quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Barthes amordaçado



A morte anula todos os medos, porque os ultrapassa. O luto nunca é o que se pensa que seja

Só um tema amordaça um grande escritor como o francês Roland Barthes (1915-1980): a morte. Em particular, a morte da mãe, que é, também, a morte da origem. Em “Diário de luto” (Martins Fontes, tradução de Leyla Perrone- Moisés), conjunto de 330 notas que o filósofo começou a escrever em 26 de outubro de 1977, dia seguinte ao da morte de sua mãe, e encerrou em 15 de setembro de 1979, as palavras estão sempre a lhe escapar. Elas o desprezam. Elas lhe fogem.

Barthes balbucia. Escreve seu diário apesar da sensação crescente de que a escrita sôfrega não dá conta de seu tema. Trata-se de luta destinada ao fracasso. Mas é justamente da escrita do fracasso que se trata. É dessa derrota anterior que ele, o escritor, precisa partir. Que nome dar à morte? Palavra vazia, que fala de uma ausência, não permite sínteses, tampouco suporta pensamentos. Ao contrário, ela os massacra. Ela os amordaça.

A primeira anotação traz só duas frases e uma dúvida: “Primeira noite de núpcias. Mas primeira noite de luto?” As núpcias falam de um encontro, mas a morte é um desencontro. Noite, portanto, aniquilada, a partir da qual Barthes se impõe — como um menino agarrado à saia inexistente — a tarefa de escrever. Não para pegar, ou para “chegar a”; mas para consolar e, talvez mais ainda, aceitar a inexistência de um consolo. A isso, aliás, chamamos luto. Não algo que se pega, mas que se atravessa.

Afirma Barthes: “Todos calculam — eu o sinto — o grau de intensidade do luto. Mas é impossível (sinais irrisórios, contraditórios) medir quando alguém está atingido”. Certo: a morte aponta para o impossível, coloca- o em cena. Mas uma pergunta ainda pode ser feita: o que é possível fazer do impossível? Que papel atuar? Em qual script confiar? Que máscaras vestir?

A mãe morta: ainda ousamos falar dela. Mas será dela mesma que falamos? Reflete Barthes: “Na frase ‘Ela não sofre mais’, a que, a quem remete o ela?” A escrita esbarra em seu limite quando, na morte, tem como objeto o que já não existe. Não há objeto algum. Só palavras, e mais palavras, que Barthes espreme em fichas metódicas. Isso é um livro? Responde Barthes: “Tomando estas notas, confiome à banalidade que há em mim”.

Sim, porque a morte conduz ao banal. Mortos, nos tornamos todos iguais: não passamos de restos. Dizem, solenemente: “restos mortais”. O que fomos — as diferenças, as “personalidades”, os estilos, os vícios, as manias — nada mais está ali. Não é da mãe que se trata, mas de um resto da mãe, atrás do qual Roland Barthes, outra vez como um menino em desespero, insiste em procurá-la.

A morte coloca a literatura sob suspeita. Aponta sua fragilidade, sua incapacidade. Diante da morte, a literatura é impotente. “Não quero falar disso por medo de fazer literatura”, ele admite. Mas acrescenta: “embora, de fato, a literatura se origine dessas verdades”. De fato, a literatura surge de uma falta, caso contrário ninguém teria paciência de escrever. Ficções, poemas, para que servem? Diz Barthes: “O espantoso destas notas é o sujeito devastado submetido à presença de espírito”. Não o espírito religioso que sobrevive  à carne, mas o espírito humano — sensibilidade, inteligência, altivez — que só existe nos vivos.

Da mãe, restam as últimas palavras. “Meu R, meu R”, ela murmura. “Estou aqui”. E ainda, a um passo de abandonar a vida, mas sem largar o papel de mãe: “Você está mal, está mal sentado”. As palavras como últimos sinais (fronteira) de uma presença. Sem as palavras, a dolorosa verdade: nada há. Ao lembrar do corpo que sustentou estas palavras de despedida, ele anota: “Cada vez menos coisas a escrever, a dizer, exceto isto (mas não posso dizê-lo a ninguém)”. Não pode e, no entanto, diz. Admite Barthes a falência de uma língua separada de seu corpo. O silêncio, a repugnância.

Há, porém, uma vantagem no luto: a perda terrível já aconteceu. Assinala Barthes — “luto: região atroz onde não tenho mais medo”. A morte anula todos os medos, porque os ultrapassa. O luto nunca é o que se pensa que seja. Diz: “Assusta-me absolutamente o caráter descontínuo do luto”. Também o teatro da morte (o preto, o choro, o desespero) fracassa. Tudo, na morte, é fracasso. O pior: na vida, quase tudo também. Que se observem as palavras com seu gaguejar. Barthes luta (luto) para escapar de qualquer tipo de teatro — para ter “a morte em si”. Repreende- se: “Não dizer Luto. É psicanalítico demais. Não estou de luto. Estou triste”.

Luto: “mal-estar, situação sem chantagem possível”. Trata-se do irremediável. Não existe anestésico. Nada. Os bons sentimentos tornamse inúteis. “Todos são ‘muito gentis’ — e, no entanto, sinto-me só”. As próprias palavras se tornam traiçoeiras. Por exemplo, a palavra desespero, quase sempre associada à morte. Escreve: “Desespero: a palavra é demasiadamente teatral, faz parte da linguagem. Uma pedra”. Isso porque as palavras, ditas em referência ao inexistente, nada sustentam, limitam-se a pesar.

A morte embaralha o Tempo. Mais ainda: ela o destrói. Onde está o presente? “Sofro com o medo do que aconteceu”, Barthes anota. Dá-se conta, então, que repete um pensamento de Donald Winnicott: “medo de um desmoronamento que já aconteceu”. Mas se o que está para vir “já aconteceu”, onde está o futuro? Eis o que a morte faz: impede a visão do futuro. Veda-o. Lembra Barthes que Marcel Proust falava de “chagrin” (“desgosto”) e não de “deuil” (“luto”). A morte ensina: é preciso ter cuidado com as palavras.

Tenta pensar, enfim, no desgosto que atravessa e nas coisas do mundo que se afastam. Encontra algo: “O que me parece mais afastado de meu desgosto, de mais antipático a ele: a leitura do jornal ‘Le Monde’ e suas maneiras ácidas e informadas”. A morte não é ácida — ela não é. Não carrega qualquer informação, ao contrário, é a ausência absoluta de informação. O que se sabe de um morto? Nada. Mesmo os necrológicos dos jornais, o que fazem, senão embalsamar os que partiram? Sugere Barthes: talvez a morte não passe de uma “espécie de epopeia sem atitude heroica”. Eis o buraco (cova): devemos prestar atenção no “sem”.



- José Castello. O Globo. 26 Oct 2011 

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