Uma vez senti algo semelhante. Tinha que pagar a um oculista. Levava o cheque já preenchido. Cheguei ao sítio e disseram-me: Morreu ontem, num desastre de carro. Tinha o cheque em nome dele, e agora estava morto. O primeiro pensamento foi: se eu tenho um cheque para lhe pagar, ele não pode estar morto. O segundo pensamento, passado uns segundos, foi: como é que a tua cabeça foi capaz de ter aquele 2º pensamento? O quarto foi: toda a gente pensa todas as hipóteses numa situação, mesmo as hipóteses mais nojentas.
Mas o senhor tinha um pai ainda vivo, e eu rasguei o cheque antigo e escrevi o nome do pai no cheque - era quase o mesmo, só mudava a primeira palavra. Estávamos os dois num restaurante de comidas rápidas, de pé. E o pai do meu oculista, que morrera num desastre de automóvel dois dias antes, estava vestido de preto e estava triste, falava pouco, e tinha os olhos baixos. Mas recebeu o cheque.
Conto de Gonçalo M. Tavares, incluído no livro " água, cão, cavalo, cabeça ", Ed.Caminho
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