nove dias, por isso o diabo caiu tão bem, com a roupa direita, engravatado, sem uma dorzinha. Percorre as ruas e parece aos outros o corpo de quem subiu até aqui, e não de quem desceu tanto: nove dias, dizem, foram os dias que demorou Lúcifer a cair.
A maldade não se distingue; como as meninas gémeas que vão para o colégio de mãos dadas, com a vestimenta azul, igual. A maldade não tem uma marca na testa como as vacas que têm doenças e foram marcadas na testa pelo dono.
- Esta é para ser morta, não é para ser vendida.
A doença tem marcas, a pobreza tem marcas, mas a maldade não tem marcas. Os feios têm marcas.
Um vagabundo pedia esmola num semáforo. Passou de um carro para outro, depois para outro. Um deles abriu o vidro da sua porta só uns centímetros e deixou cair uma moeda valiosa ao chão, depois arrancou porque o semáforo estava verde. O pedinte baixou-se para apanhar a moeda e veio um carro que só viu o semáforo verde e atropelou-o. Apanhou-o em cheio, partiu-lhe os ossos da anca.
Já numa maca, em cima do passeio, o dedo esticado do vagabundo não era compreendido por ninguém porque ele não conseguia falar.
- Alguém conhece este homem? Sabem se já não falava antes?
Ele apontava para a moeda no meio da estrada, mas ninguém percebia. E foi levado.
( A química não estuda aquilo que muda na matéria quando a matéria é o nosso corpo e alguém o abraça no momento exacto.)
Três meses depois, quando saiu do hospital, ele coxeava e não falava. Ninguém sabe se foi do acidente ou se antes já ele era mudo e com olhos de louco, porque ninguém o conhecia. (Ninguém podia confirmar se ele já era louco antes. Mas agora era louco.) Nesse mesmo dia ele foi ao sítio do acidente e no meio da estrada perigosa ainda estava a moeda. Meteu-a no bolso. um carro aproximou-se e ele correu para o passeio. Ficou em segurança e acariciou a moeda com os dedos.
Do carro, que novamente quase o atropelara, uma mulher chamou-lhe maluco. Mas ele, o louco, estava contente.
Conto de Gonçalo M.Tavares, incluído no livro "água, cão, cavalo, cabeça", Ed. Caminho
Outro desastre
Uma vez senti algo semelhante. Tinha que pagar a um oculista. Levava o cheque já preenchido. Cheguei ao sítio e disseram-me: Morreu ontem, num desastre de carro. Tinha o cheque em nome dele, e agora estava morto. O primeiro pensamento foi: se eu tenho um cheque para lhe pagar, ele não pode estar morto. O segundo pensamento, passado uns segundos, foi: como é que a tua cabeça foi capaz de ter aquele 2º pensamento? O quarto foi: toda a gente pensa todas as hipóteses numa situação, mesmo as hipóteses mais nojentas.
Mas o senhor tinha um pai ainda vivo, e eu rasguei o cheque antigo e escrevi o nome do pai no cheque - era quase o mesmo, só mudava a primeira palavra. Estávamos os dois num restaurante de comidas rápidas, de pé. E o pai do meu oculista, que morrera num desastre de automóvel dois dias antes, estava vestido de preto e estava triste, falava pouco, e tinha os olhos baixos. Mas recebeu o cheque.
Conto de Gonçalo M. Tavares, incluído no livro " água, cão, cavalo, cabeça ", Ed.Caminho
Mas o senhor tinha um pai ainda vivo, e eu rasguei o cheque antigo e escrevi o nome do pai no cheque - era quase o mesmo, só mudava a primeira palavra. Estávamos os dois num restaurante de comidas rápidas, de pé. E o pai do meu oculista, que morrera num desastre de automóvel dois dias antes, estava vestido de preto e estava triste, falava pouco, e tinha os olhos baixos. Mas recebeu o cheque.
Conto de Gonçalo M. Tavares, incluído no livro " água, cão, cavalo, cabeça ", Ed.Caminho
Os vivos
Claro, a raiva domestica-se como os cães. Mas, certas vezes, alguém cede e atira uma bala a dois metros na cara do outro, em pleno café.
Uma tese; esta.
«Um homem só pode actuar porque pode ignorar, e contentar-se com uma parte do conhecimento.» (E sobre o conhecimento escreve que é o capricho particular do homem: ultrapassa o necessário.)
Tens dois metros para saltar e saltas quatro, mas esses dois a mais nada contam senão para o orgulho: não recebes mais pontos nem menos doenças: foi exibida uma habilidade, e é tudo.
As oportunidades de suícidio perdem-se como as moedas. Mas se fazem muito barulho a cair no chão, voltas atrás, baixas o corpo e recuperas essa moeda: guarda-a bem, um dia poderás ter que a utilizar.
A mesma moeda que não sai da posse da mesma pessoa. É imaginar um acaso destes, quinze anos com a mesma moeda: foi um acaso, nada de intencional.
Atirou-se da ponte. Parou o carro. Andou uns metros sobre a ponte. E depois atirou-se. No funeral, mulheres choravam e homens que choravam sem esconder a cara: nada assusta mais que uma coisa vertical e séria que chora, aceitação de tudo: eu aceito, ele aceita, todos aceitam.
E, claro, a ponte: o suicídio. É que por vezes é a raiva que domestica o corpo. Nem sempre os vivos são fortes como alguns vivos são fortes.
Conto de Gonçalo M.Tavares, incluído no livro " água, cão,cavalo, cabeça ", Ed. Caminho
Uma tese; esta.
«Um homem só pode actuar porque pode ignorar, e contentar-se com uma parte do conhecimento.» (E sobre o conhecimento escreve que é o capricho particular do homem: ultrapassa o necessário.)
Tens dois metros para saltar e saltas quatro, mas esses dois a mais nada contam senão para o orgulho: não recebes mais pontos nem menos doenças: foi exibida uma habilidade, e é tudo.
As oportunidades de suícidio perdem-se como as moedas. Mas se fazem muito barulho a cair no chão, voltas atrás, baixas o corpo e recuperas essa moeda: guarda-a bem, um dia poderás ter que a utilizar.
A mesma moeda que não sai da posse da mesma pessoa. É imaginar um acaso destes, quinze anos com a mesma moeda: foi um acaso, nada de intencional.
Atirou-se da ponte. Parou o carro. Andou uns metros sobre a ponte. E depois atirou-se. No funeral, mulheres choravam e homens que choravam sem esconder a cara: nada assusta mais que uma coisa vertical e séria que chora, aceitação de tudo: eu aceito, ele aceita, todos aceitam.
E, claro, a ponte: o suicídio. É que por vezes é a raiva que domestica o corpo. Nem sempre os vivos são fortes como alguns vivos são fortes.
Conto de Gonçalo M.Tavares, incluído no livro " água, cão,cavalo, cabeça ", Ed. Caminho
« Son poco más de 500 y siguen tácticas de guerrilla urbana en un tablero muy proclive al juego del ratón y el gato, la intrincada topografía del centro de la ciudad de Atenas. Los protagonistas de la violencia que desde hace una semana sacude Grecia pertenecen a grupos anarquistas, antisistema y autogestionarios, depositarios en parte de una larga tradición de resistencia juvenil, pero también herederos lejanos del grupo guerrillero Lucha Popular Revolucionaria (ELA, en sus siglas en griego), desarticulado a finales de los noventa del pasado siglo y responsable de la colocación de 200 artefactos explosivos y de dos asesinatos políticos entre 1975 y 1995.» El País Online, 15/12/2008
Etiquetas: Dealema, Música
A lição grega
«¿Cuál es el telón de fondo que ha propiciado este estallido de violencia? En primer lugar, y antes que nada, la existencia de una clase política totalmente distanciada del ciudadano. El Gobierno -pasivo, hermético- ha generado un clientelismo que no ha hecho sino agrandar la fractura social entre élites y clase dirigente y el pueblo, en el que hay que incluir a una gran clase media y a la pequeña burguesía. Ha sido, además, un Gobierno de corrupciones y escándalos económicos continuos, como el que se conoció hace poco entre un miembro del Gobierno y su familia y el monasterio de Vatopedi, en el intocable Agion Oros -Monte Athos-, que ha producido secuelas importantes en la omnipresente Iglesia ortodoxa griega, inmensa fuente de votos del partido en el Gobierno. En el otro lado lo que existe es una oposición endeble y posibilista, poco ambiciosa, cansada y desconfiada, con una izquierda comunista dividida internamente, en particular en estos días en que las distintas facciones se han acusado mutuamente de provocar las manipulaciones violentas de los encapuchados (los koukouloforoi), que han dirigido las acciones destructoras. Una clase política, en definitiva, descreída e incapaz de salvaguardar el orden público mediante el buen funcionamiento de las instituciones del Estado.
En segundo lugar, unas reformas educativas polémicas, en las que no han participado ni han sido aceptadas por maestros, padres y alumnos. Lo que existe en Grecia es un sistema universitario público inamovible e incapaz de garantizar ni el más mínimo acceso profesional a sus egresados, enfrentado a la enseñanza privada -que ahora se pretende formalmente autorizar pero que lleva ya tiempo muy presente en la sociedad griega, sobre todo la relacionada con Estados Unidos-. Unos estudiantes masificados en una universidad pública con aún menos medios que la nuestra, y en la que también se eternizan los jóvenes sin futuro alguno, obligados a permanecer en la casa paterna por la carestía de la vida y de la vivienda hasta ser treintañeros, cuando podrán pasar a una vida profesional precaria (ni siquiera como mileuristas, en todo caso como ochocientoseuristas).»Blanca Vilà, El País Online, 16/12/2008
A lição grega
«¿Cuál es el telón de fondo que ha propiciado este estallido de violencia? En primer lugar, y antes que nada, la existencia de una clase política totalmente distanciada del ciudadano. El Gobierno -pasivo, hermético- ha generado un clientelismo que no ha hecho sino agrandar la fractura social entre élites y clase dirigente y el pueblo, en el que hay que incluir a una gran clase media y a la pequeña burguesía. Ha sido, además, un Gobierno de corrupciones y escándalos económicos continuos, como el que se conoció hace poco entre un miembro del Gobierno y su familia y el monasterio de Vatopedi, en el intocable Agion Oros -Monte Athos-, que ha producido secuelas importantes en la omnipresente Iglesia ortodoxa griega, inmensa fuente de votos del partido en el Gobierno. En el otro lado lo que existe es una oposición endeble y posibilista, poco ambiciosa, cansada y desconfiada, con una izquierda comunista dividida internamente, en particular en estos días en que las distintas facciones se han acusado mutuamente de provocar las manipulaciones violentas de los encapuchados (los koukouloforoi), que han dirigido las acciones destructoras. Una clase política, en definitiva, descreída e incapaz de salvaguardar el orden público mediante el buen funcionamiento de las instituciones del Estado.
En segundo lugar, unas reformas educativas polémicas, en las que no han participado ni han sido aceptadas por maestros, padres y alumnos. Lo que existe en Grecia es un sistema universitario público inamovible e incapaz de garantizar ni el más mínimo acceso profesional a sus egresados, enfrentado a la enseñanza privada -que ahora se pretende formalmente autorizar pero que lleva ya tiempo muy presente en la sociedad griega, sobre todo la relacionada con Estados Unidos-. Unos estudiantes masificados en una universidad pública con aún menos medios que la nuestra, y en la que también se eternizan los jóvenes sin futuro alguno, obligados a permanecer en la casa paterna por la carestía de la vida y de la vivienda hasta ser treintañeros, cuando podrán pasar a una vida profesional precaria (ni siquiera como mileuristas, en todo caso como ochocientoseuristas).»Blanca Vilà, El País Online, 16/12/2008
" Não era daqueles que mal chegavam a todo aquele caos de violência ficavam impacientes por se lançarem ao barulho, daqueles que não regulavam muito bem ou eram muito agressivos por natureza e a quem bastava a mais pequena oportunidade para ficarem loucos violentos. Havia um tipo na sua unidade, um indivíduo a quem chamavam Calmeirão, que um ou dois dias depois de chegar abrira o ventre de uma mulher grávida. Farley só começara a tornar-se bom naquilo no fim da sua primeira vez. Mas na segunda, naquela unidade onde havia uma quantidade de outros tipos que também tinham voltado e não o haviam feito apenas para matar tempo ou ganhar umas massas extra, naquela segunda vez na companhia de tipos sempre ansiosos para serem postos na frente, tipos chalados que tinham consciência do horror mas sabiam que era o melhor momento das suas vidas, tornou-se também chalado, igual a eles. Debaixo de fogo, a fugir do perigo, com armas a disparar por todos os lados, é impossível não sentir medo, mas um tipo pode passar-se e ficar eufórico e temerário, e por isso, na segunda vez, ele passou-se. Na segunda vez apoderou-se dele o frenesi da fúria e espalhou o caos e a destruição. Estar ali à beira do abismo, a todo o gás, ébrio de excitação e medo: não há na vida civil nada que se possa comparar a isso. "
Excerto de " A Mancha humana ", de Philip Roth, Trd. Fernanda Pinto Rodrigues
" Uma multidão de soldados alinhados transforma-se em mancha; um erva preta com capacete por cima; uma erva com a cabeça dilatada, mas estúpida, como caíste no erro de querer defender o abstracto?
Uma prostituta despiu-se à frente do soldado mantendo as meias pretas.
- Tens cancro?
A prostituta encontra-se nua, nua em frente de um soldado que ainda não desapertou sequer um botão, um soldado que tem uma arma e força; e tem dinheiro e ela não, e tem o poder de ainda permanecer vestido, de não parecer ridículo, porque a prostituta é ridícula, não é bonita nem feia, é ridícula, meias pretas de sedutora, a anca para fora à sedutora, mas é ridícula, gorda em sítios ridículos, posições exageradas.
E foi ela que perguntou:
- Tens cancro?
O soldado não tem cabelo, mas tem uma arma. Quando tirou o capacete mostrou que não tinha cabelo, e quando retirou a arma do cinto mostrou que tinha arma.
- Pareces doente com essa careca."
Excerto de " As ervas daninhas ", de Gonçalo M.Tavares
Excerto de " A Mancha humana ", de Philip Roth, Trd. Fernanda Pinto Rodrigues
" Uma multidão de soldados alinhados transforma-se em mancha; um erva preta com capacete por cima; uma erva com a cabeça dilatada, mas estúpida, como caíste no erro de querer defender o abstracto?
Uma prostituta despiu-se à frente do soldado mantendo as meias pretas.
- Tens cancro?
A prostituta encontra-se nua, nua em frente de um soldado que ainda não desapertou sequer um botão, um soldado que tem uma arma e força; e tem dinheiro e ela não, e tem o poder de ainda permanecer vestido, de não parecer ridículo, porque a prostituta é ridícula, não é bonita nem feia, é ridícula, meias pretas de sedutora, a anca para fora à sedutora, mas é ridícula, gorda em sítios ridículos, posições exageradas.
E foi ela que perguntou:
- Tens cancro?
O soldado não tem cabelo, mas tem uma arma. Quando tirou o capacete mostrou que não tinha cabelo, e quando retirou a arma do cinto mostrou que tinha arma.
- Pareces doente com essa careca."
Excerto de " As ervas daninhas ", de Gonçalo M.Tavares
"...ninguém conhece a dor de ninguém, os maus pensamentos de ninguém, e na azamboada cabeça do criminoso atropelam-se as orgulhosas desculpas, os tímidos e nervosos argumentos, é fácil transformar um homem normal e pachorrento num criminoso, basta colocar-lhe uma arma na mão e convencê-lo de que Deus está com ele e ele com os serenos desígnios de Deus, os crimes desenham-se com muita nitidez na cabeça do criminoso, o mau é o testemunho do cauteloso espião de Deus,..."
Excerto de " Madeira de Buxo ", de Camilo José Cela, Trd. Luís Filipe Sarmento
Excerto de " Madeira de Buxo ", de Camilo José Cela, Trd. Luís Filipe Sarmento
A menopausa
Fui chamado com urgência a casa dos veneráveis senhores de Ordeaz. A Menina Rosalía, a mais robusta e alta daquela casa, uma jovem com ar de comandante em vias de promoção, encontrava-se em pleno delírio de alegria, a dançar diante dos espelhos... E logo ela, que era tão formal!
Fui dar com ela, de facto, envergando um roupão solto e uma simples combinação, rindo à gargalhada, sentada num baloiço. Uma autêntica cena de pátio andaluz em dia de Verão, cuja origem só poderia residir nalgum acontecimento muitíssimo agradável.
- Estará louca? - perguntaram-me os pais, consternados. - Os médicos que a viram disseram que endoideceu de todo e que vai ser preciso interná-la...
- Nada disso - respondi-lhes eu -; os senhores devem é associar-se ao acontecimento que ela hoje festeja...
Coitada! Está hoje a despedir-se da vida passada, hoje que a sua vida genésica acabou... A natureza celebra a sua última festa, aquilo a que em Medicina se chama menopausa... Tragam doçarias, pastéis e umas garrafas de xerez...
É preciso embebedá-la e fazer que depois durma o longo e restaurador sono dos bêbados.
Capítulo de " O médico inverosímil ", de Ramón Gómez de la Serna, Trd. Júlio Henriques, Ed. Antígona
Fui dar com ela, de facto, envergando um roupão solto e uma simples combinação, rindo à gargalhada, sentada num baloiço. Uma autêntica cena de pátio andaluz em dia de Verão, cuja origem só poderia residir nalgum acontecimento muitíssimo agradável.
- Estará louca? - perguntaram-me os pais, consternados. - Os médicos que a viram disseram que endoideceu de todo e que vai ser preciso interná-la...
- Nada disso - respondi-lhes eu -; os senhores devem é associar-se ao acontecimento que ela hoje festeja...
Coitada! Está hoje a despedir-se da vida passada, hoje que a sua vida genésica acabou... A natureza celebra a sua última festa, aquilo a que em Medicina se chama menopausa... Tragam doçarias, pastéis e umas garrafas de xerez...
É preciso embebedá-la e fazer que depois durma o longo e restaurador sono dos bêbados.
Capítulo de " O médico inverosímil ", de Ramón Gómez de la Serna, Trd. Júlio Henriques, Ed. Antígona
Em 33 rotações
" O disco chega ao fim. A agulha ergue-se e o braço regressa ao seu suporte. O empregado do bar aproxima-se do gira-discos para mudar o 33 rotações. Levanta com todo o cuidado o LP de vinil e guarda-o dentro da respectiva capa. Depois tira outro, examina a superfície à luz e coloca-o em cima do prato. Carrega no botão e a agulha desce sobre o disco. Ouve-se um leve arranhar, após o que «Sophisticated Lady» de Duke Ellington começa a tocar. Ouve-se um solo calmo de Harry Carney no clarinete baixo. O barman move-se com todo o vagar, fazendo com que o tempo no bar se escoe a um ritmo muito próprio.
Mari pergunta ao homem:
- Só põe a tocar discos de vinil?
- Não gosto de CD - responde ele.
- Porquê?
- São demasiado brilhantes.
Kaoru mete a sua colherada.
- Por acaso é algum corvo ou quê?
- Com o vinil, a chatice é ter de estar sempre a mudar o disco - diz Mari.
O barman ri-se.
- Repare, estamos a meio da noite. Não há comboios até de manhã. Qual é a pressa?
Excerto de " After Dark/Os passageiros da Noite ", de Haruki Murakami, Trd. Maria João Lourenço, Ed. Casa das Letras
Mari pergunta ao homem:
- Só põe a tocar discos de vinil?
- Não gosto de CD - responde ele.
- Porquê?
- São demasiado brilhantes.
Kaoru mete a sua colherada.
- Por acaso é algum corvo ou quê?
- Com o vinil, a chatice é ter de estar sempre a mudar o disco - diz Mari.
O barman ri-se.
- Repare, estamos a meio da noite. Não há comboios até de manhã. Qual é a pressa?
