Não me considerem esnobe, exibido. Mascarado, como se dizia
na minha infância. Não usam mais a palavra? Tão atual. O que há de gente
mascarada no mundo. Vou dizer o óbvio. Para desfrutar melhor Paris, a Provence
celebrada, e outros, sabendo francês, os prazeres multiplicam-se por cem, o
desfrute por duzentos, a alegria por quinhentos. Mesmo que você tenha ido
apenas para fazer compras, como a maioria dos brasileiros, que pedem descontos
em português mesmo e em altos brados (ou em brado retumbante), vale a pena
aprender francês.
O parisiense muda quando você se dirige a ele na sua língua,
ainda que precariamente, como eu. Quem não gosta de uma pessoa que chega e você
percebe o esforço que ela faz para se expressar em sua língua natal? Assim,
vale a pena aprender francês para poder caminhar à vontade em Paris deixando-se
envolver por ela, sabendo um pouco mais.
Claro, o francês não é importante apenas por isso. Mas já é
um enorme handicap. Há as revistas, os milhares de livros traduzidos do mundo
inteiro, o cinema, a música, até a facilidade nas compras. Só poder ler a gigantesca
coleção La Pléiade (projeto de uma vida) no original é uma bênção, raras vezes
igualada. Ou os fólios, delicados, sensuais? Hoje estamos aprendendo apenas o
que o mercado chama de línguas úteis, como o inglês, o japonês, o mandarim.
Mandarim? (Eu lá quero falar chinês?) Para vencermos na vida? Nos tornarmos
empreendedores? Sermos alguém? Mas o que é ser alguém? Tudo tem de ter
aplicação prática? Se é assim, acabemos com o ensino brasileiro, ele não leva a
nada, do jeito que está estruturado.
Há na nossa vida algo que é preciso preencher. Uma
necessidade interior de espírito, contemplação do mundo, da vida, avaliação das
coisas. Encarar a existência como algo que precisa de alimento. Foram
eliminando as línguas de todos os cursos, a não ser alguns muito
especializados. Tive no ginásio português, inglês, francês, latim e espanhol e
posso dizer que isso me ajudou. Mas vieram deletando tudo, como se diz. E o
francês se foi por meio de ministros que só pensam em política. O atual quer a
Prefeitura de São Paulo, imaginem. Nem administrou direito o Enem.
A primeira palavra que aprendi em francês foi: nous. Estava
no primeiro ano do ginásio. Tínhamos aulas de francês desde o primeiro dia com
mademoiselle Fanny, uma graça de pessoa. Perguntamos: "Por que a senhora
começou com o nous, que significa nós, e não com o je, que quer dizer eu?"
Ela sacudiu o dedo: "O nous somos todos, é o coletivo, a classe. O je é
muito individualista." Esses eram os professores que tínhamos. Jamais dona
Fanny falou em português na aula. Nos virávamos para saber o que ela queria
dizer. Ela sabia conduzir a lição, de maneira que descobríamos os significados
e as pronúncias às vezes sutis do francês, língua tão poética, sensível, cheia
de nuances, e ao mesmo tempo incisiva. Dificuldades terríveis para diferenciar
Anne (Ana) de âne (asno). A professora insistia, queria a perfeição. Nesta
minha idade, penso, dia desses entrar para a Aliança Francesa a fim de
aperfeiçoar minha precariedade.
Donna Fanny ainda está lá em Araraquara. Até algum tempo
atrás, quando eu a encontrava na rua, ela me dizia, como sempre disse ao entrar
na classe:
- Bonjour,
mon enfant!
- Bonjour,
madame.
- Mademoiselle, mademoiselle...
Ria, afetuosa. Aos 14 anos estávamos lendo Alexandre Dumas
no original. Não era fácil, mas a gente acabava gostando, se imaginava na
França. Também Victor Hugo, Lamartine, Chateaubriand, depois Balzac, Flaubert,
Stendhal. Hoje chegaríamos a Le Clézio, Houellebecq, Jonathan Littell, Georges
Perec. Aos 16 tivemos acesso a Jaques Prévert, que deslumbramento! A poesia
entrava em nós por meio de Aragon, Paul Valéry, Verlaine, e, claro Rimbaud e
Baudelaire, o maldito. Também Céline, complicado, Camus, os romances de Sartre,
um pouco de Proust (eu mantinha a tradução do Quintana do lado). Toda semana,
nos anos 50, havia um filme francês no cinema. Fanny insistia para que
fôssemos. Não era exigir muito, sabíamos que algumas estrelas francesas como
Martine Carol, Claudine Dupuis e Françoise Arnoul mostravam os peitinhos, era
um avanço na nossa vida sexual. Mas havia Arlety, Edwige Feuillère, Maria
Casarés, soberbas. E Gerard Philippe, jamais substituído. Hoje minhas paixões
são Juliette Binoche, Irene Jacob, Marion Cotillard. Por outro lado,
descobrimos os filmes de Marcel Carné, de René Clair, André Cayatte, Jean
Delannoy, Robert Bresson, clássicos. Depois, digerimos toda nouvelle vague, que
mudou a linguagem do cinema.
Nós, que aprendemos francês, tivemos sempre algo mais dentro
de nós. De coisas pequenas e grandes. Não estou aqui para fazer lista e apenas
para insistir numa coisa muito simples: sabendo francês, sempre me senti um
pouco mais feliz na vida. Uma delas foi ouvir, recentemente, do garçom de um
bistrô; "Monsieur, vous êtes du quartier?" (O senhor é do bairro?)
Que, como Eros Grau diz em um livrinho delicioso sobre Paris, é um sinal de que
você está sendo aceito. Coisa nada fácil para um estrangeiro. Que volte o
francês às escolas!
Ignácio de Loyola Brandão - O Estado de S.Paulo.04 de novembro de 2011 | 3h 06
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