quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Loucura peruana




Foi vendendo a comida que faziam em casa que conseguiram um lugar na sociedade de colonizadores


Como não fui ao festival do Peru, fiquei estudando por aqui, lendo sobre o mercado de Cuzco, suas tendas, geralmente tocadas por mulheres de geração em geração.
Foi vendendo a comida e a bebida que faziam em casa, saindo para a rua, é que conseguiram um lugar na nova sociedade dos colonizadores.

Assisti a um filme de 2006 de Claudia Llosa. Madeinusa. É o nome do filme e da protagonista, que mora num povoado andino fictício, Mayacuna. Um peruano citadino, Salvador, fica preso na cidade por causa de uma rocha que caiu na estrada. O povo desconfia dele e quer que volte para Lima. Só que, sem saída, é preso por Don Cavo, pai de Madeinusa no celeiro da família.
Os nativos não gostam de pessoas estranhas no seu festival de Tempo Santo na semana da Páscoa. Acontece que, nesse pequeno intervalo de tempo, Deus fica cego aos pecados do homem. Logo, todos caem na orgia mais maluca.

No meio dessa folia é que a adolescente e bela Madeinusa tem que aguentar o assédio sexual do pai.
Aparece o tema de comida e violência. Nos primeiros dias do festival, homens mulheres e crianças juntam-se para comer, para jogar pelos ares, para estragar comida feita com muito carinho e esforço.
As ruas ficam cheias de restos e de vômito, as cenas macabras começam. Forçam comida garganta abaixo de uma velha morrendo, roubam o porco de uma outra para comê-lo numa bacanal.

A comida também representa a divisão cultural profunda entre a provinciana Madeinusa e o branco e urbano Salvador, que não consegue entender a língua, os costumes, e as preferências da pequena vila.
Quando Madeinusa percebe que o pai trancou Salvador no celeiro faz para ele um dos pratos preferidos de sua região, um porquinho da Índia (o cuy) assado com batatas.

Doido de fome, Salvador avança na comida e, quando prova, cospe com nojo, furioso! Que asco!
O misterioso visitante de Lima é a encarnação viva do mundo que ela procura. Madeinusa, quando quer seduzir, usa os brincos da mãe, que também fugira, deixando-a só. Nos dias do festival, ela oferece sua virgindade a Salvador, esperando que a oferta do seu corpo fosse o bastante para que ele a levasse consigo. Ele se recusa. É, então, no papel de mulher cozinheira que ela trama sua fuga. Prepara uma sopa e sua vingança. Despeja veneno de ratos num caldo e chama: "Papá, papito, tu caldo de gallina!"

O pai não acorda, ela despeja a sopa pela sua goela. Acostumada com abandono e violência, Madeinusa defende a possibilidade de seu sonho do jeito que sabe.

Foge num caminhão, orgulhosa de si mesma e principal construtora de seu caminho. Interessante é que Madeinusa, ao contrário das peruanas reais que se ergueram socialmente por meio da cozinha, não soube usar a arte, técnica e dom para escapar da pobreza, do abuso.

E, como muitas outras mulheres andinas, ela não entende que o espaço da cozinha pode oferecer às mulheres um atalho para contestar o domínio patriarcal. E porque o delicioso nome de Madeinusa? Não sei.

Foi a mãe que batizou...

 NINA HORTA - FSP.29 Sep 2011 

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