Excerto de " After Dark/Os passageiros da Noite ", de Haruki Murakami, Trd. Maria João Lourenço, Ed. Casa das Letras
A seita dos trinta
O manuscrito original pode ser consultado na Biblioteca de Leiden; está em latim mas helenismos vários justificam a conjectura de o terem traduzido do grego. Segundo Leisegang, data do século quarto da era cristã. De passagem Gibbon menciona-o numa das notas do capítulo décimo quinto do seu "Decline and Fall". Reza o autor anónimo:
...« A Seita nunca foi numerosa e já são raros os seus prosélitos. Dizimados pelo ferro e pelo fogo, dormem na berma dos caminhos ou nas ruínas que a guerra perdoou, já que vedado lhes é construir habitações. Costumam andar do conhecimento geral; proponho-me agora sua doutrina e s seus hábitos. Discuti com os mestres da Seita, demoradamente, e não consegui convertê-los à Fé do Senhor.
«Atraiu logo a minha atenção a diversidade dos pareceres que têm sobre os mortos. Julgam os mas incultos que os espíritos de quem deixou esta vida se encarregam de os enterrar; outros, que à letra se não agarram, que a repreensão de Jesus: Deixa que os mortos enterrem os seus mortos condena a vaidade pomposa dos nossos ritos fúnebres.
«O conselho de vender o que temos, e dá-lo aos pobres, é rigorosamente acatado por todos; os primeiros beneficiados dão-no a outros, e estes a outros. Assim ficam suficientemente explicadas a inteligência e a nudez que os avizinha, também, do estado paradisíaco. Repetem com fervor estas palavras: Olhai os corvos, que não semeiam nem ceifam; que não têm celeiro nem guarda de celeiro, e Deus alimenta-os. Quanto mais valiosos não sois do que as aves? O texto prescreve a poupança: Se Deus veste a erva que existe hoje no campo, e amanhã é lançada ao forno, quanto mais vós, homens de pouca fé? Não procureis o que comer, o que beber; nem viveis em ansiosa perplexidade.
«O preceito: Quem olha uma mulher, para cobiçá-la, já com ela praticou o adultério no seu coração é um iniludível conselho de pureza. Muitos sectários, porém, afirmam que não existe homem debaixo dos céus isento desse olhar de cobiça deitado a uma mulher, e já todos praticámos, portanto, o adultério.
Como o desejo não é menos culposo do que o acto, podem os justos praticar sem risco o exercício da mais desbragada luxúria.
«A Seita evita as igrejas; os seus doutores pregam ao ar livre, de cima de um outeiro ou de um muro, às vezes de um barco em terra.
«O nome da Seita suscitou bem acesas conjecturas. Pretende uma delas que traduz o número a que os fiéis se reduziram, coisa irrisória mas profética pois a Seita, dada a perversa doutrina que perfilha, está predestinada a morrer. Outra fá-lo derivar da altura da arca, que era de trinta côvados;outra, falseando a astronomia, do número de noites que é a soma de cada mês lunar; outra do baptismo do Salvador; outra dos anos de Adão quando surgiu do pó vermelho. Todas são igualmente falsas. E não menos mentiroso é o catálogo de trinta divindades ou tronos, um deles Abraxas representando com cabeça de galo, braços e torso de homem, com um remate de serpente enroscada.
«Sei a Verdade mas não posso discorrer sobre a Verdade. O inapreciável dom de transmiti-la não me foi concedido. Que outros, mais felizes do que eu, salvem os sectários pela palavra. Pela palavra ou pelo fogo. Mais vale sermos executados do que matar-nos. Por isso vou limitar-me à exposição desta abominável heresia.
«O Verbo fez-se carne para ser homem entre os homens que iriam entregá-lo à cruz, e ser por Ele redimidos. Nasceu do ventre de uma mulher do povo eleito, não só para pregar o amor como sofrer o martírio.
«Era preciso que as coisas fossem inesquecíveis. A morte de um ser humano pelo ferro ou pela cicuta não bastava para ferir a imaginação dos homens até ao fim dos dias.
O Senhor preparou os factos de uma forma patética. Assim se explicam a última ceia, as palavras de Jesus que pressagiam a entrega, o repetido sinal a um dos discípulos, a benção do pão e do vinho, o suor parecido com sangue, as espadas, o beijo que atraiçoa, o Piltos que lava as mãos, a flagelação, o escárnio, os espinhos, a púrpura e o ceptro de caniço, o vinagre com fel, a Cruz no alto de uma colina, a promessa ao bom ladrão, a terra que treme e as trevas.
«A misericórdia divina, à qual tantas graças devo, permitiu-me descobrir a razão autêntica e secreta do nome da Seita. Em Kerioth, onde é verosímil que ela tenha nascido, perdura um conventículo alcunhado dos Trinta Dinheiros. Foi este o primitivo nome, que nos dá a chave. Na tragédia da Cruz - com a devida reverência o escrevo - houve actores voluntários e involuntários, todos imprescindíveis, todos fatais. Foram involuntários os sacerdotes que entregaram os dinheiros de prata, involuntária foi a plebe que escolheu Barrabás, involuntário o procurador da Judeia, involuntários foram os romanos que levantaram a Cruz do Seu martírio e pregaram os cravos e jogaram aos dados. Voluntários só dois: o Redentor e Judas. Este rejeitou as trinta moedas, que eram preço da salvação das almas, e a seguir enforcou-se. Na altura tinha trinta e três anos como o Filho do Homem. A Seita venera-os por igual e absolve os outros.
«Não existe só um culpado; convicto ou não, ninguém há que não seja executor do plano que a Sabedoria traçou. Agora todos partilham a glória.
«A minha mão não resiste a escrever outra coisa abominável. Ao cumprir a idade assinalada, deixam os iniciados que escarneçam deles e os crucifiquem no alto de um monte para seguirem o exemplo dos seus mestres.
Esta criminosa violação do quinto mandamento deve ser reprimida com o rigor sempre exigido pelas leis humanas e divinas. Que as maldições do Firmamento, que o ódio dos anjos»...
Não se encontra o fim do manuscrito.
Conto de Jorge Luís Borges, incluído no livro "O Livro de Areia", Trd. Aníbal Fernandes, Ed. Livro B, Editorial Estampa
...« A Seita nunca foi numerosa e já são raros os seus prosélitos. Dizimados pelo ferro e pelo fogo, dormem na berma dos caminhos ou nas ruínas que a guerra perdoou, já que vedado lhes é construir habitações. Costumam andar do conhecimento geral; proponho-me agora sua doutrina e s seus hábitos. Discuti com os mestres da Seita, demoradamente, e não consegui convertê-los à Fé do Senhor.
«Atraiu logo a minha atenção a diversidade dos pareceres que têm sobre os mortos. Julgam os mas incultos que os espíritos de quem deixou esta vida se encarregam de os enterrar; outros, que à letra se não agarram, que a repreensão de Jesus: Deixa que os mortos enterrem os seus mortos condena a vaidade pomposa dos nossos ritos fúnebres.
«O conselho de vender o que temos, e dá-lo aos pobres, é rigorosamente acatado por todos; os primeiros beneficiados dão-no a outros, e estes a outros. Assim ficam suficientemente explicadas a inteligência e a nudez que os avizinha, também, do estado paradisíaco. Repetem com fervor estas palavras: Olhai os corvos, que não semeiam nem ceifam; que não têm celeiro nem guarda de celeiro, e Deus alimenta-os. Quanto mais valiosos não sois do que as aves? O texto prescreve a poupança: Se Deus veste a erva que existe hoje no campo, e amanhã é lançada ao forno, quanto mais vós, homens de pouca fé? Não procureis o que comer, o que beber; nem viveis em ansiosa perplexidade.
«O preceito: Quem olha uma mulher, para cobiçá-la, já com ela praticou o adultério no seu coração é um iniludível conselho de pureza. Muitos sectários, porém, afirmam que não existe homem debaixo dos céus isento desse olhar de cobiça deitado a uma mulher, e já todos praticámos, portanto, o adultério.
Como o desejo não é menos culposo do que o acto, podem os justos praticar sem risco o exercício da mais desbragada luxúria.
«A Seita evita as igrejas; os seus doutores pregam ao ar livre, de cima de um outeiro ou de um muro, às vezes de um barco em terra.
«O nome da Seita suscitou bem acesas conjecturas. Pretende uma delas que traduz o número a que os fiéis se reduziram, coisa irrisória mas profética pois a Seita, dada a perversa doutrina que perfilha, está predestinada a morrer. Outra fá-lo derivar da altura da arca, que era de trinta côvados;outra, falseando a astronomia, do número de noites que é a soma de cada mês lunar; outra do baptismo do Salvador; outra dos anos de Adão quando surgiu do pó vermelho. Todas são igualmente falsas. E não menos mentiroso é o catálogo de trinta divindades ou tronos, um deles Abraxas representando com cabeça de galo, braços e torso de homem, com um remate de serpente enroscada.
«Sei a Verdade mas não posso discorrer sobre a Verdade. O inapreciável dom de transmiti-la não me foi concedido. Que outros, mais felizes do que eu, salvem os sectários pela palavra. Pela palavra ou pelo fogo. Mais vale sermos executados do que matar-nos. Por isso vou limitar-me à exposição desta abominável heresia.
«O Verbo fez-se carne para ser homem entre os homens que iriam entregá-lo à cruz, e ser por Ele redimidos. Nasceu do ventre de uma mulher do povo eleito, não só para pregar o amor como sofrer o martírio.
«Era preciso que as coisas fossem inesquecíveis. A morte de um ser humano pelo ferro ou pela cicuta não bastava para ferir a imaginação dos homens até ao fim dos dias.
O Senhor preparou os factos de uma forma patética. Assim se explicam a última ceia, as palavras de Jesus que pressagiam a entrega, o repetido sinal a um dos discípulos, a benção do pão e do vinho, o suor parecido com sangue, as espadas, o beijo que atraiçoa, o Piltos que lava as mãos, a flagelação, o escárnio, os espinhos, a púrpura e o ceptro de caniço, o vinagre com fel, a Cruz no alto de uma colina, a promessa ao bom ladrão, a terra que treme e as trevas.
«A misericórdia divina, à qual tantas graças devo, permitiu-me descobrir a razão autêntica e secreta do nome da Seita. Em Kerioth, onde é verosímil que ela tenha nascido, perdura um conventículo alcunhado dos Trinta Dinheiros. Foi este o primitivo nome, que nos dá a chave. Na tragédia da Cruz - com a devida reverência o escrevo - houve actores voluntários e involuntários, todos imprescindíveis, todos fatais. Foram involuntários os sacerdotes que entregaram os dinheiros de prata, involuntária foi a plebe que escolheu Barrabás, involuntário o procurador da Judeia, involuntários foram os romanos que levantaram a Cruz do Seu martírio e pregaram os cravos e jogaram aos dados. Voluntários só dois: o Redentor e Judas. Este rejeitou as trinta moedas, que eram preço da salvação das almas, e a seguir enforcou-se. Na altura tinha trinta e três anos como o Filho do Homem. A Seita venera-os por igual e absolve os outros.
«Não existe só um culpado; convicto ou não, ninguém há que não seja executor do plano que a Sabedoria traçou. Agora todos partilham a glória.
«A minha mão não resiste a escrever outra coisa abominável. Ao cumprir a idade assinalada, deixam os iniciados que escarneçam deles e os crucifiquem no alto de um monte para seguirem o exemplo dos seus mestres.
Esta criminosa violação do quinto mandamento deve ser reprimida com o rigor sempre exigido pelas leis humanas e divinas. Que as maldições do Firmamento, que o ódio dos anjos»...
Não se encontra o fim do manuscrito.
Conto de Jorge Luís Borges, incluído no livro "O Livro de Areia", Trd. Aníbal Fernandes, Ed. Livro B, Editorial Estampa
" - Quando conversar com um proletário, serei vermelho. Agora estou à conversa consigo e digo-lhe: a minha sociedade inspira-se naquela que no princípio do século nono organizou um bandido chamado Abdla-Aben-Maimum. Naturalmente, sem o aspecto industrial que eu confiro à minha e que será forçosamente uma garantia do seu sucesso. Maimum quis fundir os livres pensadores, aristrocatas e crentes de duas raças tão distintas como a persa e a árabe, numa seita na qual implantou diversos graus de iniciação e mistérios. Mentiam descaradamente a toda a gente. Aos judeus prometiam a chegada do Messias, aos cristãos a de Paracleto, aos muçulmanos a de Madhi... foi de tal modo que uma turba de gente com as mais distintas opiniões, situação social e crença, rabalhava em prol de uma obra cujo verdadeiro fim era conhecido por muito poucos. Desta forma Maimum esperava chegar a dominar por completo o povo muçulmano. Escuso de acrescentar que os directores do movimento eram uns cínicos estupendos, que não acreditavam absolutamente em nada. Nós vamos imitá-los. Seremos bolcheviques, católicos, fascistas, ateus, militaristas, em diversos graus de iniciação."
Excerto de " Os sete loucos", de Roberto Arlt, Trd. Rui Lagartinho e Sofia Castro Henriques, Ed. Cavalo de Ferro,2003
Excerto de " Os sete loucos", de Roberto Arlt, Trd. Rui Lagartinho e Sofia Castro Henriques, Ed. Cavalo de Ferro,2003
A tragédia de Mayerling na história das moscas*
" Voltando às moscas... Imaginemo-las em plena cópula. Seguramos o mata-moscas, estudamos o melhor ângulo para o balanço. Balançamos. As duas moscas caem no chão, coladas uma à outra. Arremetemos outra vez e elas, sempre coladas, escapam-se antes de o mata-moscas aterrar. O mata-moscas estonteou-as, mas elas resistem, sempre coladas uma à outra: saltam, estebucham, voltam a saltar, porém cada vez mais baixo, mais rente ao chão, asas translúcidas e trementes, estropiadas mas ainda sôfregas, sempre lúbricas até ao derradeiro alento. Mesmo no estertor da agonia, as moscas optam pela paixão da morte conjunta. A tragédia de Mayerling na história das moscas."
* Excerto de " As Contadoras de Histórias", Fernanda Botelho, Biblioteca Prestígio,2001
" Voltando às moscas... Imaginemo-las em plena cópula. Seguramos o mata-moscas, estudamos o melhor ângulo para o balanço. Balançamos. As duas moscas caem no chão, coladas uma à outra. Arremetemos outra vez e elas, sempre coladas, escapam-se antes de o mata-moscas aterrar. O mata-moscas estonteou-as, mas elas resistem, sempre coladas uma à outra: saltam, estebucham, voltam a saltar, porém cada vez mais baixo, mais rente ao chão, asas translúcidas e trementes, estropiadas mas ainda sôfregas, sempre lúbricas até ao derradeiro alento. Mesmo no estertor da agonia, as moscas optam pela paixão da morte conjunta. A tragédia de Mayerling na história das moscas."
* Excerto de " As Contadoras de Histórias", Fernanda Botelho, Biblioteca Prestígio,2001
A consoada
" Sentados à grande mesa, todos riem e galhofam, mas eis que chega o esperado e fiel amigo. Faz-se então o silêncio das grandes ocasiões. Nem palavra, porque a coisa impõe respeito. Enchem-se os pratos desta delícia e é uma refeição inteira, que para ser a preceito apenas se completa com os doces tradicionais desse dia e as frutas secas que também é de uso petiscar - os figos, as passas de uva, as pêras e as ameixas, a noz, a avelã, a amêndoa e o pinhão -, e que, depois do honesto vinho de mesa, fazem boca para os mais apaladados e espirituosos néctares, que no Alto Douro são de se lhe tirar o chapéu. Nisto degenerou a parca ceia de magro, da originária consoada, e temos em boa razão de convir que degenerou bem, evoluiu num mais lato e farto sentido das coisas, quer pela graça sentimental, quer no verdadeiro conteúdo. Dá aprazimento e conforto. Pelo tempo frio come-se melhor. Bênçãos devemos aos céus, quando generosamente as coisas, assim a nosso contento se transformam. E é este o caso."
Excerto de " A consoada ", incluído no " Roteiro Sentimental Douro" de Manuel Mendes, escrito entre 1961/1963 e publicado em 1964 e 1967, reeditado em 2002 pela Afrontamento
" Sentados à grande mesa, todos riem e galhofam, mas eis que chega o esperado e fiel amigo. Faz-se então o silêncio das grandes ocasiões. Nem palavra, porque a coisa impõe respeito. Enchem-se os pratos desta delícia e é uma refeição inteira, que para ser a preceito apenas se completa com os doces tradicionais desse dia e as frutas secas que também é de uso petiscar - os figos, as passas de uva, as pêras e as ameixas, a noz, a avelã, a amêndoa e o pinhão -, e que, depois do honesto vinho de mesa, fazem boca para os mais apaladados e espirituosos néctares, que no Alto Douro são de se lhe tirar o chapéu. Nisto degenerou a parca ceia de magro, da originária consoada, e temos em boa razão de convir que degenerou bem, evoluiu num mais lato e farto sentido das coisas, quer pela graça sentimental, quer no verdadeiro conteúdo. Dá aprazimento e conforto. Pelo tempo frio come-se melhor. Bênçãos devemos aos céus, quando generosamente as coisas, assim a nosso contento se transformam. E é este o caso."
Excerto de " A consoada ", incluído no " Roteiro Sentimental Douro" de Manuel Mendes, escrito entre 1961/1963 e publicado em 1964 e 1967, reeditado em 2002 pela Afrontamento
Aqui não há inocentes
" - Ai de quem me diga que alguém é inocente. Tudo menos isso. Porque aqui não há inocentes. Ninguém está aqui por acaso. Quem atravessou o portão deste Pátio não é inocente. Fez qualquer coisa de mal, mesmo que tenha sido em sonhos. Ou pelo menos, a sua mãe, quando o paria, pensou em qualquer coisa de mal. Cada um, claro, diz que não é culpado, mas, em todos estes anos que aqui passei ainda não conheci um só caso que tivesse sido para cá trazido sem mais nem menos e sem culpa nenhuma. Quem aqui entra, culpado é ou, no mínimo, passou perto de um culpado. Ffiii! Foram muitos os que soltei, por ordem alheia ou à minha responsabilidade. Mas eram todos culpados. Aqui não há inocentes. Mas há culpados, aos milhares, que não estão aqui e que jamais para cá virão parar, porque se todos os culpados acabassem aqui, este pátio teria de se estender de mar a mar. Eu conheço os homens, são todos culpados, só que nem todos estão destinados a comerem o pão aqui."
Excerto de " O pátio maldito ", de Ivo Andric, Trd. Lucia e Dejan Stankovic,Ed. Cavalo de Ferro,200
" - Ai de quem me diga que alguém é inocente. Tudo menos isso. Porque aqui não há inocentes. Ninguém está aqui por acaso. Quem atravessou o portão deste Pátio não é inocente. Fez qualquer coisa de mal, mesmo que tenha sido em sonhos. Ou pelo menos, a sua mãe, quando o paria, pensou em qualquer coisa de mal. Cada um, claro, diz que não é culpado, mas, em todos estes anos que aqui passei ainda não conheci um só caso que tivesse sido para cá trazido sem mais nem menos e sem culpa nenhuma. Quem aqui entra, culpado é ou, no mínimo, passou perto de um culpado. Ffiii! Foram muitos os que soltei, por ordem alheia ou à minha responsabilidade. Mas eram todos culpados. Aqui não há inocentes. Mas há culpados, aos milhares, que não estão aqui e que jamais para cá virão parar, porque se todos os culpados acabassem aqui, este pátio teria de se estender de mar a mar. Eu conheço os homens, são todos culpados, só que nem todos estão destinados a comerem o pão aqui."
