sexta-feira, 30 de abril de 2010

Os vivos

Claro, a raiva domestica-se como os cães. Mas, certas vezes, alguém cede e atira uma bala a dois metros na cara do outro, em pleno café.

Uma tese; esta.

«Um homem só pode actuar porque pode ignorar, e contentar-se com uma parte do conhecimento.» (E sobre o conhecimento escreve que é o capricho particular do homem: ultrapassa o necessário.)



Tens dois metros para saltar e saltas quatro, mas esses dois a mais nada contam senão para o orgulho: não recebes mais pontos nem menos doenças: foi exibida uma habilidade, e é tudo.



As oportunidades de suícidio perdem-se como as moedas. Mas se fazem muito barulho a cair no chão, voltas atrás, baixas o corpo e recuperas essa moeda: guarda-a bem, um dia poderás ter que a utilizar.



A mesma moeda que não sai da posse da mesma pessoa. É imaginar um acaso destes, quinze anos com a mesma moeda: foi um acaso, nada de intencional.



Atirou-se da ponte. Parou o carro. Andou uns metros sobre a ponte. E depois atirou-se. No funeral, mulheres choravam e homens que choravam sem esconder a cara: nada assusta mais que uma coisa vertical e séria que chora, aceitação de tudo: eu aceito, ele aceita, todos aceitam.



E, claro, a ponte: o suicídio. É que por vezes é a raiva que domestica o corpo. Nem sempre os vivos são fortes como alguns vivos são fortes.


Conto de Gonçalo M.Tavares, incluído no livro " água, cão,cavalo, cabeça ", Ed. Caminho

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