A arte não tem moralidade nem senso de justiça, muito menos
bula ou modo de usar
Há pouco tempo,
Vargas Llosa publicou um artigo excelente no “El País” em defesa da obra de
Louis-Ferdinand Céline, nome artístico do doutor Auguste Destouches, médico
francês antissemita que, segundo consta, na época da França ocupada pelos
alemães, entregou à Gestapo algumas famílias judias.
Seu texto é uma manifestação de repúdio à decisão do
ministro da Cultura da França de, cedendo à pressão de oganizações humanitárias
e associações de filhos de judeus deportados, não celebrar o cinquentenário da
morte do escritor. Não acho uma atitude digna da tradição judaica banir este
portentoso artista do calendário de comemorações francesas, da mesma forma que
acho absurda a proibição de se tocar Wagner em Israel.
Sou judia por conversão, o que, na prática, significa que
sou judia pela simples razão de ter optado pelo judaísmo. Ao contrário de quase
todas as outras culturas religiosas, o judaísmo não é catequista. Resiste à
voracidade de “conversíveis” em potencial. É preciso que se tenha razões
convincentes para que um rabino sério aceite colocar alguém no processo de
conversão.
Admiro o judaísmo sobretudo por sua crença no homem e na
bondade humana. É sempre mais difícil acreditarmos no homem do que em Deus.
Deus é caleidoscópico, e pode-se acreditar em muitas formas de sua existência:
amor, razão, mistério, fé ou natureza. Mas a humanidade é uma só e sua face é
geralmente assustadora.
No entanto, todo o pensamento religioso judaico repousa
neste crédito aos mortais, e de sua estruturação na “Torá” surgiram as bases do
que chamamos de civilização.
Meu marido nasceu judeu. Sua família foi expulsa da Áustria
da forma mais traumática possível, e até hoje John, diferentemente de mim,
jamais conseguiu ler Céline. Com meu incentivo, tentou por diversas vezes
passar das primeiras 50 páginas da obra-prima “Viagem ao Fundo da Noite”, mas
desistiu em todas elas. “Está além das minhas forças”, ele diz.
“Viagem ao Fundo da Noite” é, desde sempre, um livro que não
sai de meu alcance. Descobri-o adulta, e desde então devoto à obra deste autor
o mesmo respeito e admiração que tenho por autores da mesma grandeza: Joyce,
Dostoievsky, Fernando Pessoa e Shakespeare. Quando digo isso, estou falando,
evidentemente, de Céline, o artista e não o homem. Consigo perfeitamente
separar as duas figuras. Auguste Destouches é abominável e não está no meu
mundo. Mas Céline é o James Joyce da França. Ele fez pela ficção francesa o
mesmo que Joyce fez pelo romance moderno inglês. Em poucas palavras, Céline
abocanhou e vomitou a modernidade, dinamizou a narrativa e criou um mundo
estético inteiramente novo.
Vargas Llosa nos chama a atenção para o perigo que
representa a mensagem desta decisão do ministro francês. Vetar Céline das
comemorações vale o endosso à ideia de que a literatura deve ser instrutiva.
É fácil seguir adiante na sua premissa. É possível, segundo
a mesma lógica, que se cobre dos artistas e de sua produção uma moralidade e
senso de justiça condizentes ao que se chama hoje de “politicamente correto”.
Sendo assim, poderemos, no futuro, retirar da vida literária personagens que
agem de forma condenável ou que fumam. E até – por que não? – autores que
fumam? Afinal, se arte é moralidade, se arte é senso de justiça, deve ser
também modelo de bem viver e de virtudes.
Mas arte, não custa repetir, é forma. O conteúdo é apenas e
tão somente seu subproduto. Arte, portanto, não tem moralidade nem senso de
justiça, muito menos bula ou modo de usar.
Arte não serve para nada (e muito menos nós, os artistas).
Arte é arte. E a razão de se fazer arte é a própria arte, da mesma forma que a
razão da vida é a própria vida ou o mistério que ela emana.
É triste e desesperador ver a França que moldou os ideais
iluministas no passado agindo da mesma forma que a Alemanha hitlerista: apontando
e segregando a arte “degenerada” e elegendo a arte pura e edificante como arte
oficial.
Patrícia
Melo
Fonte: IstoÉ Independente
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