Excerto de " O pátio maldito ", de Ivo Andric, Trd. Lucia e Dejan Stankovic,Ed. Cavalo de Ferro,200
Os beijos cheios de paixão
" Os beijos cheios de paixão, diferentes de todos os que recebera, fizeram-lhe esquecer, de repente, que ele amava, talvez, outra mulher. Pouco depois, aos seus olhos já não era culpado. O cessar da dor pungente, vinda da suspeita, a presença de uma felicidade que ela nem sequer nunca sonhara deram-lhe exaltações de amor e de alegria louca. Aquela noite foi encantadora para todos, menos para o presidente de Verrières, que não podia esquecer os seus industriais enriquecidos. Julião não pensava já na sua negra ambição, nem nos seus projectos tão difíceis de executar. Pela primeira vez na sua vida era arrastado pelo poder da beleza. Partido num sonho vago e doce, tão estranho ao seu carácter, apertando devagarinho aquela mão que lhe agradava como uma beleza perfeita, escutava o movimento das folhas de tília, agitadas pela leve brisa da noite, e os cães do moleiro do Doubs, que ladravam ao longe. Mas esta emoção era um prazer e não uma paixão. Ao entrar no seu quarto pensou apenas numa felicidade: a de voltar a pegar no seu livro favorito; aos vinte anos a ideia do mundo e do efeito a produzir nele sobrepõe-se a tudo. "
Excerto de " O vermelho e o negro ", de Sthendal, Trd. Maria Manuel e Branquinho da Fonseca, Ed. RBA Editores,1994
" Os beijos cheios de paixão, diferentes de todos os que recebera, fizeram-lhe esquecer, de repente, que ele amava, talvez, outra mulher. Pouco depois, aos seus olhos já não era culpado. O cessar da dor pungente, vinda da suspeita, a presença de uma felicidade que ela nem sequer nunca sonhara deram-lhe exaltações de amor e de alegria louca. Aquela noite foi encantadora para todos, menos para o presidente de Verrières, que não podia esquecer os seus industriais enriquecidos. Julião não pensava já na sua negra ambição, nem nos seus projectos tão difíceis de executar. Pela primeira vez na sua vida era arrastado pelo poder da beleza. Partido num sonho vago e doce, tão estranho ao seu carácter, apertando devagarinho aquela mão que lhe agradava como uma beleza perfeita, escutava o movimento das folhas de tília, agitadas pela leve brisa da noite, e os cães do moleiro do Doubs, que ladravam ao longe. Mas esta emoção era um prazer e não uma paixão. Ao entrar no seu quarto pensou apenas numa felicidade: a de voltar a pegar no seu livro favorito; aos vinte anos a ideia do mundo e do efeito a produzir nele sobrepõe-se a tudo. "
Excerto de " O vermelho e o negro ", de Sthendal, Trd. Maria Manuel e Branquinho da Fonseca, Ed. RBA Editores,1994
Notas sobre a politica e o Estado em Maquiavel *
O primeiro capítulo do Príncipe contém o quadro conceitual principal de toda a obra. O Príncipe é como a condensação dos Discorsi [os Comentários à Primeira Década de Tito Lívio], os Discorsi são um comentário do Príncipe; a ênfase do Príncipe incide nas "monarquias", nos Discorsi, sobre as "repúblicas", mas a monarquia e a república estão presentes nas duas obras. Para Maquiavel é decisivo que ele tenha achado uma nova palavra para designar ambas. Essa palavra é Estado.
O Estado: pouco importa de onde vem a palavra – ela designa o que é estável, sua fazenda (Burkhardt) – concebido como um "novo sistema" (capítulo 26) que deve ser "introduzido". Mas, por outro lado, é algo que já existe.
O que é o Estado? Os franceses não compreendiam o "Estado", do contrário jamais teriam permitido á Igreja tornar-se tão poderosa (capítulo 3). Em primeiro lugar, pois: o Estado contra a Igreja.
Isso significa duas coisas: a ascensão do secular contra o cristianismo e a ascensão da nação contra as ingerências internacionais. (O grande pecado da Igreja foi permitir que os estrangeiros se instalassem na Itália. A Itália dividida entre Milão, Nápoles. Veneza, Florença e os estados pontifícios).
Significa também: a ascensão do "homem novo" – os condottieri que sabem como bem fundar um Estado e dar às coisas a sua "grandeza" (capítulo 26). Esse homem será o fundador de algo novo. Em conseqüência, aparece o conceito de fundação. Ele libertará o seu país; portanto, aparece o conceito de liberdade.
A ação desse homem novo, que funda uma nova organização, um corpo político, deve seguir certas normas que são igualmente "novas": uma nova moralidade, mas não uma razão de Estado. Não é o Estado, uma instituição, que raciocina, mas os homens. É a necessidade, e não a razão, que "constrange" os estados a "numerosas coisas a que a razão não nos impele" (Discorsi, I, 6). Mas a razão não é a necessidade, e a necessidade não é razoável. Se a necessidade está do seu lado, ela pode impor-lhe a razão ou a não-razão. Que a necessidade talvez pudesse ser ela própria razoável, racional, é uma idéia alheia a Maquiavel.
A primeira frase: "Todos os estados, todos os domínios, que tiveram poder sobre os homens eram ou são seja repúblicas seja principados". As repúblicas e as monarquias são estados. Elas são meras formas de governo, e os governos podem ir e vir, o que deveria permanecer é o Estado. Com esse termos ele não designa a administração ou a maquinaria estatal. Por exemplo: a Rússia é tanto o Estado czarista quanto a Rússia bolchevista. Esse "governo" que permanece não é governo, mas o território e o povo, representado pelo Estado. Enquanto existir o povo sobre o território, a Itália, o Estado – o Estado-nação – existe.
Dois tipo de monarquia: hereditária, como a dos reis e dos imperadores; aqueles que reinam também sobre territórios que herdaram mas nos quais não nasceram. Ou então recente – são os condottieri, pessoas que surgem durante períodos turbulentos e se tornam dirigentes. E pode-se esperar dos condottieri, as quais só Maquiavel presta atenção, que eles fundem um novo sistema, pois eles são "homens novos". Eles adquiriram essas monarquias pela força das armas ou pela fortuna e pela virtú.
Temos aqui todos os conceitos. Desde logo temos o Estado, a nova organização que Maquiavel queria ver fundada. Temos as principais formas de governo, as repúblicas e as monarquias, às quais devemos juntar a aristocracia (Veneza), mas elas não são muito interessantes para Maquiavel. Pensa ele que, seja qual for a forma de governo que o Estado assuma, o principal é que dure. Ou ainda: ainda que os governos possam mudar, o Estado deve durar; ele pode passar de uma forma a outra. O Estado só é destruído quando o país é dividido, vale dizer, quando há muitos governos no mesmo país, quando o mesmo povo vive sob diferentes tipos de regras, ou quando um estrangeiro penetra no país. O conceito de estrangeiro é muito novo. Ele significa que não são idênticos todos os cristãos, que um novo princípio de distinção entre os homens se introduz, um princípio que não é religioso mas secular: onde vocês nasceram, que língua falam, quais as suas lembranças históricas? Maquiavel tinha razão: o Estado nacional podia desenvolver-se sob a forma da monarquia e da república. Maquiavel contempla ambas, não do ponto de vista do desenvolvimento histórico mas como igualmente possíveis. Em conseqüência, sua discussão das formas de governo, embora muito importante na sua obra, não nos ocupará. Ela é secundária em relação ao seu principal tema: o Estado. Discutiremos as formas de governo em Montesquieu, quem, sob muitos aspectos, lembra Maquiavel.
Isso nos deixa com os seguintes conceitos:
O Estado;
a ascensão de homens novos capazes de fundar – a fundação;
virtú e fortuna como as forças maiores encerradas nesta última;
a grandeza como critério último.
O Estado: o Estado é um termo para o secular, contra a Igreja e o cristianismo. Entre os numerosos estrangeiros a Igreja é a mais perigosa, não somente porque sempre apela aos estrangeiros para manter seu poder temporal mas porque enquanto poder temporal, e somente como tal, ela atravessa as fronteiras. Se a Igreja se restringisse à religião isso não seria problema.
A religião como crença cristã é antipolítica. E é somente pela comparação das duas – a religião e a política – que podemos compreender o que Maquiavel entendia por ser político, por viver numa esfera política. Maquiavel não é um ateu moderno, que não crê em Deus. Ele quer por em risco sua alma e enfrentar a danação eterna pelo seu país (ver Kant a propósito do orgulho: desprezo pelos que são bons porque esperam ser re compensados no céu). Talvez haja egoísmo naqueles que vivem por sua própria salvação ao invés de redimir seu país. Aqueles que não amam o mundo mas amam sua própria alma são maus para o mundo: a maldade do mundo e a bondade das almas puras. (Este argumento está sempre presente na fórmula "os que não querem sujar as mãos para permanecer limpos", que se ouve em todas as revoluções). Mas essas pessoas [os cristãos] permanecem fora da esfera pública e não pronunciam exortação nessa esfera, então há um certo respeito. (Cf. o tratamento de Savonarola).
Há uma razão mais profunda: a Igreja, se fosse aceitável, o que não é o caso, ensinaria os homens como serem bons (se não faz isso a Igreja é o pior de todos os poderes temporais). E os italianos tornaram-se tão maus porque a Igreja não cumpre mais o seu dever. Como ela não sabe ensinar aos homens como serem bons (...) ela os tornou maus. O verdadeiro problema é então o seguinte: que é a bondade? É possível ser ao mesmo tempo bom e agir na esfera política?
O principal conceito da ação política é a glória, que é alcançada pela fortuna e pela virtú: a glória para um povo ou um príncipe ou quem quer que esteja envolvido nos negócios mundanos. A glória brilha – doxa [aparência, louvor], aparece, é vista e se faz ver. O príncipe realiza grandes empresas pela glória eterna e a glória presente. A fama é o prolongamento da glória, é a glória tornada durável. A glória brilha por si mesma graças a todas as grandes ações e empreendimentos. Ela se difunde. O homem aparece e se mostra. Em conseqüência, surge a questão da distinção entre aparecer e ser. Em política: devemos aparecer, ver e ser vistos, ouvir e ser ouvidos, o que mostramos é o que somos e não o inverso. O que somos não é importante, é privado. A glória é o apogeu da aparência e ela só é possível onde outros vêem e onde eu sou visto.
A bondade: em sentido absoluto ela não existe nessa esfera, pois uma boa ação se dissimula. Uma vez conhecida ela não é mais boa mas vaidade, desejo de aparecer como boa. O conceito de bondade é o agathon. Jesus: não dizei que sou bom, só nosso pai que está nos céus é bom. O homem não pode ser bom no sentido de que tão logo parece sê-lo a bondade se vai; a bondade desaparece no processo de sua aparição. O embaraço quando a bondade aparece: o príncipe em O Idiota [de Dostoiévski]. No mundo o homem bom é um idiota, vale dizer, bom no sentido cristão. Idiota no antigo sentido do termo [isolado, só ele].
Maquiavel ensina não a ser bom mas a agir politicamente no mundo das aparências, onde nada conta senão o que aparece. O mundo. Eis alguém que ama verdadeiramente o mundo.
Um outro problema está envolvido nisso, é a questão da imortalidade. A "boa nova" do cristianismo é que a vida, enquanto bios individual, é eterna, que a morte está superada. É a nova mensagem bem sucedida em face do mundo antigo e, com ele, do pessimismo, e essa mensagem se apodera desse mundo. Os antigos acreditavam na eternidade – aei on – da natureza e do universo e na potencial permanência do mundo. Em conseqüência buscava sempre o melhor, vale dizer, o governo mais estável. No seio deste, na polis, na cidade eterna, o homem pode deixar o seu traço e tornar-se eterno, mas o que ele faz são grandes obras. As instituições políticas existem em parte para tornar possível esse athanatidzein [ ser imortal]. Assim, Aquiles troca sua vida breve por proezas que serão lembradas para sempre (ele precisa de Homero). A polis ateniense dispensa Homero. Temos assim, por este lado, as idéias seguintes: os homens são mortais, eles desaparecem e aparecem, o mundo continua se os homens são bons para o mundo, e o cosmos é aei on [permanente]. O cosmos é aei porque não foi criado, ele não tem fim porque não tem começo.
Do lado do cristianismo: o universo é criado, tem um começo, está sujeito a perecer. Mas o homem é criado à imagem de Deus e partilha da sua imortalidade. Mas tudo que criam os homens, que são mortais e criam num mundo mortal, perece. Temos portanto aqui a concepção seguinte: o mundo está condenado à morte, o universo poderia não durar, são eternos Deus e a vida do homem.
A atitude em face da política: os antigos poderiam tornar-se imortais somente ao juntar algo ao mundo, que continua após a morte. Os cristãos, pelo contrário, estão seguros da imortalidade façam o que fizerem, e só devem então escolher a "boa vida" para estarem certos da vida além. Os antigos: a vida como tal, sendo mortal, nada é senão uma oportunidade para tornar-se imortal. Para os cristãos: a vida como tal é imortal, e portanto ela é tudo. A vida e o mundo. Vivemos no mundo: a vida continua após ter-se extinto o mundo; ou o mundo continua após ter-se extinta a vida.
Maquiavel não pergunta jamais: para que serve a política? Isto é muito surpreendente. Ninguém salvo ele põe inteiramente de lado essa questão. A política não tem fim mais elevado do que ela própria. O cristianismo: a política deve ser organizada de tal modo que o homem e sua alma possam estar certos da salvação eterna. Este é o critério último. Platão e Aristóteles pensavam que a política devesse ser organizada de tal modo que a filosofia – o cuidado com as coisas eternas – fosse possível. Ou: a política existe para possibilitar a "boa vida" (Aristóteles), enquanto que as necessidades da mera existência são satisfeitas no âmbito doméstico. Ou mais tarde: a política deve ser instituída para assegurar uma existência pacífica e prevenir a "morte violenta" (Hobbes). Maquiavel menciona numa ocasião a necessidade dos homens de se defenderem e que esse é provavelmente o primeiro motivo para os homens juntarem-se em corpos políticos. Mas isso não lhe interessa. A política não tem fim em si mesma, ela não é um meio. Mas tudo na política regula-se por esta máxima: o fim justifica os meios.
* Extrato de texto para curso de história das teorias políticas pronunciado por Hannah Arendt em 1955 na Universidade de Berkeley, que integra a massa de escritos inéditos da autora. Foi utilizada para a presente publicação a tradução francesa por Marie Gaille-Nikodimov publicada no número 397 (abril de 2001) de Magazine Littéraire. Tradução, título e acréscimos entre colchetes por Gabriel Cohn.
--------------------------------------------------------------------------------
Nota sobre Maquiavel*
Maurice Merleau-Ponty
Como compreendê-lo? Ele escreve contra os bons sentimentos em política, mas também é contra a violência. Ele tanto desconcerta os que crêem no Direito como na Razão de Estado, pois tem a audácia de falar de virtude no mesmo momento em que fere duramente a moral ordinária. É porque ele descreve esse núcleo da vida coletiva no qual a moral pura pode ser cruel e a política pura exige algo como uma moral. Não se aceitaria um cínico que nega os valores ou um ingênuo que sacrifica a ação. Não se ama esse pensador difícil e sem ídolo.(...)
Mas ele tem isso de original de, tendo posto o princípio da luta, vá além dele sem jamais esquecê-lo. Na própria luta ele encontra coisa diversa do antagonismo. (...) Há um circuito do eu e do outro, uma Comunhão dos Santos negra, o mal que faço o faço a mim, e é contra mim mesmo que luto ao lutar contra o outro. (...) Estamos longe das relações de pura força que existem entre os objetos. Para empregar as palavras de Maquiavel, passamos dos "animais" ao "homem" (P, XVIII).
Mais exatamente, passamos de um modo de combate a outro, do "combate com a força" ao "combate com as leis" (Ibid.). O combate humano é diferente do combate animal, mas é um combate. O poder não é mais força nua, mas tampouco honesta delegação das vontades individuais, como se elas pudessem anular sua diferença. Hereditário ou novo, ele é sempre descrito no Príncipe como contestável e ameaçado. Um dos deveres do príncipe é de resolver as questões antes que se tornem insolúveis pela emoção dos súditos (P, III). Dir-se-ia que se trata de prevenir o despertar dos cidadãos. Não há poder com fundamento absoluto, apenas há uma cristalização da opinião. Ela tolera, ela tem como dado o poder. O problema está em evitar que esse acordo se descomponha, o que pode ocorrer rápido sejam quais forem os meios de coerção, passado um certo ponto de crise. O poder é da ordem do tácito. Os homens abandonam-se ao horizonte do Estado e da lei até quando a injustiça os torne cons cientes do que ambos tem de injustificável. O poder dito legítimo é aquele que consegue evitar o desprezo e o ódio (P, XVI), "O príncipe deve fazer-se temer de tal modo que, se não é amado pelo menos não seja odiado" (P, XVII). (...)
Nem puro fato, nem direito absoluto, o poder não contrange, nem persuade: ele manobra – e manobra-se melhor recorrendo à liberdade do que aterrorizando. (...) O melhor apoio ao poder nem mesmo resulta da ação do prícipe: são os que crêem ter direitos sobre ele ou pelo menos sentem-se em segurança. (...) A violência pura só pode ser episódica. Ela não poderia obter o assentimento produndo que faz o poder, e não a substitui. "Se [o príncipe] se vê na necessidade de punir com a morte, ele deve expor os motivos" (P, XVII). Isso eqüivale a dizer que não há poder absoluto...
(...) O pessimismo de Maquiavel não é pois fechado. Ele indicou mesmo as condições de uma política que não seja injusta: será aquela que satisfaz o povo. Não que o povo saiba tudo, mas porque. se alguém é inocente é ele: "Pode-se sem injustiça satisfazer o povo, não os grandes: estes procuram exercer a tirania, aqueles apenas a querem evitar ... O povo não quer mais do que não ser oprimido" (P, IX).(...)
Maquiavel não diz em lugar nenhum que os súditos sejam enganados. Ele descreve o nascimento de uma vida comum, que ignora as barreiras do amor próprio. Falando aos Medici ele lhes prova que o poder não dispensa o apelo à liberdade. Nesta inversão é talvez o príncipe que é enganado. Se Maquiavel foi republicano é porque descobriu um princípio de comunhão. Ao colocar o conflito e a luta na origem do poder social ele não quis dizer que o acordo fosse impossível, ele queria sublinhar a condição para um poder que não seja uma burla, e que é a participação numa situação comum.
O "imoralismo" de Maquiavel ganha nisso seu verdadeiro sentido. Cita-se sempre suas máximas que remetem a honestidade à vida privada e fazem do interesse do poder a única regra em política. Mas vejamos as razões pelas quais ele retira a política do puro julgamento moral: ele oferece duas. Primeiro que "um homem que queira ser perfeitamente honesto no meio de pessoas desonestas certamente perecerá cedo ou tarde" (P, XV). Fraco argumento, pois poderia igualmente ser aplicado à vida privada, na qual entretanto Maquiavel permanece "moral" A segunda razão leva mais longe: é que, na ação histórica, a bondade é às vezes catastrófica, e a crueldade é menos cruel que a índole bondosa. (...) O que transforma por vezes a doçura em crueldade e a dureza em valor, subvertendo os preceitos da vida privada, é os atos do poder intervêm num certo estado da opinião, que altera o seu sentido; despertam um eco por vezes desmesurado; abrem ou fecham fissuras secretas no bloco do consentimento geral e desencadeiam um processo molecular que pode modificar todo o curso das coisas. Ou ainda: assim como espelhos dispostos em círculo tornam feérica uma diminuta chama, os atos do poder, refletidos na constelação das consciências, se transfiguram, e os reflexos desses reflexos criam uma aparência que é o lugar próprio e em suma a verdade da ação histórica. O poder traz em torno de si um halo, e sua maldição é de não ver a imagem de si mesmo que oferece aos outros ("penso que é preciso ser príncipe para bem conhecer a natureza do povo, e povo para bem conhecer a dos príncipes", escreve Maquiavel na Dedicatória do Príncipe). é portanto uma condição fundamental da política o desenrolar-se na aparência. (...)
Isso não quer dizer que seja necessário ou mesmo preferível enganar, mas que, na distância e no grau de generalidade em que se estabelecem as relações políticas desenha-se um personagem lendário, feito de alguns gestos e algumas palavras, e que os homens honram ou detestam cegamente. O príncipe não é um impostor, como Maquiavel escreve expressamente. (...) É preciso portanto que o príncipe tenha o sentimento desses ecos despertados pelas suas palavras e seus atos ... é preciso que ele permaneça livre em face mesmo das suas virtudes. O príncipe deve ter as qualidade que parece ter, diz Maquiavel, mas, completa ele, "permanecer senhor de si o bastante para exibir seus contrários quando isso é conveniente" (P, XVII). (...) Maquiavel não exige que se governe pelos vícios, a mentira, o terror, o ardil, ele tenta definir uma virtude política, que, para o príncipe, de falar a esses espectadores mudos em torno de si. (...) Essa virtude não está exposta aos contratempos que atingem o político moralisante, pois ela nos instala desde logo na relação com o outro que ele ignora. É ela que Maquiavel toma como signo de valor em política – e não o sucesso, pois ele dá como exemplo César Borgia, que não teve êxito mas tinha virtù, e põe muito atrás dele Francesco Sforza, que teve sucesso, mas pela fortuna. (...)
A incompreensão de Maquiavel advém de que ele une o sentimento mais agudo da contingência ou do irracional no mundo com o gosto da cons ciência ou da liberdade no homem. Considerando essa história na qual há tanta desordem, tanta opressão, tanto de inesperado e de reversão, ele nada vê que a predestine a uma consonância final. Ele evoca a idéia de um acaso fundamental, de uma adversidade que a entregaria aos mais inteligentes e aos mais fortes. E se ele finalmente exorcisa esse mau gênio não é por qualquer princípio transcendente mas por um simples recurso aos dados de nossa condições. Ele descarta no mesmo gesto a esperança e o desespero. (...) O acaso não se manifesta senão quando renunciamos a compreender e a querer. A fortuna "exerce seu poder quando não lhe opomos nenhuma barreira; ela incide sobre os pontos mal defendidos" (P, XXV). Se parece haver um curso inflexível das coisas, é somente no passado; se a fortuna parece às vezes favorável às vezes desfavorável, é porque o homem às vezes compreende o seu tempo e às vezes não, e as mesmas qualidades fazem quer o seu sucesso ou a sua perda, mas não por acaso. (...)
Reprova-se nele a idéia de que a história é uma luta e a política é uma relação com homens mais do que com príncipes. Há contudo algo mais seguro? A história, depois de Maquiavel ainda mais do que antes dele, não mostrou que os princípios não comprometem a nada e que são adaptáveis a todos os fins? (...) Maquiavel tinha razão: é preciso ter valores, mas isto não é suficiente, e é mesmo perigoso ater-se a isso; enquanto não se escolheu aqueles que têm a missão de levá-los à luta histórica não se fez nada. Ora, não é somente no passado que vemos repúblicas recusar a cidadania às suas colônias, matar em nome da liberdade e tomar a ofensiva em nome da lei. Bem entendido, a dura sabedoria de Maquiavel não as repreenderá por isso. A história é uma luta, e se as repúblicas não lutasssem elas desapareceriam. Pelo menos devemos ver que os meios continuam sanguinários, impiedosos, sórdidos. O supremo ardil das Cruzadas é não confessá-lo. Cumpriria romper o círculo.
É evidentemente nesse terreno que uma crítica de Maquiavel é possível e necessária. Ele não estava errado ao insistir no problema do poder. Mas ele contentou-se com evocar em algumas palavras um poder que não seria injusto, sem buscar com a maior energia sua definição. O que o desencoraja é crer que os homens são imutáveis, e que os regimes se sucedem em ciclos (Discorsi, I). Haveria sempre dois tipos de homens, os que vivem e os que fazem a história. (...) Ele é tentado a pensar que não há uma humanidade, mas homens históricos e pacientes – e a por-se do lado dos primeiros. É então que, não tendo mais razão alguma para preferir um "profeta armado" a um outro, ele parte para a aventura: ele deposita esperanças temerárias no filho de Lourenço de Médicis, e os Médicis, seguindo suas próprias regras, o comprometem sem empregá-lo. Republicano, ele desqualifica no prefácio à História de Florença o juizo que os republicanos faziam dos Médicis, e os republicanos, que não lhe perdoam isso, tampouco o empregarão. A conduta de Maquiavel acusa o que faltava à sua política: um fio condutor que lhe permitisse reconhecer, entre os poderes, aquele do qual se poderia esperar algo de valoroso, e elevar decididamente a virtude acima do oportunismo.
(...) Cumpre acrescentar, para ser eqüitativo, que a tarefa era difícil. Para os contemporâneos de Maquiavel o problema político era desde logo de saber se os italianos seriam por muito tempo impedidos de cultivar e de viver pelas incursões da França, ou da Espanha, quando não eram do Papado. Que se poderia querer razoavelmente senão uma nação italiana e soldados para faze-la? Para fazer a humanidade era preciso começar por fazer esse pedaço de vida humana. (...) Não há humanismo sério a não ser esse que busca através do mundo o reconhecimento efetivo do homem pelo homem; ele não poderia então preceder o momento em que a humanidade se provê dos meios de comunicação e de comunhão.
Eles existem hoje e o problema de um humanismo real, posto por Maquiavel, foi retomado por Marx há cem anos. Pode-se dizer que esteja resolvido? Marx precisamente propôs, para fazer uma humanidade, encontrar um outro apoio que aquele, sempre equívoco, dos príncipes. Ele procurou na situação e no movimento vital dos homens mais explorados, mais oprimidos, mais desprovidos de poder, o fundamento de um poder revolucionário, vale dizer capaz de suprimir a exploração e a opressão. Mas evidenciou-se que todo o problema residia em constituir um poder dos sem-poder. (...) A solução somente se poderia encontrar numa relação absolutamente nova do poder aos submetidos. Era necessário inventar formas políticas capazes de controlar o poder sem anulá-lo, precisava-se de chefes capazes de explicar aos submetidos as razões de uma política e de obter deles, se fossem necessários, os sacrifícios que o poder normalmente lhes impõe. Essas formas políticas foram esboçadas, esses chefes apareceram na revolução de 1917, mas, desde a época da Comuna de Cronstadt, o poder revolucionário perdeu o contato com uma fração do proletariado entretanto provada, e, para esconder o conflito, começa a mentir. Ele proclama que o estado-maior dos insurgentes está nas mãos das guardas brancas, do mesmo modo como as tropas de Bonaparte [enviadas para conter a revolta negra em São Domingos] tratam Toussaint-Louverture como agente do estrangeiro. (...) Em todo caso, hoje [1949] que o expediente de Cronstadt tornou-se sistema e que o poder revolucionário tomou decididamente o lugar do proletariado como camada dirigente, com os atributos de potência de uma elite fora de controle, podemos concluir que, cem anos após Marx, o problema de um humanismo real permanece inteiro, e portanto mostrar indulgência para com Maquiavel, que apenas podia entrevê-lo.
(...) Há uma maneira de desqualificar Maquiavel que é maquiavélica, e consiste no ardil piedoso daqueles que dirigem seus olhos e os nossos para o céu dos princípios para desviá-los daquilo que fazem. E há uma maneira de louvar Maquiavel que é todo o contrário do maquiavelismo, pois honra na sua obra uma contribuição à clareza política.
* Maurice Merleau-Ponty. "Note sur Machiavel". in Signes. Paris, Gallimard, 1960, pp. 267-283. Seleção e tradução por Gabriel Cohn.
Lua Nova no.55-56 São Paulo 2002
O Estado: pouco importa de onde vem a palavra – ela designa o que é estável, sua fazenda (Burkhardt) – concebido como um "novo sistema" (capítulo 26) que deve ser "introduzido". Mas, por outro lado, é algo que já existe.
O que é o Estado? Os franceses não compreendiam o "Estado", do contrário jamais teriam permitido á Igreja tornar-se tão poderosa (capítulo 3). Em primeiro lugar, pois: o Estado contra a Igreja.
Isso significa duas coisas: a ascensão do secular contra o cristianismo e a ascensão da nação contra as ingerências internacionais. (O grande pecado da Igreja foi permitir que os estrangeiros se instalassem na Itália. A Itália dividida entre Milão, Nápoles. Veneza, Florença e os estados pontifícios).
Significa também: a ascensão do "homem novo" – os condottieri que sabem como bem fundar um Estado e dar às coisas a sua "grandeza" (capítulo 26). Esse homem será o fundador de algo novo. Em conseqüência, aparece o conceito de fundação. Ele libertará o seu país; portanto, aparece o conceito de liberdade.
A ação desse homem novo, que funda uma nova organização, um corpo político, deve seguir certas normas que são igualmente "novas": uma nova moralidade, mas não uma razão de Estado. Não é o Estado, uma instituição, que raciocina, mas os homens. É a necessidade, e não a razão, que "constrange" os estados a "numerosas coisas a que a razão não nos impele" (Discorsi, I, 6). Mas a razão não é a necessidade, e a necessidade não é razoável. Se a necessidade está do seu lado, ela pode impor-lhe a razão ou a não-razão. Que a necessidade talvez pudesse ser ela própria razoável, racional, é uma idéia alheia a Maquiavel.
A primeira frase: "Todos os estados, todos os domínios, que tiveram poder sobre os homens eram ou são seja repúblicas seja principados". As repúblicas e as monarquias são estados. Elas são meras formas de governo, e os governos podem ir e vir, o que deveria permanecer é o Estado. Com esse termos ele não designa a administração ou a maquinaria estatal. Por exemplo: a Rússia é tanto o Estado czarista quanto a Rússia bolchevista. Esse "governo" que permanece não é governo, mas o território e o povo, representado pelo Estado. Enquanto existir o povo sobre o território, a Itália, o Estado – o Estado-nação – existe.
Dois tipo de monarquia: hereditária, como a dos reis e dos imperadores; aqueles que reinam também sobre territórios que herdaram mas nos quais não nasceram. Ou então recente – são os condottieri, pessoas que surgem durante períodos turbulentos e se tornam dirigentes. E pode-se esperar dos condottieri, as quais só Maquiavel presta atenção, que eles fundem um novo sistema, pois eles são "homens novos". Eles adquiriram essas monarquias pela força das armas ou pela fortuna e pela virtú.
Temos aqui todos os conceitos. Desde logo temos o Estado, a nova organização que Maquiavel queria ver fundada. Temos as principais formas de governo, as repúblicas e as monarquias, às quais devemos juntar a aristocracia (Veneza), mas elas não são muito interessantes para Maquiavel. Pensa ele que, seja qual for a forma de governo que o Estado assuma, o principal é que dure. Ou ainda: ainda que os governos possam mudar, o Estado deve durar; ele pode passar de uma forma a outra. O Estado só é destruído quando o país é dividido, vale dizer, quando há muitos governos no mesmo país, quando o mesmo povo vive sob diferentes tipos de regras, ou quando um estrangeiro penetra no país. O conceito de estrangeiro é muito novo. Ele significa que não são idênticos todos os cristãos, que um novo princípio de distinção entre os homens se introduz, um princípio que não é religioso mas secular: onde vocês nasceram, que língua falam, quais as suas lembranças históricas? Maquiavel tinha razão: o Estado nacional podia desenvolver-se sob a forma da monarquia e da república. Maquiavel contempla ambas, não do ponto de vista do desenvolvimento histórico mas como igualmente possíveis. Em conseqüência, sua discussão das formas de governo, embora muito importante na sua obra, não nos ocupará. Ela é secundária em relação ao seu principal tema: o Estado. Discutiremos as formas de governo em Montesquieu, quem, sob muitos aspectos, lembra Maquiavel.
Isso nos deixa com os seguintes conceitos:
O Estado;
a ascensão de homens novos capazes de fundar – a fundação;
virtú e fortuna como as forças maiores encerradas nesta última;
a grandeza como critério último.
O Estado: o Estado é um termo para o secular, contra a Igreja e o cristianismo. Entre os numerosos estrangeiros a Igreja é a mais perigosa, não somente porque sempre apela aos estrangeiros para manter seu poder temporal mas porque enquanto poder temporal, e somente como tal, ela atravessa as fronteiras. Se a Igreja se restringisse à religião isso não seria problema.
A religião como crença cristã é antipolítica. E é somente pela comparação das duas – a religião e a política – que podemos compreender o que Maquiavel entendia por ser político, por viver numa esfera política. Maquiavel não é um ateu moderno, que não crê em Deus. Ele quer por em risco sua alma e enfrentar a danação eterna pelo seu país (ver Kant a propósito do orgulho: desprezo pelos que são bons porque esperam ser re compensados no céu). Talvez haja egoísmo naqueles que vivem por sua própria salvação ao invés de redimir seu país. Aqueles que não amam o mundo mas amam sua própria alma são maus para o mundo: a maldade do mundo e a bondade das almas puras. (Este argumento está sempre presente na fórmula "os que não querem sujar as mãos para permanecer limpos", que se ouve em todas as revoluções). Mas essas pessoas [os cristãos] permanecem fora da esfera pública e não pronunciam exortação nessa esfera, então há um certo respeito. (Cf. o tratamento de Savonarola).
Há uma razão mais profunda: a Igreja, se fosse aceitável, o que não é o caso, ensinaria os homens como serem bons (se não faz isso a Igreja é o pior de todos os poderes temporais). E os italianos tornaram-se tão maus porque a Igreja não cumpre mais o seu dever. Como ela não sabe ensinar aos homens como serem bons (...) ela os tornou maus. O verdadeiro problema é então o seguinte: que é a bondade? É possível ser ao mesmo tempo bom e agir na esfera política?
O principal conceito da ação política é a glória, que é alcançada pela fortuna e pela virtú: a glória para um povo ou um príncipe ou quem quer que esteja envolvido nos negócios mundanos. A glória brilha – doxa [aparência, louvor], aparece, é vista e se faz ver. O príncipe realiza grandes empresas pela glória eterna e a glória presente. A fama é o prolongamento da glória, é a glória tornada durável. A glória brilha por si mesma graças a todas as grandes ações e empreendimentos. Ela se difunde. O homem aparece e se mostra. Em conseqüência, surge a questão da distinção entre aparecer e ser. Em política: devemos aparecer, ver e ser vistos, ouvir e ser ouvidos, o que mostramos é o que somos e não o inverso. O que somos não é importante, é privado. A glória é o apogeu da aparência e ela só é possível onde outros vêem e onde eu sou visto.
A bondade: em sentido absoluto ela não existe nessa esfera, pois uma boa ação se dissimula. Uma vez conhecida ela não é mais boa mas vaidade, desejo de aparecer como boa. O conceito de bondade é o agathon. Jesus: não dizei que sou bom, só nosso pai que está nos céus é bom. O homem não pode ser bom no sentido de que tão logo parece sê-lo a bondade se vai; a bondade desaparece no processo de sua aparição. O embaraço quando a bondade aparece: o príncipe em O Idiota [de Dostoiévski]. No mundo o homem bom é um idiota, vale dizer, bom no sentido cristão. Idiota no antigo sentido do termo [isolado, só ele].
Maquiavel ensina não a ser bom mas a agir politicamente no mundo das aparências, onde nada conta senão o que aparece. O mundo. Eis alguém que ama verdadeiramente o mundo.
Um outro problema está envolvido nisso, é a questão da imortalidade. A "boa nova" do cristianismo é que a vida, enquanto bios individual, é eterna, que a morte está superada. É a nova mensagem bem sucedida em face do mundo antigo e, com ele, do pessimismo, e essa mensagem se apodera desse mundo. Os antigos acreditavam na eternidade – aei on – da natureza e do universo e na potencial permanência do mundo. Em conseqüência buscava sempre o melhor, vale dizer, o governo mais estável. No seio deste, na polis, na cidade eterna, o homem pode deixar o seu traço e tornar-se eterno, mas o que ele faz são grandes obras. As instituições políticas existem em parte para tornar possível esse athanatidzein [ ser imortal]. Assim, Aquiles troca sua vida breve por proezas que serão lembradas para sempre (ele precisa de Homero). A polis ateniense dispensa Homero. Temos assim, por este lado, as idéias seguintes: os homens são mortais, eles desaparecem e aparecem, o mundo continua se os homens são bons para o mundo, e o cosmos é aei on [permanente]. O cosmos é aei porque não foi criado, ele não tem fim porque não tem começo.
Do lado do cristianismo: o universo é criado, tem um começo, está sujeito a perecer. Mas o homem é criado à imagem de Deus e partilha da sua imortalidade. Mas tudo que criam os homens, que são mortais e criam num mundo mortal, perece. Temos portanto aqui a concepção seguinte: o mundo está condenado à morte, o universo poderia não durar, são eternos Deus e a vida do homem.
A atitude em face da política: os antigos poderiam tornar-se imortais somente ao juntar algo ao mundo, que continua após a morte. Os cristãos, pelo contrário, estão seguros da imortalidade façam o que fizerem, e só devem então escolher a "boa vida" para estarem certos da vida além. Os antigos: a vida como tal, sendo mortal, nada é senão uma oportunidade para tornar-se imortal. Para os cristãos: a vida como tal é imortal, e portanto ela é tudo. A vida e o mundo. Vivemos no mundo: a vida continua após ter-se extinto o mundo; ou o mundo continua após ter-se extinta a vida.
Maquiavel não pergunta jamais: para que serve a política? Isto é muito surpreendente. Ninguém salvo ele põe inteiramente de lado essa questão. A política não tem fim mais elevado do que ela própria. O cristianismo: a política deve ser organizada de tal modo que o homem e sua alma possam estar certos da salvação eterna. Este é o critério último. Platão e Aristóteles pensavam que a política devesse ser organizada de tal modo que a filosofia – o cuidado com as coisas eternas – fosse possível. Ou: a política existe para possibilitar a "boa vida" (Aristóteles), enquanto que as necessidades da mera existência são satisfeitas no âmbito doméstico. Ou mais tarde: a política deve ser instituída para assegurar uma existência pacífica e prevenir a "morte violenta" (Hobbes). Maquiavel menciona numa ocasião a necessidade dos homens de se defenderem e que esse é provavelmente o primeiro motivo para os homens juntarem-se em corpos políticos. Mas isso não lhe interessa. A política não tem fim em si mesma, ela não é um meio. Mas tudo na política regula-se por esta máxima: o fim justifica os meios.
* Extrato de texto para curso de história das teorias políticas pronunciado por Hannah Arendt em 1955 na Universidade de Berkeley, que integra a massa de escritos inéditos da autora. Foi utilizada para a presente publicação a tradução francesa por Marie Gaille-Nikodimov publicada no número 397 (abril de 2001) de Magazine Littéraire. Tradução, título e acréscimos entre colchetes por Gabriel Cohn.
--------------------------------------------------------------------------------
Nota sobre Maquiavel*
Maurice Merleau-Ponty
Como compreendê-lo? Ele escreve contra os bons sentimentos em política, mas também é contra a violência. Ele tanto desconcerta os que crêem no Direito como na Razão de Estado, pois tem a audácia de falar de virtude no mesmo momento em que fere duramente a moral ordinária. É porque ele descreve esse núcleo da vida coletiva no qual a moral pura pode ser cruel e a política pura exige algo como uma moral. Não se aceitaria um cínico que nega os valores ou um ingênuo que sacrifica a ação. Não se ama esse pensador difícil e sem ídolo.(...)
Mas ele tem isso de original de, tendo posto o princípio da luta, vá além dele sem jamais esquecê-lo. Na própria luta ele encontra coisa diversa do antagonismo. (...) Há um circuito do eu e do outro, uma Comunhão dos Santos negra, o mal que faço o faço a mim, e é contra mim mesmo que luto ao lutar contra o outro. (...) Estamos longe das relações de pura força que existem entre os objetos. Para empregar as palavras de Maquiavel, passamos dos "animais" ao "homem" (P, XVIII).
Mais exatamente, passamos de um modo de combate a outro, do "combate com a força" ao "combate com as leis" (Ibid.). O combate humano é diferente do combate animal, mas é um combate. O poder não é mais força nua, mas tampouco honesta delegação das vontades individuais, como se elas pudessem anular sua diferença. Hereditário ou novo, ele é sempre descrito no Príncipe como contestável e ameaçado. Um dos deveres do príncipe é de resolver as questões antes que se tornem insolúveis pela emoção dos súditos (P, III). Dir-se-ia que se trata de prevenir o despertar dos cidadãos. Não há poder com fundamento absoluto, apenas há uma cristalização da opinião. Ela tolera, ela tem como dado o poder. O problema está em evitar que esse acordo se descomponha, o que pode ocorrer rápido sejam quais forem os meios de coerção, passado um certo ponto de crise. O poder é da ordem do tácito. Os homens abandonam-se ao horizonte do Estado e da lei até quando a injustiça os torne cons cientes do que ambos tem de injustificável. O poder dito legítimo é aquele que consegue evitar o desprezo e o ódio (P, XVI), "O príncipe deve fazer-se temer de tal modo que, se não é amado pelo menos não seja odiado" (P, XVII). (...)
Nem puro fato, nem direito absoluto, o poder não contrange, nem persuade: ele manobra – e manobra-se melhor recorrendo à liberdade do que aterrorizando. (...) O melhor apoio ao poder nem mesmo resulta da ação do prícipe: são os que crêem ter direitos sobre ele ou pelo menos sentem-se em segurança. (...) A violência pura só pode ser episódica. Ela não poderia obter o assentimento produndo que faz o poder, e não a substitui. "Se [o príncipe] se vê na necessidade de punir com a morte, ele deve expor os motivos" (P, XVII). Isso eqüivale a dizer que não há poder absoluto...
(...) O pessimismo de Maquiavel não é pois fechado. Ele indicou mesmo as condições de uma política que não seja injusta: será aquela que satisfaz o povo. Não que o povo saiba tudo, mas porque. se alguém é inocente é ele: "Pode-se sem injustiça satisfazer o povo, não os grandes: estes procuram exercer a tirania, aqueles apenas a querem evitar ... O povo não quer mais do que não ser oprimido" (P, IX).(...)
Maquiavel não diz em lugar nenhum que os súditos sejam enganados. Ele descreve o nascimento de uma vida comum, que ignora as barreiras do amor próprio. Falando aos Medici ele lhes prova que o poder não dispensa o apelo à liberdade. Nesta inversão é talvez o príncipe que é enganado. Se Maquiavel foi republicano é porque descobriu um princípio de comunhão. Ao colocar o conflito e a luta na origem do poder social ele não quis dizer que o acordo fosse impossível, ele queria sublinhar a condição para um poder que não seja uma burla, e que é a participação numa situação comum.
O "imoralismo" de Maquiavel ganha nisso seu verdadeiro sentido. Cita-se sempre suas máximas que remetem a honestidade à vida privada e fazem do interesse do poder a única regra em política. Mas vejamos as razões pelas quais ele retira a política do puro julgamento moral: ele oferece duas. Primeiro que "um homem que queira ser perfeitamente honesto no meio de pessoas desonestas certamente perecerá cedo ou tarde" (P, XV). Fraco argumento, pois poderia igualmente ser aplicado à vida privada, na qual entretanto Maquiavel permanece "moral" A segunda razão leva mais longe: é que, na ação histórica, a bondade é às vezes catastrófica, e a crueldade é menos cruel que a índole bondosa. (...) O que transforma por vezes a doçura em crueldade e a dureza em valor, subvertendo os preceitos da vida privada, é os atos do poder intervêm num certo estado da opinião, que altera o seu sentido; despertam um eco por vezes desmesurado; abrem ou fecham fissuras secretas no bloco do consentimento geral e desencadeiam um processo molecular que pode modificar todo o curso das coisas. Ou ainda: assim como espelhos dispostos em círculo tornam feérica uma diminuta chama, os atos do poder, refletidos na constelação das consciências, se transfiguram, e os reflexos desses reflexos criam uma aparência que é o lugar próprio e em suma a verdade da ação histórica. O poder traz em torno de si um halo, e sua maldição é de não ver a imagem de si mesmo que oferece aos outros ("penso que é preciso ser príncipe para bem conhecer a natureza do povo, e povo para bem conhecer a dos príncipes", escreve Maquiavel na Dedicatória do Príncipe). é portanto uma condição fundamental da política o desenrolar-se na aparência. (...)
Isso não quer dizer que seja necessário ou mesmo preferível enganar, mas que, na distância e no grau de generalidade em que se estabelecem as relações políticas desenha-se um personagem lendário, feito de alguns gestos e algumas palavras, e que os homens honram ou detestam cegamente. O príncipe não é um impostor, como Maquiavel escreve expressamente. (...) É preciso portanto que o príncipe tenha o sentimento desses ecos despertados pelas suas palavras e seus atos ... é preciso que ele permaneça livre em face mesmo das suas virtudes. O príncipe deve ter as qualidade que parece ter, diz Maquiavel, mas, completa ele, "permanecer senhor de si o bastante para exibir seus contrários quando isso é conveniente" (P, XVII). (...) Maquiavel não exige que se governe pelos vícios, a mentira, o terror, o ardil, ele tenta definir uma virtude política, que, para o príncipe, de falar a esses espectadores mudos em torno de si. (...) Essa virtude não está exposta aos contratempos que atingem o político moralisante, pois ela nos instala desde logo na relação com o outro que ele ignora. É ela que Maquiavel toma como signo de valor em política – e não o sucesso, pois ele dá como exemplo César Borgia, que não teve êxito mas tinha virtù, e põe muito atrás dele Francesco Sforza, que teve sucesso, mas pela fortuna. (...)
A incompreensão de Maquiavel advém de que ele une o sentimento mais agudo da contingência ou do irracional no mundo com o gosto da cons ciência ou da liberdade no homem. Considerando essa história na qual há tanta desordem, tanta opressão, tanto de inesperado e de reversão, ele nada vê que a predestine a uma consonância final. Ele evoca a idéia de um acaso fundamental, de uma adversidade que a entregaria aos mais inteligentes e aos mais fortes. E se ele finalmente exorcisa esse mau gênio não é por qualquer princípio transcendente mas por um simples recurso aos dados de nossa condições. Ele descarta no mesmo gesto a esperança e o desespero. (...) O acaso não se manifesta senão quando renunciamos a compreender e a querer. A fortuna "exerce seu poder quando não lhe opomos nenhuma barreira; ela incide sobre os pontos mal defendidos" (P, XXV). Se parece haver um curso inflexível das coisas, é somente no passado; se a fortuna parece às vezes favorável às vezes desfavorável, é porque o homem às vezes compreende o seu tempo e às vezes não, e as mesmas qualidades fazem quer o seu sucesso ou a sua perda, mas não por acaso. (...)
Reprova-se nele a idéia de que a história é uma luta e a política é uma relação com homens mais do que com príncipes. Há contudo algo mais seguro? A história, depois de Maquiavel ainda mais do que antes dele, não mostrou que os princípios não comprometem a nada e que são adaptáveis a todos os fins? (...) Maquiavel tinha razão: é preciso ter valores, mas isto não é suficiente, e é mesmo perigoso ater-se a isso; enquanto não se escolheu aqueles que têm a missão de levá-los à luta histórica não se fez nada. Ora, não é somente no passado que vemos repúblicas recusar a cidadania às suas colônias, matar em nome da liberdade e tomar a ofensiva em nome da lei. Bem entendido, a dura sabedoria de Maquiavel não as repreenderá por isso. A história é uma luta, e se as repúblicas não lutasssem elas desapareceriam. Pelo menos devemos ver que os meios continuam sanguinários, impiedosos, sórdidos. O supremo ardil das Cruzadas é não confessá-lo. Cumpriria romper o círculo.
É evidentemente nesse terreno que uma crítica de Maquiavel é possível e necessária. Ele não estava errado ao insistir no problema do poder. Mas ele contentou-se com evocar em algumas palavras um poder que não seria injusto, sem buscar com a maior energia sua definição. O que o desencoraja é crer que os homens são imutáveis, e que os regimes se sucedem em ciclos (Discorsi, I). Haveria sempre dois tipos de homens, os que vivem e os que fazem a história. (...) Ele é tentado a pensar que não há uma humanidade, mas homens históricos e pacientes – e a por-se do lado dos primeiros. É então que, não tendo mais razão alguma para preferir um "profeta armado" a um outro, ele parte para a aventura: ele deposita esperanças temerárias no filho de Lourenço de Médicis, e os Médicis, seguindo suas próprias regras, o comprometem sem empregá-lo. Republicano, ele desqualifica no prefácio à História de Florença o juizo que os republicanos faziam dos Médicis, e os republicanos, que não lhe perdoam isso, tampouco o empregarão. A conduta de Maquiavel acusa o que faltava à sua política: um fio condutor que lhe permitisse reconhecer, entre os poderes, aquele do qual se poderia esperar algo de valoroso, e elevar decididamente a virtude acima do oportunismo.
(...) Cumpre acrescentar, para ser eqüitativo, que a tarefa era difícil. Para os contemporâneos de Maquiavel o problema político era desde logo de saber se os italianos seriam por muito tempo impedidos de cultivar e de viver pelas incursões da França, ou da Espanha, quando não eram do Papado. Que se poderia querer razoavelmente senão uma nação italiana e soldados para faze-la? Para fazer a humanidade era preciso começar por fazer esse pedaço de vida humana. (...) Não há humanismo sério a não ser esse que busca através do mundo o reconhecimento efetivo do homem pelo homem; ele não poderia então preceder o momento em que a humanidade se provê dos meios de comunicação e de comunhão.
Eles existem hoje e o problema de um humanismo real, posto por Maquiavel, foi retomado por Marx há cem anos. Pode-se dizer que esteja resolvido? Marx precisamente propôs, para fazer uma humanidade, encontrar um outro apoio que aquele, sempre equívoco, dos príncipes. Ele procurou na situação e no movimento vital dos homens mais explorados, mais oprimidos, mais desprovidos de poder, o fundamento de um poder revolucionário, vale dizer capaz de suprimir a exploração e a opressão. Mas evidenciou-se que todo o problema residia em constituir um poder dos sem-poder. (...) A solução somente se poderia encontrar numa relação absolutamente nova do poder aos submetidos. Era necessário inventar formas políticas capazes de controlar o poder sem anulá-lo, precisava-se de chefes capazes de explicar aos submetidos as razões de uma política e de obter deles, se fossem necessários, os sacrifícios que o poder normalmente lhes impõe. Essas formas políticas foram esboçadas, esses chefes apareceram na revolução de 1917, mas, desde a época da Comuna de Cronstadt, o poder revolucionário perdeu o contato com uma fração do proletariado entretanto provada, e, para esconder o conflito, começa a mentir. Ele proclama que o estado-maior dos insurgentes está nas mãos das guardas brancas, do mesmo modo como as tropas de Bonaparte [enviadas para conter a revolta negra em São Domingos] tratam Toussaint-Louverture como agente do estrangeiro. (...) Em todo caso, hoje [1949] que o expediente de Cronstadt tornou-se sistema e que o poder revolucionário tomou decididamente o lugar do proletariado como camada dirigente, com os atributos de potência de uma elite fora de controle, podemos concluir que, cem anos após Marx, o problema de um humanismo real permanece inteiro, e portanto mostrar indulgência para com Maquiavel, que apenas podia entrevê-lo.
(...) Há uma maneira de desqualificar Maquiavel que é maquiavélica, e consiste no ardil piedoso daqueles que dirigem seus olhos e os nossos para o céu dos princípios para desviá-los daquilo que fazem. E há uma maneira de louvar Maquiavel que é todo o contrário do maquiavelismo, pois honra na sua obra uma contribuição à clareza política.
* Maurice Merleau-Ponty. "Note sur Machiavel". in Signes. Paris, Gallimard, 1960, pp. 267-283. Seleção e tradução por Gabriel Cohn.
Lua Nova no.55-56 São Paulo 2002
Nick Cave -" The Ship Song "
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...
" Liberdade" de Fernando Pessoa
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...
" Liberdade" de Fernando Pessoa
Os ácaros
" - Estou a sentir-me todo comido - respondeu ele. - Parece uma invasão de sarna, é o diabo de uma comichão que nem arranhada consigo acalmar.
Jacques começara por sentir o corpo metido numa labareda e depois, aos poucos, mal passava o fugaz alívio da pele coçada até ao sangue, uma queimadura mais aguda, um enervamento de desatar aos gritos, uma comichosa dor de enlouquecer!
É dos ácaros - disse a tia Norine a rir.
- Só apareceram ontem. Vê só! - Baixou a cabeça e afastou duas borrefas no pescoço que encaixavam entre elas um grão de milho vermelho enfiado na pele.
- Isto não vale nada, não vale mais do que uma pulga! - continuou o tio. - Hão-de encontrar-se por aí até chover.
Jacques invejou o couro batido daquela gente que não sofria, enquanto lhe dava a ele para ranger dentes e espiolhar carnes.
Diabos levem o campo! - Afastou-se dos ceifeiros. Tinha de tirar a roupa para poder arranhar-se à vontade. A meio caminho do castelo não pôde aguentar mais. Despiu-se atrás de um maciço de árvores, quase a chorar com as dores que sentia. Arrancou bocados de epiderme e não houve coçadela, raspagem, beliscão ou esfregadela que lhe saciasse o corpo. Mal esfolava um lado nasciam noutro comichões intoleráveis que iam ardendo, uma de cada vez, e o absorviam, forçavam a dar unhadas em tudo quanto era sítio e a voltar às bolhas maduras que já sangravam."
Excerto de " O castelo do Homem ancorado ", de J.K.Huysmans, Trd. Aníbal Fernandes, Colecção Livros B, Editorial Estampa, P. 129
" - Estou a sentir-me todo comido - respondeu ele. - Parece uma invasão de sarna, é o diabo de uma comichão que nem arranhada consigo acalmar.
Jacques começara por sentir o corpo metido numa labareda e depois, aos poucos, mal passava o fugaz alívio da pele coçada até ao sangue, uma queimadura mais aguda, um enervamento de desatar aos gritos, uma comichosa dor de enlouquecer!
É dos ácaros - disse a tia Norine a rir.
- Só apareceram ontem. Vê só! - Baixou a cabeça e afastou duas borrefas no pescoço que encaixavam entre elas um grão de milho vermelho enfiado na pele.
- Isto não vale nada, não vale mais do que uma pulga! - continuou o tio. - Hão-de encontrar-se por aí até chover.
Jacques invejou o couro batido daquela gente que não sofria, enquanto lhe dava a ele para ranger dentes e espiolhar carnes.
Diabos levem o campo! - Afastou-se dos ceifeiros. Tinha de tirar a roupa para poder arranhar-se à vontade. A meio caminho do castelo não pôde aguentar mais. Despiu-se atrás de um maciço de árvores, quase a chorar com as dores que sentia. Arrancou bocados de epiderme e não houve coçadela, raspagem, beliscão ou esfregadela que lhe saciasse o corpo. Mal esfolava um lado nasciam noutro comichões intoleráveis que iam ardendo, uma de cada vez, e o absorviam, forçavam a dar unhadas em tudo quanto era sítio e a voltar às bolhas maduras que já sangravam."
Excerto de " O castelo do Homem ancorado ", de J.K.Huysmans, Trd. Aníbal Fernandes, Colecção Livros B, Editorial Estampa, P. 129
Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos
Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos
detidos: hei-de partir quando as flores chegarem
à sua imagem. Este verão concentrado
em cada espelho. O próprio
movimento o entenebrece. Mas chamejam os lábios
dos animais. Deixarei as constelações panorâmicas destes dias
internos.
Vou morrer assim, arfando
entre o mar fotográfico
e côncavo
e as paredes com as pérolas afundadas. E a lua desencadeia nas grutas
o sangue que se agrava.
Está cheio de candeias, o verão de onde se parte,
ígneo nessa criança
contemplada. Eu abandono estes jardins
ferozes, o génio
que soprou nos estúdios cavados. É a cólera que me leva
aos precipícios de agosto, e a mansidão
traz-me às janelas. São únicas as colinas como o ar
palpitante fechado num espelho. É a estação dos planetas.
Cada dia é um abismo atómico.
E o leite faz-se tenro durante
os eclipses. Bate em mim cada pancada do pedreiro
que talha no calcário a rosa congenital.
A carne, asfixiam-na os astros profundos nos casulos.
O verão é de azulejo.
É em nós que se encurva o nervo do arco
contra a flecha. Deus ataca-me
na candura. Fica, fria,
esta rede de jardins diante dos incêndios. E uma criança
dá a volta à noite, acesa completamente
pelas mãos.
Herberto Helder
Cobra
Poesia Toda
Assírio & Alvim
1979
detidos: hei-de partir quando as flores chegarem
à sua imagem. Este verão concentrado
em cada espelho. O próprio
movimento o entenebrece. Mas chamejam os lábios
dos animais. Deixarei as constelações panorâmicas destes dias
internos.
Vou morrer assim, arfando
entre o mar fotográfico
e côncavo
e as paredes com as pérolas afundadas. E a lua desencadeia nas grutas
o sangue que se agrava.
Está cheio de candeias, o verão de onde se parte,
ígneo nessa criança
contemplada. Eu abandono estes jardins
ferozes, o génio
que soprou nos estúdios cavados. É a cólera que me leva
aos precipícios de agosto, e a mansidão
traz-me às janelas. São únicas as colinas como o ar
palpitante fechado num espelho. É a estação dos planetas.
Cada dia é um abismo atómico.
E o leite faz-se tenro durante
os eclipses. Bate em mim cada pancada do pedreiro
que talha no calcário a rosa congenital.
A carne, asfixiam-na os astros profundos nos casulos.
O verão é de azulejo.
É em nós que se encurva o nervo do arco
contra a flecha. Deus ataca-me
na candura. Fica, fria,
esta rede de jardins diante dos incêndios. E uma criança
dá a volta à noite, acesa completamente
pelas mãos.
Herberto Helder
Cobra
Poesia Toda
Assírio & Alvim
1979
Roda Viva
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu...
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino prá lá ...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira prá lá...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...
A roda da saia mulata
Não quer mais rodar não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou...
A gente toma a iniciativa
Viola na rua a cantar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a viola prá lá...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...
O samba, a viola, a roseira
Que um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou...
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a saudade prá lá ...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas rodas do meu coração
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu...
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino prá lá ...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira prá lá...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...
A roda da saia mulata
Não quer mais rodar não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou...
A gente toma a iniciativa
Viola na rua a cantar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a viola prá lá...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...
O samba, a viola, a roseira
Que um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou...
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a saudade prá lá ...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas rodas do meu coração
quinta-feira, 29 de abril de 2010
Arrebátame, amor, águila esquiva…
Arrebátame, amor, águila esquiva,
mátame a desgarrón y a dentellada,
que tengo ya la queja amordazada
y entre tus garras la intención cautiva.
No finjas más, no ocultes la excesiva
hambre de mí que te arde en la mirada.
No gires más la faz desmemoriada
y muerde de una vez la carne viva.
Batir tu vuelo siento impenetrable,
en retirada siempre y al acecho.
Tu sed eterna y ágil desafío.
Pues que eres al olvido invulnerable,
vulnérame ya, amor, deshazme el pecho
y anida en él, demonio y ángel mío.
Antonio Gala
***
Antonio Gala – Poeta, dramaturgo y novelista español nacido en Brazatortas, Ciudad Real en 1930. Cordobés por adopción, es licenciado en Derecho, Filosofía y Letras y Ciencias Políticas y Económicas. Ha cultivado todos los géneros literarios, incluidos el periodismo, el relato, el ensayo y el guión televisivo. Ha obtenido numerosos premios no sólo por la poesía, sino por su valiosa contribución al Teatro y la Ópera: Calderón de la Barca, Nacional de Literatura, Adonais, Ciudad de Barcelona, Quijote de Oro y Planeta, han sido sus galardones más significativos. De su obra poética se destacan las siguientes publicaciones: «Enemigo íntimo», «Sonetos de La Zubia», «Poemas de amor»
y «Testamento Andaluz».
mátame a desgarrón y a dentellada,
que tengo ya la queja amordazada
y entre tus garras la intención cautiva.
No finjas más, no ocultes la excesiva
hambre de mí que te arde en la mirada.
No gires más la faz desmemoriada
y muerde de una vez la carne viva.
Batir tu vuelo siento impenetrable,
en retirada siempre y al acecho.
Tu sed eterna y ágil desafío.
Pues que eres al olvido invulnerable,
vulnérame ya, amor, deshazme el pecho
y anida en él, demonio y ángel mío.
Antonio Gala
***
Antonio Gala – Poeta, dramaturgo y novelista español nacido en Brazatortas, Ciudad Real en 1930. Cordobés por adopción, es licenciado en Derecho, Filosofía y Letras y Ciencias Políticas y Económicas. Ha cultivado todos los géneros literarios, incluidos el periodismo, el relato, el ensayo y el guión televisivo. Ha obtenido numerosos premios no sólo por la poesía, sino por su valiosa contribución al Teatro y la Ópera: Calderón de la Barca, Nacional de Literatura, Adonais, Ciudad de Barcelona, Quijote de Oro y Planeta, han sido sus galardones más significativos. De su obra poética se destacan las siguientes publicaciones: «Enemigo íntimo», «Sonetos de La Zubia», «Poemas de amor»
y «Testamento Andaluz».
quarta-feira, 28 de abril de 2010
Romance sonâmbulo
Federico Garcia Lorca
(A Gloria Giner e a
Fernando de los Rios)
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra pela cintura
ela sonha na varanda,
verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
Por sob a lua gitana,
as coisas estão mirando-a
e ela não pode mirá-las.
Verde que te quero verde.
Grandes estrelas de escarcha
nascem com o peixe de sombra
que rasga o caminho da alva.
A figueira raspa o vento
a lixá-lo com as ramas,
e o monte, gato selvagem,
eriça as piteiras ásperas.
Mas quem virá? E por onde?…
Ela fica na varanda,
verde carne, tranças verdes,
ela sonha na água amarga.
— Compadre, dou meu cavalo
em troca de sua casa,
o arreio por seu espelho,
a faca por sua manta.
Compadre, venho sangrando
desde as passagens de Cabra.
— Se pudesse, meu mocinho,
esse negócio eu fechava.
No entanto eu já não sou eu,
nem a casa é minha casa.
— Compadre, quero morrer
com decência, em minha cama.
De ferro, se for possível,
e com lençóis de cambraia.
Não vês que enorme ferida
vai de meu peito à garganta?
— Trezentas rosas morenas
traz tua camisa branca.
Ressuma teu sangue e cheira
em redor de tua faixa.
No entanto eu já não sou eu,
nem a casa é minha casa.
— Que eu possa subir ao menos
até às altas varandas.
Que eu possa subir! que o possa
até às verdes varandas.
As balaustradas da lua
por onde retumba a água.
Já sobem os dois compadres
até às altas varandas.
Deixando um rastro de sangue.
Deixando um rastro de lágrimas.
Tremiam pelos telhados
pequenos faróis de lata.
Mil pandeiros de cristal
feriam a madrugada.
Verde que te quero verde,
verde vento, verdes ramas.
Os dois compadres subiram.
O vasto vento deixava
na boca um gosto esquisito
de menta, fel e alfavaca.
— Que é dela, compadre, dize-me
que é de tua filha amarga?
— Quantas vezes te esperou!
Quantas vezes te esperara,
rosto fresco, negras tranças,
aqui na verde varanda!
Sobre a face da cisterna
balançava-se a gitana.
Verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Ponta gelada de lua
sustenta-a por cima da água.
A noite se fez tão íntima
como uma pequena praça.
Lá fora, à porta, golpeando,
guardas-civis na cachaça.
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar.
E o cavalo na montanha.
Federico Garcia Lorca nasceu na região de Granada, na Espanha, em 05 de junho de 1898, e faleceu nos arredores de Granada no dia 19 de agosto de 1936, assassinado pelos “Nacionalistas”. Nessa ocasião o general Franco dava início à guerra civil espanhola. Apesar de nunca ter sido comunista – apenas um socialista convicto que havia tomado posição a favor da República – Lorca, então com 38 anos, foi preso por um deputado católico direitista que justificou sua prisão sob a alegação de que ele era “mais perigoso com a caneta do que outros com o revólver.” Avesso à violência, o poeta, como homossexual que era, sabia muito bem o quanto era doloroso sentir-se ameaçado e perseguido. Nessa época, suas peças teatrais “A casa de Bernarda Alba”, “Yerma”, “Bodas de sangue”, “Dona Rosita, a solteira” e outras, eram encenadas com sucesso. Sua execução, com um tiro na nuca, teve repercussão mundial.
A poesia acima foi extraída de sua “Antologia Poética”, Editora Leitura S. A. – Rio de Janeiro, 1966, pág. 53, tradução e seleção de Afonso Felix de Sousa.
http://www.blogdofavre.ig.com.br/
Federico Garcia Lorca
(A Gloria Giner e a
Fernando de los Rios)
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra pela cintura
ela sonha na varanda,
verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
Por sob a lua gitana,
as coisas estão mirando-a
e ela não pode mirá-las.
Verde que te quero verde.
Grandes estrelas de escarcha
nascem com o peixe de sombra
que rasga o caminho da alva.
A figueira raspa o vento
a lixá-lo com as ramas,
e o monte, gato selvagem,
eriça as piteiras ásperas.
Mas quem virá? E por onde?…
Ela fica na varanda,
verde carne, tranças verdes,
ela sonha na água amarga.
— Compadre, dou meu cavalo
em troca de sua casa,
o arreio por seu espelho,
a faca por sua manta.
Compadre, venho sangrando
desde as passagens de Cabra.
— Se pudesse, meu mocinho,
esse negócio eu fechava.
No entanto eu já não sou eu,
nem a casa é minha casa.
— Compadre, quero morrer
com decência, em minha cama.
De ferro, se for possível,
e com lençóis de cambraia.
Não vês que enorme ferida
vai de meu peito à garganta?
— Trezentas rosas morenas
traz tua camisa branca.
Ressuma teu sangue e cheira
em redor de tua faixa.
No entanto eu já não sou eu,
nem a casa é minha casa.
— Que eu possa subir ao menos
até às altas varandas.
Que eu possa subir! que o possa
até às verdes varandas.
As balaustradas da lua
por onde retumba a água.
Já sobem os dois compadres
até às altas varandas.
Deixando um rastro de sangue.
Deixando um rastro de lágrimas.
Tremiam pelos telhados
pequenos faróis de lata.
Mil pandeiros de cristal
feriam a madrugada.
Verde que te quero verde,
verde vento, verdes ramas.
Os dois compadres subiram.
O vasto vento deixava
na boca um gosto esquisito
de menta, fel e alfavaca.
— Que é dela, compadre, dize-me
que é de tua filha amarga?
— Quantas vezes te esperou!
Quantas vezes te esperara,
rosto fresco, negras tranças,
aqui na verde varanda!
Sobre a face da cisterna
balançava-se a gitana.
Verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Ponta gelada de lua
sustenta-a por cima da água.
A noite se fez tão íntima
como uma pequena praça.
Lá fora, à porta, golpeando,
guardas-civis na cachaça.
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar.
E o cavalo na montanha.
Federico Garcia Lorca nasceu na região de Granada, na Espanha, em 05 de junho de 1898, e faleceu nos arredores de Granada no dia 19 de agosto de 1936, assassinado pelos “Nacionalistas”. Nessa ocasião o general Franco dava início à guerra civil espanhola. Apesar de nunca ter sido comunista – apenas um socialista convicto que havia tomado posição a favor da República – Lorca, então com 38 anos, foi preso por um deputado católico direitista que justificou sua prisão sob a alegação de que ele era “mais perigoso com a caneta do que outros com o revólver.” Avesso à violência, o poeta, como homossexual que era, sabia muito bem o quanto era doloroso sentir-se ameaçado e perseguido. Nessa época, suas peças teatrais “A casa de Bernarda Alba”, “Yerma”, “Bodas de sangue”, “Dona Rosita, a solteira” e outras, eram encenadas com sucesso. Sua execução, com um tiro na nuca, teve repercussão mundial.
A poesia acima foi extraída de sua “Antologia Poética”, Editora Leitura S. A. – Rio de Janeiro, 1966, pág. 53, tradução e seleção de Afonso Felix de Sousa.
http://www.blogdofavre.ig.com.br/
Volver a los 17
Violeta Parra
Volver a los diecisiete después de vivir un siglo
Es como descifrar signos sin ser sabio competente,
Volver a ser de repente tan frágil como un segundo
Volver a sentir profundo como un niño frente a Dios
Eso es lo que siento yo en este instante fecundo.
Se va enredando, enredando
Como en el muro la hiedra
Y va brotando, brotando
Como el musguito en la piedra
Como el musguito en la piedra, ay si, si, si.
Mi paso retrocedido cuando el de ustedes avanza
El arco de las alianzas ha penetrado en mi nido
Con todo su colorido se ha paseado por mis venas
Y hasta la dura cadena con que nos ata el destino
Es como un diamante fino que alumbra mi alma serena.
Se va enredando, enredando
Como en el muro la hiedra
Y va brotando, brotando
Como el musguito en la piedra
Como el musguito en la piedra, ay si, si, si.
Lo que puede el sentimiento no lo ha podido el saber
Ni el más claro proceder, ni el más ancho pensamiento
Todo lo cambia al momento cual mago condescendiente
Nos aleja dulcemente de rencores y violencias
Solo el amor con su ciencia nos vuelve tan inocentes.
Se va enredando, enredando
Como en el muro la hiedra
Y va brotando, brotando
Como el musguito en la piedra
Como el musguito en la piedra, ay si, si, si.
El amor es torbellino de pureza original
Hasta el feroz animal susurra su dulce trino
Detiene a los peregrinos, libera a los prisioneros,
El amor con sus esmeros al viejo lo vuelve niño
Y al malo sólo el cariño lo vuelve puro y sincero.
Se va enredando, enredando
Como en el muro la hiedra
Y va brotando, brotando
Como el musguito en la piedra
Como el musguito en la piedra, ay si, si, si.
De par en par la ventana se abrió como por encanto
Entró el amor con su manto como una tibia mañana
Al son de su bella diana hizo brotar el jazmín
Volando cual serafín al cielo le puso aretes
Mis años en diecisiete los convirtió el querubín.
http://www.blogdofavre.ig.com.br/
Violeta Parra
Volver a los diecisiete después de vivir un siglo
Es como descifrar signos sin ser sabio competente,
Volver a ser de repente tan frágil como un segundo
Volver a sentir profundo como un niño frente a Dios
Eso es lo que siento yo en este instante fecundo.
Se va enredando, enredando
Como en el muro la hiedra
Y va brotando, brotando
Como el musguito en la piedra
Como el musguito en la piedra, ay si, si, si.
Mi paso retrocedido cuando el de ustedes avanza
El arco de las alianzas ha penetrado en mi nido
Con todo su colorido se ha paseado por mis venas
Y hasta la dura cadena con que nos ata el destino
Es como un diamante fino que alumbra mi alma serena.
Se va enredando, enredando
Como en el muro la hiedra
Y va brotando, brotando
Como el musguito en la piedra
Como el musguito en la piedra, ay si, si, si.
Lo que puede el sentimiento no lo ha podido el saber
Ni el más claro proceder, ni el más ancho pensamiento
Todo lo cambia al momento cual mago condescendiente
Nos aleja dulcemente de rencores y violencias
Solo el amor con su ciencia nos vuelve tan inocentes.
Se va enredando, enredando
Como en el muro la hiedra
Y va brotando, brotando
Como el musguito en la piedra
Como el musguito en la piedra, ay si, si, si.
El amor es torbellino de pureza original
Hasta el feroz animal susurra su dulce trino
Detiene a los peregrinos, libera a los prisioneros,
El amor con sus esmeros al viejo lo vuelve niño
Y al malo sólo el cariño lo vuelve puro y sincero.
Se va enredando, enredando
Como en el muro la hiedra
Y va brotando, brotando
Como el musguito en la piedra
Como el musguito en la piedra, ay si, si, si.
De par en par la ventana se abrió como por encanto
Entró el amor con su manto como una tibia mañana
Al son de su bella diana hizo brotar el jazmín
Volando cual serafín al cielo le puso aretes
Mis años en diecisiete los convirtió el querubín.
http://www.blogdofavre.ig.com.br/
«O HORROR ECONÓMICO [6]
[...] A indiferença é feroz. Constitui o partido mais activo e sem dúvida o mais poderoso. Permite todas as arbitrariedades, os desvios mais funestos e mais sórdidos. Este século é um trágico testemunho disso.
Obter a indiferença geral representa, para um sistema, uma vitória maior que qualquer adesão parcial, ainda que considerável. E é, de facto, a indiferença que permite as adesões maciças a certos regimes; das consequências disso sabemos nós.
A indiferença é quase sempre maioritária e desenfreada. Ora, estes últimos anos foram, à sua maneira, campeões da inconsciência plácida face à instalação de um domínio absoluto; campeões da História camuflada, dos avanços despercebidos, da desatenção geral. Desatenção tal que nem foi registada. Desinteresse, deficiente observação, obtidos sem dúvida graças a estratégias silenciosas, obstinadas, que insinuaram lentamente os seus cavalos de Tróia e souberam alicerçar-se tão bem sobre aquilo que propagam – a falta de qualquer tipo de vigilância – que foram e continuam a ser indetectáveis e por isso mais eficazes.
Tão eficazes que as paisagens políticas e económicas puderam metamorfosear-se à vista de todos (mas sem que ninguém o soubesse) sem despertar a atenção e muito menos a inquietação. O novo esquema planetário, passando despercebido, pôde invadir e dominar as nossas vidas sem ser tomado em conta, a não ser pelas potências económicas que o lançaram. E cá estamos num mundo novo, dirigido por essas potências segundo sistemas inéditos, e no seio do qual, agindo e reagindo como se de nada se tratasse, continuamos a sonhar em função de uma organização e de uma economia que deixaram de funcionar.
O desapego e a letargia obtiveram tal preponderância que, se nos propusermos hoje, contra o que é vulgar, a impedir qualquer processo político ou social, qualquer pirataria “politicamente correcta”, descobriremos que, enquanto dormitávamos, foram longa e minuciosamente elaborados, a montante, os projectos que queremos combater; inscreveram-se de forma sólida e são os únicos em conformidade com os princípios; de tal forma que surgem enraizados, inelutáveis e até por vezes muito calmamente instalados nos factos!
Tudo foi montado muito antes de intervirmos (ou pensarmos intervir). Até o sentido do nosso protesto foi já esvaziado. Nem sequer nos encontramos diante do facto consumado: estamos já aferrolhados dentro dele.
A nossa passividade deixa-nos nas malhas de uma rede política que cobre por inteiro a paisagem planetária. Não se põe tanto a questão do valor positivo ou nefasto da política que presidiu a esse estado de coisas, mas o facto de um tal sistema ter podido impor-se como um dogma sem ter provocado turbulência ou suscitado comentários, a não ser raramente e tarde de mais. No entanto, ocupou tanto o espaço físico como o espaço virtual, instalou a prevalência absoluta dos mercados e das suas oscilações; soube confiscar como nunca as riquezas, e escamoteá-las, pô-las fora do alcance ou até anulá-las sob forma de símbolos, por sua vez núcleos de tráficos abstractos, subtraídos a quaisquer trocas além das virtuais.
[...]
A origem do perigo não é tanto a situação – ela podia ser modificada –, mas mais precisamente a nossa aquiescência cega, a resignação geral face ao que nos apresentam em bloco como inelutável. [...]
O sistema liberal actual é flexível e transparente, o bastante para se adaptar às diversidades nacionais, mas bastante “mundializado” para as confinar pouco a pouco ao campo folclórico. Severo, tirânico, mais difuso, pouco detectável, expandido por toda a parte, esse regime que nunca foi proclamado detém todas as chaves da economia, que reduz ao domínio dos negócios, os quais se apressam a absorver tudo o que ainda não pertença à sua esfera.
[...]
As armas do poder? A economia privada nunca as perdeu. Por vezes vencida ou ameaçada disso, soube conservar, mesmo nessas ocasiões, os seus instrumentos, em particular a riqueza e a propriedade. A finança. Sempre que, temporariamente forçada, teve necessidade de renunciar a certas vantagens: essas vantagens foram sempre muito inferiores àquelas de que não abdicou.
Mesmo nos momentos de derrotas mais ou menos passageiras, nunca deixou de minar as posições do adversário com uma tenacidade sem igual, e de resto muito valorosa. Foi talvez nessas alturas que deu provas de melhores recursos. Ocasionalmente, alimentou-se dos seus revezes, sabendo fazer-se esquecida, camuflar-se enquanto polia como nunca as armas conservadas, ao mesmo tempo que aperfeiçoava as suas pedagogias, consolidando as suas redes. A sua ordem sempre perdurou. O modelo que representa pôde ser negado, espezinhado, desprezado, ao ponto de parecer afundar-se – mas estava apenas suspenso. O predomínio das esferas privadas, das suas classes dominantes, restabeleceu-se sempre.
Porque o poder não é o poderio. Ora o poderio (que não quer saber dos poderes, os quais, na maior parte das vezes, ele próprio outorgou e delegou, a fim de melhor os gerir) nunca mudou de campo. As classes dirigentes da economia privada perderam algumas vezes o poder, mas nunca o poderio, esse poderio que Pascal designa sob o termo de força: “O império baseado na opinião e na imaginação reina algum tempo e esse império é suave e voluntário; o da força reina sempre. Assim, a opinião é como a rainha do mundo, mas a força é o seu tirano.” [...]»
Viviane Forrester
[in O Horror Económico: Lisboa, trad. Ana Barradas, Terramar, 1997;
[...] A indiferença é feroz. Constitui o partido mais activo e sem dúvida o mais poderoso. Permite todas as arbitrariedades, os desvios mais funestos e mais sórdidos. Este século é um trágico testemunho disso.
Obter a indiferença geral representa, para um sistema, uma vitória maior que qualquer adesão parcial, ainda que considerável. E é, de facto, a indiferença que permite as adesões maciças a certos regimes; das consequências disso sabemos nós.
A indiferença é quase sempre maioritária e desenfreada. Ora, estes últimos anos foram, à sua maneira, campeões da inconsciência plácida face à instalação de um domínio absoluto; campeões da História camuflada, dos avanços despercebidos, da desatenção geral. Desatenção tal que nem foi registada. Desinteresse, deficiente observação, obtidos sem dúvida graças a estratégias silenciosas, obstinadas, que insinuaram lentamente os seus cavalos de Tróia e souberam alicerçar-se tão bem sobre aquilo que propagam – a falta de qualquer tipo de vigilância – que foram e continuam a ser indetectáveis e por isso mais eficazes.
Tão eficazes que as paisagens políticas e económicas puderam metamorfosear-se à vista de todos (mas sem que ninguém o soubesse) sem despertar a atenção e muito menos a inquietação. O novo esquema planetário, passando despercebido, pôde invadir e dominar as nossas vidas sem ser tomado em conta, a não ser pelas potências económicas que o lançaram. E cá estamos num mundo novo, dirigido por essas potências segundo sistemas inéditos, e no seio do qual, agindo e reagindo como se de nada se tratasse, continuamos a sonhar em função de uma organização e de uma economia que deixaram de funcionar.
O desapego e a letargia obtiveram tal preponderância que, se nos propusermos hoje, contra o que é vulgar, a impedir qualquer processo político ou social, qualquer pirataria “politicamente correcta”, descobriremos que, enquanto dormitávamos, foram longa e minuciosamente elaborados, a montante, os projectos que queremos combater; inscreveram-se de forma sólida e são os únicos em conformidade com os princípios; de tal forma que surgem enraizados, inelutáveis e até por vezes muito calmamente instalados nos factos!
Tudo foi montado muito antes de intervirmos (ou pensarmos intervir). Até o sentido do nosso protesto foi já esvaziado. Nem sequer nos encontramos diante do facto consumado: estamos já aferrolhados dentro dele.
A nossa passividade deixa-nos nas malhas de uma rede política que cobre por inteiro a paisagem planetária. Não se põe tanto a questão do valor positivo ou nefasto da política que presidiu a esse estado de coisas, mas o facto de um tal sistema ter podido impor-se como um dogma sem ter provocado turbulência ou suscitado comentários, a não ser raramente e tarde de mais. No entanto, ocupou tanto o espaço físico como o espaço virtual, instalou a prevalência absoluta dos mercados e das suas oscilações; soube confiscar como nunca as riquezas, e escamoteá-las, pô-las fora do alcance ou até anulá-las sob forma de símbolos, por sua vez núcleos de tráficos abstractos, subtraídos a quaisquer trocas além das virtuais.
[...]
A origem do perigo não é tanto a situação – ela podia ser modificada –, mas mais precisamente a nossa aquiescência cega, a resignação geral face ao que nos apresentam em bloco como inelutável. [...]
O sistema liberal actual é flexível e transparente, o bastante para se adaptar às diversidades nacionais, mas bastante “mundializado” para as confinar pouco a pouco ao campo folclórico. Severo, tirânico, mais difuso, pouco detectável, expandido por toda a parte, esse regime que nunca foi proclamado detém todas as chaves da economia, que reduz ao domínio dos negócios, os quais se apressam a absorver tudo o que ainda não pertença à sua esfera.
[...]
As armas do poder? A economia privada nunca as perdeu. Por vezes vencida ou ameaçada disso, soube conservar, mesmo nessas ocasiões, os seus instrumentos, em particular a riqueza e a propriedade. A finança. Sempre que, temporariamente forçada, teve necessidade de renunciar a certas vantagens: essas vantagens foram sempre muito inferiores àquelas de que não abdicou.
Mesmo nos momentos de derrotas mais ou menos passageiras, nunca deixou de minar as posições do adversário com uma tenacidade sem igual, e de resto muito valorosa. Foi talvez nessas alturas que deu provas de melhores recursos. Ocasionalmente, alimentou-se dos seus revezes, sabendo fazer-se esquecida, camuflar-se enquanto polia como nunca as armas conservadas, ao mesmo tempo que aperfeiçoava as suas pedagogias, consolidando as suas redes. A sua ordem sempre perdurou. O modelo que representa pôde ser negado, espezinhado, desprezado, ao ponto de parecer afundar-se – mas estava apenas suspenso. O predomínio das esferas privadas, das suas classes dominantes, restabeleceu-se sempre.
Porque o poder não é o poderio. Ora o poderio (que não quer saber dos poderes, os quais, na maior parte das vezes, ele próprio outorgou e delegou, a fim de melhor os gerir) nunca mudou de campo. As classes dirigentes da economia privada perderam algumas vezes o poder, mas nunca o poderio, esse poderio que Pascal designa sob o termo de força: “O império baseado na opinião e na imaginação reina algum tempo e esse império é suave e voluntário; o da força reina sempre. Assim, a opinião é como a rainha do mundo, mas a força é o seu tirano.” [...]»
Viviane Forrester
[in O Horror Económico: Lisboa, trad. Ana Barradas, Terramar, 1997;
A utopia capitalista realizou-se no tempo dos seus decisores. Como não hão-de eles regozijar-se disso? É uma satisfação justificada, humana. Demasiado? O problema não é deles, que se limitam aos negócios. De resto, nem têm tempo para se deter no assunto, demasiado preocupados que estão em obter sempre cada vez mais lucro, o que, na sua perspectiva, faça-se-lhes justiça, tem sobretudo e mais exactamente o sentido de “sucesso”.
O seu mundo é apaixonante, têm dele uma visão inebriante e que, graças à sua redução despótica, funciona. Funesto, nem por isso deixa de ter sentido para quem nele participa. Mas as suas lógicas, a sua inteligência segura conduzem fatalmente ao desastre da sua hegemonia. Quaisquer que sejam as demonstrações sabiamente hipócritas, o seu poderio está posto em proveito próprio, em proveito dessa arrogância que faz considerar bom para todos aquilo que a si dá proveito. Natural é, pois, que um mundo subalterno seja sacrificado.
Estão agora de novo cheios de razão, e é seu dever explorar uma situação e uma época abençoadas, as nossas, em que nenhuma teoria, nenhum grupo credível, nenhuma forma de pensamento, nenhuma acção séria já se lhes opõem.
Isso dá-nos oportunidade de assistir a essas obras-primas de estratégia persuasiva que conseguem convencer-nos de que as políticas conducentes ou que aceleram a bancarrota social e a pauperização em detrimento da imensa maioria, não só são as únicas possíveis, como também as únicas desejáveis, em primeiro lugar... para esta maioria. [...]»
Viviane Forrester
[in O Horror Económico: Lisboa, trad. Ana Barradas, Terramar, 1997]
O seu mundo é apaixonante, têm dele uma visão inebriante e que, graças à sua redução despótica, funciona. Funesto, nem por isso deixa de ter sentido para quem nele participa. Mas as suas lógicas, a sua inteligência segura conduzem fatalmente ao desastre da sua hegemonia. Quaisquer que sejam as demonstrações sabiamente hipócritas, o seu poderio está posto em proveito próprio, em proveito dessa arrogância que faz considerar bom para todos aquilo que a si dá proveito. Natural é, pois, que um mundo subalterno seja sacrificado.
Estão agora de novo cheios de razão, e é seu dever explorar uma situação e uma época abençoadas, as nossas, em que nenhuma teoria, nenhum grupo credível, nenhuma forma de pensamento, nenhuma acção séria já se lhes opõem.
Isso dá-nos oportunidade de assistir a essas obras-primas de estratégia persuasiva que conseguem convencer-nos de que as políticas conducentes ou que aceleram a bancarrota social e a pauperização em detrimento da imensa maioria, não só são as únicas possíveis, como também as únicas desejáveis, em primeiro lugar... para esta maioria. [...]»
Viviane Forrester
[in O Horror Económico: Lisboa, trad. Ana Barradas, Terramar, 1997]
«O HORROR ECONÓMICO [7]
[...] Desvendam-se aqui os sentimentos reais que os dominadores experimentam pelos outros, seja qual for o regime – e em que base se calculam. Depressa descobriremos, e sem dúvida cada vez melhor, infelizmente, com o tempo, como, segundo esses cálculos, depois de transformado em zero, de excluído se passa a expulso.
O declive é bem inclinado. As agonias do trabalho perdido vivem-se a todos os níveis da escala social. Em cada um deles, são sentidas como uma prova acabrunhante que parece profanar a identidade de quem a sofre. Ocorre de imediato o desequilíbrio, a humilhação (injustificada), e o perigo. Os quadros podem estar sujeitos a isto, no mínimo tanto quanto os trabalhadores menos qualificados. É surpreendente descobrir até que ponto se pode perder rapidamente o pé e como a sociedade se torna severa, como se perdem todos ou quase todos os recursos quando se está destituído! Tudo vacila, se fecha e se afasta ao mesmo tempo. Tudo se fragiliza, mesmo a casa onde se mora. A rua torna-se próxima. Respeitam-se muito pouco os direitos daquele que deixou de ter “meios”. Sobretudo o direito de ser poupado, em qualquer aspecto.
Instalam-se então os limites, a exclusão social. E acentua-se a ausência geral e flagrante de racionalidade. Que correlação razoável pode haver, por exemplo, entre perder um trabalho e ser expulso, ver-se na rua? A punição não tem medida comum com o motivo apresentado, dado como evidente. Que seja tratado como um crime o facto de não se poder pagar, de não se conseguir pagar, é já em si surpreendente, se pensarmos bem. Mas ser castigado dessa maneira, lançado à rua por já não estar em condições de pagar um aluguer porque se perdeu o trabalho, numa situação em que esse trabalho escasseia por toda a parte, manifesta e oficialmente, ou por o emprego que nos está atribuído estar tarifado demasiado abaixo, se comparado com o preço aberrante de alugueres demasiado raros, tudo isso tem o seu quê de demencial ou de uma perversidade deliberada. Tanto mais que nos é exigido um domicílio, para conservar ou encontrar esse trabalho que constitui o único meio de obter um domicílio.
Portanto, resta-nos a rua. A rua, menos difícil, menos insensível do que os nossos sistemas!
Não só é injusto, como é de um absurdo atroz, de uma estupidez consternante, que torna cómicos os modos auto-suficientes das nossas sociedades ditas civilizadas. A menos que isso denuncie também interesses muito bem geridos. De qualquer maneira, morre-se de vergonha. Mas afinal quem passa pela vergonha, chegando por vezes à morte, e estragando sempre a vida?
Ausência de racionalidade? Alguns exemplos:
Isentar de censura as castas afortunadas, dirigentes, neste caso ignoradas, mas acusar certos grupos desfavorecidos por o serem menos que outros. Por serem, em suma, um pouco menos humilhados. Tomar assim as humilhações por modelo pelo qual devemos alinhar – numa palavra, tomar como norma o facto de se ser humilhado.
Considerar também privilegiados, no fundo aproveitadores, os que ainda têm trabalho, mesmo mal pago; portanto, tomar como norma a ausência de trabalho. Indignar-se com o “egoísmo” dos trabalhadores, esses sátrapas que rosnam quando se trata de partilhar o trabalho, mesmo mal pago, com os que o não têm, mas não alargar essa exigência de solidariedade à partilha das fortunas ou dos lucros – o que seria considerado, nos tempos que correm, imbecil, obsoleto e além disso de uma grande falta de educação!
[...]
Outro exemplo: os esforços há muito envidados para se colocar uma parte do país contra a outra parte, declarada vergonhosamente favorecida (agentes públicos, funcionários de base), sem tomar em conta os que de facto o são, a não ser para os designar como “forças vivas da nação”. E considerar essas “forças vivas”, esses dirigentes de multinacionais (amalgamados com os das PME), como os únicos a ousar correr riscos, como se eles fossem aventureiros impacientes por correr perigos incessantes e infinitos, sempre ansiosos por pôr em jogo... não se sabe bem o quê, enquanto os nababos condutores de metropolitano, os novos-ricos encartados empregados dos correios prosperam escandalosamente, em total segurança!
“Forças vivas”, assim denominadas por se supor serem detentoras e produtoras de empregos, mas que, mesmo subvencionadas, isentas de impostos, mimadas para esse fim, não só não criam nenhum ou quase nenhum (o desemprego continua a aumentar), como, mesmo recebendo benefícios (em parte graças às vantagens mencionadas), despendem a torto e a direito.
“Forças vivas”, portanto, antigamente designadas, de forma bastante estúpida, patrões, mas que, de repente, relegam músicos, pintores, escritores, investigadores científicos e outros saltimbancos para o papel de pesos-mortos, sem contar o resto dos humanos, todos convidados a erguer para o brilho de tais constelações humildes olhares de vermes ofuscados.
Quanto aos usurpadores que se refastelam sem vergonha na garantia de um emprego, a sua imunidade ao pânico resultante da precariedade, da fragilidade, do desaparecimento desses mesmos empregos representa um perigo escandaloso. E pior ainda, retardam a asfixia do mercado de trabalho. Ora, asfixia e pânico são o sustento da economia na sua exuberante modernidade, e os melhores garantes da “coesão social”.
[...]
[...] Desvendam-se aqui os sentimentos reais que os dominadores experimentam pelos outros, seja qual for o regime – e em que base se calculam. Depressa descobriremos, e sem dúvida cada vez melhor, infelizmente, com o tempo, como, segundo esses cálculos, depois de transformado em zero, de excluído se passa a expulso.
O declive é bem inclinado. As agonias do trabalho perdido vivem-se a todos os níveis da escala social. Em cada um deles, são sentidas como uma prova acabrunhante que parece profanar a identidade de quem a sofre. Ocorre de imediato o desequilíbrio, a humilhação (injustificada), e o perigo. Os quadros podem estar sujeitos a isto, no mínimo tanto quanto os trabalhadores menos qualificados. É surpreendente descobrir até que ponto se pode perder rapidamente o pé e como a sociedade se torna severa, como se perdem todos ou quase todos os recursos quando se está destituído! Tudo vacila, se fecha e se afasta ao mesmo tempo. Tudo se fragiliza, mesmo a casa onde se mora. A rua torna-se próxima. Respeitam-se muito pouco os direitos daquele que deixou de ter “meios”. Sobretudo o direito de ser poupado, em qualquer aspecto.
Instalam-se então os limites, a exclusão social. E acentua-se a ausência geral e flagrante de racionalidade. Que correlação razoável pode haver, por exemplo, entre perder um trabalho e ser expulso, ver-se na rua? A punição não tem medida comum com o motivo apresentado, dado como evidente. Que seja tratado como um crime o facto de não se poder pagar, de não se conseguir pagar, é já em si surpreendente, se pensarmos bem. Mas ser castigado dessa maneira, lançado à rua por já não estar em condições de pagar um aluguer porque se perdeu o trabalho, numa situação em que esse trabalho escasseia por toda a parte, manifesta e oficialmente, ou por o emprego que nos está atribuído estar tarifado demasiado abaixo, se comparado com o preço aberrante de alugueres demasiado raros, tudo isso tem o seu quê de demencial ou de uma perversidade deliberada. Tanto mais que nos é exigido um domicílio, para conservar ou encontrar esse trabalho que constitui o único meio de obter um domicílio.
Portanto, resta-nos a rua. A rua, menos difícil, menos insensível do que os nossos sistemas!
Não só é injusto, como é de um absurdo atroz, de uma estupidez consternante, que torna cómicos os modos auto-suficientes das nossas sociedades ditas civilizadas. A menos que isso denuncie também interesses muito bem geridos. De qualquer maneira, morre-se de vergonha. Mas afinal quem passa pela vergonha, chegando por vezes à morte, e estragando sempre a vida?
Ausência de racionalidade? Alguns exemplos:
Isentar de censura as castas afortunadas, dirigentes, neste caso ignoradas, mas acusar certos grupos desfavorecidos por o serem menos que outros. Por serem, em suma, um pouco menos humilhados. Tomar assim as humilhações por modelo pelo qual devemos alinhar – numa palavra, tomar como norma o facto de se ser humilhado.
Considerar também privilegiados, no fundo aproveitadores, os que ainda têm trabalho, mesmo mal pago; portanto, tomar como norma a ausência de trabalho. Indignar-se com o “egoísmo” dos trabalhadores, esses sátrapas que rosnam quando se trata de partilhar o trabalho, mesmo mal pago, com os que o não têm, mas não alargar essa exigência de solidariedade à partilha das fortunas ou dos lucros – o que seria considerado, nos tempos que correm, imbecil, obsoleto e além disso de uma grande falta de educação!
[...]
Outro exemplo: os esforços há muito envidados para se colocar uma parte do país contra a outra parte, declarada vergonhosamente favorecida (agentes públicos, funcionários de base), sem tomar em conta os que de facto o são, a não ser para os designar como “forças vivas da nação”. E considerar essas “forças vivas”, esses dirigentes de multinacionais (amalgamados com os das PME), como os únicos a ousar correr riscos, como se eles fossem aventureiros impacientes por correr perigos incessantes e infinitos, sempre ansiosos por pôr em jogo... não se sabe bem o quê, enquanto os nababos condutores de metropolitano, os novos-ricos encartados empregados dos correios prosperam escandalosamente, em total segurança!
“Forças vivas”, assim denominadas por se supor serem detentoras e produtoras de empregos, mas que, mesmo subvencionadas, isentas de impostos, mimadas para esse fim, não só não criam nenhum ou quase nenhum (o desemprego continua a aumentar), como, mesmo recebendo benefícios (em parte graças às vantagens mencionadas), despendem a torto e a direito.
“Forças vivas”, portanto, antigamente designadas, de forma bastante estúpida, patrões, mas que, de repente, relegam músicos, pintores, escritores, investigadores científicos e outros saltimbancos para o papel de pesos-mortos, sem contar o resto dos humanos, todos convidados a erguer para o brilho de tais constelações humildes olhares de vermes ofuscados.
Quanto aos usurpadores que se refastelam sem vergonha na garantia de um emprego, a sua imunidade ao pânico resultante da precariedade, da fragilidade, do desaparecimento desses mesmos empregos representa um perigo escandaloso. E pior ainda, retardam a asfixia do mercado de trabalho. Ora, asfixia e pânico são o sustento da economia na sua exuberante modernidade, e os melhores garantes da “coesão social”.
[...]
«O HORROR ECONÓMICO [8]
[...] Um efeito de estupor, de certo modo, [...] não deixa de recordar o abatimento dos povos colonizados por homens que tinham, para o melhor ou para o pior, atingido uma idade histórica diferente da sua e que assim viam a sua civilização revogada. Os valores espezinhados dos indígenas tornavam-se inoperantes nos próprios locais onde haviam florescido, onde pouco tempo antes ainda se aplicavam, mas onde eram vencidos, como que exilados, perante o novo poder que se instalava sem lhes conferir os meios de penetrar livres, em pé de igualdade, no novo sistema importado à força e sem lhes dar direito a nenhum direito.
Em contrapartida, os usurpadores outorgavam-se todos os direitos sobre os que, privados dos seus modos de vida, de pensamento, de crença e de saber, deixados sem referências, verdadeiramente siderados, acabavam por perder a energia e toda a capacidade, mas mais ainda todos os desejos, entre os quais o de compreender, e sobretudo de resistir. Povos cuja sabedoria, ciência e valores hoje reconhecemos, muitas vezes bons guerreiros apagavam-se, aprisionados numa civilização predadora que não era a sua e os rejeitava. Povos petrificados, paralisados, tetanizados, em sofrimento entre duas eras, vivendo num tempo anterior, numa cronologia diferente da dos seus conquistadores, que lhes impunham o outro presente sem o partilhar em nada. E isso em regiões que, compondo todo o seu mundo, tudo o que sabiam e imaginavam do mundo, se tornavam em prisão visto que, para eles, não existia mais nada.
Isto, será que não faz lembrar algo?
Não estamos nós também assustados, amarrados dentro de um mundo familiar mas mergulhado num domínio que nos é estranho? Sob o império mundializado do “pensamento único”, num mundo que já não funciona ao mesmo ritmo do nosso, que já não responde às nossas cronologias, mas cujo horário prevalece. Um mundo sem distâncias, por estar todo sob esse domínio, mas ao qual nos agarramos, empenhados em continuar seus súbditos doloridos, fascinados para sempre pela sua beleza, pelas suas oferendas, as suas trocas e perseguidos pela lembrança do tempo em que, submergidos pelo trabalho, ainda podíamos dizer: “Não morreremos, estamos demasiado atarefados.”
Hoje estamos ainda na fase da surpresa, de um certo definhar, de um condicionamento. A tragédia ainda não é espectacular. No entanto, no cerne, bem próximo do nervo daquilo que se considera ser o auge da civilização, “civilizados” dessa civilização excluem os que já não convêm e cujo número se sabe ir crescendo em proporções inimagináveis. Ainda se toleram os outros, mas cada vez menos outros, com cada vez mais impaciência e em condições mais e mais severas, segundo pontos de vista cada vez mais abertamente brutais. Já não se procuram tantos álibis e desculpas: o sistema está dado como adquirido. Baseado no dogma do lucro, está para lá das leis, que desarticula se necessário.
Já hoje, as regiões onde ainda se respeita minimamente a condição humana – com tal especiosidade, tais reticências e como que a custo, com remorso –, essas regiões são apontadas a dedo, vilipendiadas pelos Gary Becker, implicitamente desaprovadas pelos Bancos Mundiais e outras OCDE, sem contar com todos os adeptos do “pensamento único” que, unidos às “forças vivas” de todas as nações, se empenham em chamar esses excêntricos à razão. Com êxito.
Diante disto, que contrapoderes? Nenhum. Abrem-se sem resistência as portas aos bárbaros afectados, ao saque de luva branca.
E isto é só o começo. Convém estar muito atento a este tipo de começos: a princípio, nunca parecem criminosos, nem mesmo realmente perigosos. Desenvolvem-se com a concordância de pessoas perfeitamente encantadoras, de boas maneiras e bons sentimentos, incapazes de fazer mal a uma mosca, e que, aliás – se se derem ao trabalho de pensar nisso –, consideram lamentáveis, mas infelizmente inevitáveis, certas situações, e que ainda não sabem que é nesse preciso ponto que se inscreve a História, aquela de que não se aperceberam quando se tramava, quando se geravam acontecimentos que mais tarde se considerariam “indizíveis”.
É sem dúvida através desse tipo de acontecimentos (passados despercebidos quando ocorreram, ou antes censurados, eliminados da consciência) que se desenha por vezes a História. São eles que mais tarde – tarde de mais – se tornarão os sinais legíveis do que, na época, não foi digno de nota.
Por não termos tido consciência do que significava, desde o início, a sorte dos nossos contemporâneos sacrificados, tidos como um rebanho anónimo, talvez, quando tiverem passado por todas as provas daí resultantes, provas que se propagarão, cada vez mais permissivas – se é que terão fim –, talvez ainda venhamos a dizer que elas eram “indizíveis” e que “acima de tudo, não podemos esquecer”. Mas isso não será possível, porque ninguém o saberá.
Talvez haja quem esteja ainda em condições de dizer: “Isto nunca mais.” Mas talvez um dia já não haja ninguém capaz sequer de o pensar.
Exageros? É o que se diz “antes”, quando ainda se está a tempo de saber que só tocar numa unha, num cabelo, só um ultraje, constituem já um prenúncio do pior. E que os crimes contra a humanidade são sempre crimes da humanidade. Perpetrados por ela.
Este século ensinou-nos que nada dura, nem mesmo os regimes “de pedra e cal”, mas também que tudo é possível em termos de ferocidade. Ferocidade que, como nunca, se tornou apta a desencadear-se sem freio; sabe-se que, com as novas tecnologias, ela disporia hoje de dez vezes mais meios, ao lado dos quais as atrocidades passadas parecem não passar de esboços tímidos.
Como não pensar nos cenários possíveis sob um regime totalitário que não teria dificuldade em “mundializar-se” e que disporia de meios de eliminação com uma eficácia, amplitude e rapidez nunca imaginadas? Seria o genocídio total.
Mas talvez se ache uma pena não aproveitar melhor esses rebanhos de seres humanos; não os conservar com vida para fins diversos. Entre outros, como reservas de órgãos de transplante. Gado humano, stocks de órgãos vivos a que se recorreria à vontade, segundo as necessidades dos privilegiados do sistema.
Exagero? Mas qual de nós grita ao saber que na índia, por exemplo, há pobres que vendem os órgãos (rim, córnea, etc.) para sobreviver por uns tempos? É conhecido. Há clientes. Sabe-se. Isso acontece hoje. Esse comércio existe, e das regiões mais ricas, mais “civilizadas”, há quem venha fazer compras a baixo preço. Sabe-se que noutros países se roubam esses órgãos – raptos, homicídios – e que há clientes. Sabe-se. Quem grita, a não ser as vítimas? Que escudos se erguem contra o turismo sexual? Os únicos a reagir são os consumidores: acorrem. É conhecido. Assim como se sabe que é necessário abordar não tanto epifenómenos como a venda de órgãos humanos ou o turismo sexual, mas o fenómeno que lhes está na origem: a pobreza que todos conhecem, repetimos, conduz alguns pobres a deixar-se mutilar em benefício de possidentes, com o único objectivo de sobreviver um pouco mais. É aceite. Tacitamente. E estamos em democracia, livres, em grande número. Quem levanta um dedo, a não ser para fechar um jornal, apagar o televisor, dócil perante o apelo para se manter confiante, sorridente, lúdico e beato (se não se está já escondido, vencido e coberto de vergonha), enquanto o aspecto grave, a tragédia, se acentuam, invisíveis, subterrâneos e funestos, no meio de um mutismo quase geral, entrecortado por tagarelices que prometem curar o que já está morto?
Discursos atrás de discursos anunciam um “emprego” que não aparece, que não aparecerá. Locutores e ouvintes, candidatos e eleitores, políticos e público, sabem-no todos, associados em volta dos encantamentos com que procuram esquecer e negar, com motivações diversas, esse saber.
Esta atitude, que se furta ao desespero por meio de mentiras, de camuflagens, de fugas aberrantes, é desesperada e desesperante. Correr o risco da exactidão, o risco da constatação, mesmo que conduzam a um certo desespero, é, pelo contrário, o único gesto lúcido quanto ao presente e que preserva o futuro. Oferece de imediato a força de falar ainda, de pensar e de dizer. De tentar ser lúcido, de viver pelo menos com dignidade. Com inteligência. E não na vergonha e no receio, imobilizado numa armadilha a partir da qual nada nos é permitido.
Ter medo do medo, medo do desespero, é abrir caminho às chantagens que bem conhecemos. [...]»
Viviane Forrester
[in O Horror Económico: Lisboa, trad. Ana Barradas, Terramar, 1997]
Selecção de PCD
[...] Um efeito de estupor, de certo modo, [...] não deixa de recordar o abatimento dos povos colonizados por homens que tinham, para o melhor ou para o pior, atingido uma idade histórica diferente da sua e que assim viam a sua civilização revogada. Os valores espezinhados dos indígenas tornavam-se inoperantes nos próprios locais onde haviam florescido, onde pouco tempo antes ainda se aplicavam, mas onde eram vencidos, como que exilados, perante o novo poder que se instalava sem lhes conferir os meios de penetrar livres, em pé de igualdade, no novo sistema importado à força e sem lhes dar direito a nenhum direito.
Em contrapartida, os usurpadores outorgavam-se todos os direitos sobre os que, privados dos seus modos de vida, de pensamento, de crença e de saber, deixados sem referências, verdadeiramente siderados, acabavam por perder a energia e toda a capacidade, mas mais ainda todos os desejos, entre os quais o de compreender, e sobretudo de resistir. Povos cuja sabedoria, ciência e valores hoje reconhecemos, muitas vezes bons guerreiros apagavam-se, aprisionados numa civilização predadora que não era a sua e os rejeitava. Povos petrificados, paralisados, tetanizados, em sofrimento entre duas eras, vivendo num tempo anterior, numa cronologia diferente da dos seus conquistadores, que lhes impunham o outro presente sem o partilhar em nada. E isso em regiões que, compondo todo o seu mundo, tudo o que sabiam e imaginavam do mundo, se tornavam em prisão visto que, para eles, não existia mais nada.
Isto, será que não faz lembrar algo?
Não estamos nós também assustados, amarrados dentro de um mundo familiar mas mergulhado num domínio que nos é estranho? Sob o império mundializado do “pensamento único”, num mundo que já não funciona ao mesmo ritmo do nosso, que já não responde às nossas cronologias, mas cujo horário prevalece. Um mundo sem distâncias, por estar todo sob esse domínio, mas ao qual nos agarramos, empenhados em continuar seus súbditos doloridos, fascinados para sempre pela sua beleza, pelas suas oferendas, as suas trocas e perseguidos pela lembrança do tempo em que, submergidos pelo trabalho, ainda podíamos dizer: “Não morreremos, estamos demasiado atarefados.”
Hoje estamos ainda na fase da surpresa, de um certo definhar, de um condicionamento. A tragédia ainda não é espectacular. No entanto, no cerne, bem próximo do nervo daquilo que se considera ser o auge da civilização, “civilizados” dessa civilização excluem os que já não convêm e cujo número se sabe ir crescendo em proporções inimagináveis. Ainda se toleram os outros, mas cada vez menos outros, com cada vez mais impaciência e em condições mais e mais severas, segundo pontos de vista cada vez mais abertamente brutais. Já não se procuram tantos álibis e desculpas: o sistema está dado como adquirido. Baseado no dogma do lucro, está para lá das leis, que desarticula se necessário.
Já hoje, as regiões onde ainda se respeita minimamente a condição humana – com tal especiosidade, tais reticências e como que a custo, com remorso –, essas regiões são apontadas a dedo, vilipendiadas pelos Gary Becker, implicitamente desaprovadas pelos Bancos Mundiais e outras OCDE, sem contar com todos os adeptos do “pensamento único” que, unidos às “forças vivas” de todas as nações, se empenham em chamar esses excêntricos à razão. Com êxito.
Diante disto, que contrapoderes? Nenhum. Abrem-se sem resistência as portas aos bárbaros afectados, ao saque de luva branca.
E isto é só o começo. Convém estar muito atento a este tipo de começos: a princípio, nunca parecem criminosos, nem mesmo realmente perigosos. Desenvolvem-se com a concordância de pessoas perfeitamente encantadoras, de boas maneiras e bons sentimentos, incapazes de fazer mal a uma mosca, e que, aliás – se se derem ao trabalho de pensar nisso –, consideram lamentáveis, mas infelizmente inevitáveis, certas situações, e que ainda não sabem que é nesse preciso ponto que se inscreve a História, aquela de que não se aperceberam quando se tramava, quando se geravam acontecimentos que mais tarde se considerariam “indizíveis”.
É sem dúvida através desse tipo de acontecimentos (passados despercebidos quando ocorreram, ou antes censurados, eliminados da consciência) que se desenha por vezes a História. São eles que mais tarde – tarde de mais – se tornarão os sinais legíveis do que, na época, não foi digno de nota.
Por não termos tido consciência do que significava, desde o início, a sorte dos nossos contemporâneos sacrificados, tidos como um rebanho anónimo, talvez, quando tiverem passado por todas as provas daí resultantes, provas que se propagarão, cada vez mais permissivas – se é que terão fim –, talvez ainda venhamos a dizer que elas eram “indizíveis” e que “acima de tudo, não podemos esquecer”. Mas isso não será possível, porque ninguém o saberá.
Talvez haja quem esteja ainda em condições de dizer: “Isto nunca mais.” Mas talvez um dia já não haja ninguém capaz sequer de o pensar.
Exageros? É o que se diz “antes”, quando ainda se está a tempo de saber que só tocar numa unha, num cabelo, só um ultraje, constituem já um prenúncio do pior. E que os crimes contra a humanidade são sempre crimes da humanidade. Perpetrados por ela.
Este século ensinou-nos que nada dura, nem mesmo os regimes “de pedra e cal”, mas também que tudo é possível em termos de ferocidade. Ferocidade que, como nunca, se tornou apta a desencadear-se sem freio; sabe-se que, com as novas tecnologias, ela disporia hoje de dez vezes mais meios, ao lado dos quais as atrocidades passadas parecem não passar de esboços tímidos.
Como não pensar nos cenários possíveis sob um regime totalitário que não teria dificuldade em “mundializar-se” e que disporia de meios de eliminação com uma eficácia, amplitude e rapidez nunca imaginadas? Seria o genocídio total.
Mas talvez se ache uma pena não aproveitar melhor esses rebanhos de seres humanos; não os conservar com vida para fins diversos. Entre outros, como reservas de órgãos de transplante. Gado humano, stocks de órgãos vivos a que se recorreria à vontade, segundo as necessidades dos privilegiados do sistema.
Exagero? Mas qual de nós grita ao saber que na índia, por exemplo, há pobres que vendem os órgãos (rim, córnea, etc.) para sobreviver por uns tempos? É conhecido. Há clientes. Sabe-se. Isso acontece hoje. Esse comércio existe, e das regiões mais ricas, mais “civilizadas”, há quem venha fazer compras a baixo preço. Sabe-se que noutros países se roubam esses órgãos – raptos, homicídios – e que há clientes. Sabe-se. Quem grita, a não ser as vítimas? Que escudos se erguem contra o turismo sexual? Os únicos a reagir são os consumidores: acorrem. É conhecido. Assim como se sabe que é necessário abordar não tanto epifenómenos como a venda de órgãos humanos ou o turismo sexual, mas o fenómeno que lhes está na origem: a pobreza que todos conhecem, repetimos, conduz alguns pobres a deixar-se mutilar em benefício de possidentes, com o único objectivo de sobreviver um pouco mais. É aceite. Tacitamente. E estamos em democracia, livres, em grande número. Quem levanta um dedo, a não ser para fechar um jornal, apagar o televisor, dócil perante o apelo para se manter confiante, sorridente, lúdico e beato (se não se está já escondido, vencido e coberto de vergonha), enquanto o aspecto grave, a tragédia, se acentuam, invisíveis, subterrâneos e funestos, no meio de um mutismo quase geral, entrecortado por tagarelices que prometem curar o que já está morto?
Discursos atrás de discursos anunciam um “emprego” que não aparece, que não aparecerá. Locutores e ouvintes, candidatos e eleitores, políticos e público, sabem-no todos, associados em volta dos encantamentos com que procuram esquecer e negar, com motivações diversas, esse saber.
Esta atitude, que se furta ao desespero por meio de mentiras, de camuflagens, de fugas aberrantes, é desesperada e desesperante. Correr o risco da exactidão, o risco da constatação, mesmo que conduzam a um certo desespero, é, pelo contrário, o único gesto lúcido quanto ao presente e que preserva o futuro. Oferece de imediato a força de falar ainda, de pensar e de dizer. De tentar ser lúcido, de viver pelo menos com dignidade. Com inteligência. E não na vergonha e no receio, imobilizado numa armadilha a partir da qual nada nos é permitido.
Ter medo do medo, medo do desespero, é abrir caminho às chantagens que bem conhecemos. [...]»
Viviane Forrester
[in O Horror Económico: Lisboa, trad. Ana Barradas, Terramar, 1997]
Selecção de PCD
«Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro.
Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País.
A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.
Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar.»
Guerra Junqueiro, 1896
Selecção de Daniel Pires
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro.
Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País.
A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.
Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar.»
Guerra Junqueiro, 1896
Selecção de Daniel Pires
quarta-feira, 21 de abril de 2010
A infanticida Marie Farrar
Tradução de Paulo César de Souza
1
Marie Farrar, nascida em abril, menor
De idade, raquítica, sem sinais, órfã
Até agora sem antecedentes, afirma
Ter matado uma criança, da seguinte maneira:
Diz que, com dois meses de gravidez
Visitou uma mulher num subsolo
E recebeu, para abortar, uma injeção
Que em nada adiantou, embora doesse.
Os senhores, por favor, não fiquem indignados.
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
2
Ela porém, diz, não deixou de pagar
O combinado, e passou a usar uma cinta
E bebeu álcool, colocou pimenta dentro
Mas só fez vomitar e expelir
Sua barriga aumentava a olhos vistos
E também doía, por exemplo, ao lavar pratos.
E ela mesma, diz, ainda não terminara de crescer.
Rezava à Virgem Maria, a esperança não perdia.
Os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
3
Mas as rezas foram de pouca ajuda, ao que parece.
Havia pedido muito. Com o corpo já maior
Desmaiava na Missa. Várias vezes suou
Suor frio, ajoelhada diante do altar.
Mas manteve seu estado em segredo
Até a hora do nascimento.
Havia dado certo, pois ninguém acreditava
Que ela, tão pouco atraente, caísse em tentação.
Mas os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
4
Nesse dia, diz ela, de manhã cedo
Ao lavar a escada, sentiu como se
Lhe arranhassem as entranhas. Estremeceu.
Conseguiu no entanto esconder a dor.
Durante o dia, pendurando a roupa lavada
Quebrou a cabeça pensando: percebeu angustiada
Que iria dar à luz, sentindo então
O coração pesado. Era tarde quando se retirou.
Mas os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
5
Mas foi chamada ainda uma vez, após se deitar:
Havia caído mais neve, ela teve que limpar.
Isso até a meia-noite. Foi um dia longo.
Somente de madrugada ela foi parir em paz.
E teve, como diz, um filho homem.
Um filho como tantos outros filhos.
Uma mãe como as outras ela não era, porém
E não podemos desprezá-la por isso.
Mas os senhores, por favor, não fiquem indignados.
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
6
Vamos deixá-la então acabar
De contar o que aconteceu ao filho
(Diz que nada deseja esconder)
Para que se veja como sou eu, como e você.
Havia acabado de se deitar, diz, quando
Sentiu náuseas. Sozinha
Sem saber o que viria
Com esforço calou seus gritos.
E os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos precisamos de ajuda, coitados.
7
Com as últimas forças, diz ela
Pois seu quarto estava muito frio
Arrastou-se até o sanitário, e lá (já não
sabe quando) deu à luz sem cerimônia
Lá pelo nascer do sol. Agora, diz ela
Estava inteiramente perturbada, e já com o corpo
Meio enrijecido, mal podia segurar a criança
Porque caía neve naquele sanitário dos serventes.
Os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
8
Então, entre o quarto e o sanitário diz que
Até então não havia acontecido a criança começou
A chorar, o que a irritou tanto, diz, que
Com ambos os punhos, cegamente, sem parar
Bateu nela até que se calasse, diz ela.
Levou em seguida o corpo da criança
Para sua cama, pelo resto da noite
E de manhã escondeu-o na lavanderia.
Os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
9
Marie Farrar, nascida em abril
Falecida na prisão de Meissen
Mãe solteira, condenada, pode lhes mostrar
A fragilidade de toda criatura. Vocês
Que dão à luz entre lençóis limpos
E chamam de abençoada sua gravidez
Não amaldiçoem os fracos e rejeitados, pois
Se o seu pecado foi grave, o sofrimento é grande.
Por isso lhes peço que não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
Tradução de Paulo César de Souza
1
Marie Farrar, nascida em abril, menor
De idade, raquítica, sem sinais, órfã
Até agora sem antecedentes, afirma
Ter matado uma criança, da seguinte maneira:
Diz que, com dois meses de gravidez
Visitou uma mulher num subsolo
E recebeu, para abortar, uma injeção
Que em nada adiantou, embora doesse.
Os senhores, por favor, não fiquem indignados.
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
2
Ela porém, diz, não deixou de pagar
O combinado, e passou a usar uma cinta
E bebeu álcool, colocou pimenta dentro
Mas só fez vomitar e expelir
Sua barriga aumentava a olhos vistos
E também doía, por exemplo, ao lavar pratos.
E ela mesma, diz, ainda não terminara de crescer.
Rezava à Virgem Maria, a esperança não perdia.
Os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
3
Mas as rezas foram de pouca ajuda, ao que parece.
Havia pedido muito. Com o corpo já maior
Desmaiava na Missa. Várias vezes suou
Suor frio, ajoelhada diante do altar.
Mas manteve seu estado em segredo
Até a hora do nascimento.
Havia dado certo, pois ninguém acreditava
Que ela, tão pouco atraente, caísse em tentação.
Mas os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
4
Nesse dia, diz ela, de manhã cedo
Ao lavar a escada, sentiu como se
Lhe arranhassem as entranhas. Estremeceu.
Conseguiu no entanto esconder a dor.
Durante o dia, pendurando a roupa lavada
Quebrou a cabeça pensando: percebeu angustiada
Que iria dar à luz, sentindo então
O coração pesado. Era tarde quando se retirou.
Mas os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
5
Mas foi chamada ainda uma vez, após se deitar:
Havia caído mais neve, ela teve que limpar.
Isso até a meia-noite. Foi um dia longo.
Somente de madrugada ela foi parir em paz.
E teve, como diz, um filho homem.
Um filho como tantos outros filhos.
Uma mãe como as outras ela não era, porém
E não podemos desprezá-la por isso.
Mas os senhores, por favor, não fiquem indignados.
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
6
Vamos deixá-la então acabar
De contar o que aconteceu ao filho
(Diz que nada deseja esconder)
Para que se veja como sou eu, como e você.
Havia acabado de se deitar, diz, quando
Sentiu náuseas. Sozinha
Sem saber o que viria
Com esforço calou seus gritos.
E os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos precisamos de ajuda, coitados.
7
Com as últimas forças, diz ela
Pois seu quarto estava muito frio
Arrastou-se até o sanitário, e lá (já não
sabe quando) deu à luz sem cerimônia
Lá pelo nascer do sol. Agora, diz ela
Estava inteiramente perturbada, e já com o corpo
Meio enrijecido, mal podia segurar a criança
Porque caía neve naquele sanitário dos serventes.
Os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
8
Então, entre o quarto e o sanitário diz que
Até então não havia acontecido a criança começou
A chorar, o que a irritou tanto, diz, que
Com ambos os punhos, cegamente, sem parar
Bateu nela até que se calasse, diz ela.
Levou em seguida o corpo da criança
Para sua cama, pelo resto da noite
E de manhã escondeu-o na lavanderia.
Os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
9
Marie Farrar, nascida em abril
Falecida na prisão de Meissen
Mãe solteira, condenada, pode lhes mostrar
A fragilidade de toda criatura. Vocês
Que dão à luz entre lençóis limpos
E chamam de abençoada sua gravidez
Não amaldiçoem os fracos e rejeitados, pois
Se o seu pecado foi grave, o sofrimento é grande.
Por isso lhes peço que não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
Assinar:
Postagens (Atom)