sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Em Gabrovo (Bulgária ) os cidadãos cortam os rabos de seus gatos para que no inverno as portas se fechassem mais depressa a fim de não gastar calefação.
Os corações das mulheres são diferentes,
para mil almas diferentes,
emprega mil meios para prendê-las.

Ovídio

quarta-feira, 28 de agosto de 2019


"...sabia que tinha alguma coisa fora do lugar em mim. Eu era uma soma de todos os erros: bebia, era preguiçoso, não tinha um deus, idéias, ideais, nem me preocupava com política. Eu estava ancorado no nada, uma espécie de não-ser. E aceitava isso. Eu estava longe de ser uma pessoa interessante. Não queria ser uma pessoa interessante, dava muito trabalho. Eu queria mesmo um espaço sossegado e obscuro pra viver a minha solidão. Por outro lado, de porre, eu abria o berreiro, pirava, queria tudo e não conseguia nada. Um tipo de comportamento não se casava com o outro. Pouco me importava."

Charles Bukowski

Pareço, logo existo



Foi-se o tempo em que a disputa se resumia ao clássico Ser x Ter. Dizem que ninguém mais dá a mínima para o que é, só para o que tem. Exagero. As pessoas ainda se preocupam com o que são. O problema é que não gostam do que são. Gostariam de ser outra coisa. E aí entra o verbo que está no topo das paradas hoje em dia: parecer.

Tem gente que quer parecer rica, e adota um padrão de vida que não condiz com a sua realidade. Pra manter a fachada de bem-nascida, acaba colecionando dívidas e queimando seu nome na praça. Nos eventos sociais, pode até ser a mais fotografada, mas para os comerciantes é bola preta na certa. A rica mais sem crédito das colunas.

Tem aqueles que querem parecer mais bem relacionados do que são, e se enturmam, forçam intimidade e grudam feito chiclete em pessoas que mal conhecem, só para descolar um convite para uma festa, um show, uma estreia, qualquer lugar que projete.

Os que querem parecer mais cultos do que são, você sabe, são aqueles que nunca foram além do prólogo do livro e é o que basta para olharem a ralé de cima para baixo, como se fossem portadores da sabedoria universal.

Há os que querem parecer mais jovens do que são: bom, quem não gostaria? É uma dádiva parecer ter cinco anos menos, sem esforço. A genética é mais generosa com uns do que com outros. Há muito tempo que eu não tento mais adivinhar a idade de ninguém: sempre erro, já que todo mundo parece ter bem menos. Mas se você tem 56 e parece ter 56, não é caso para enfiar a cabeça dentro do forno.

Os casos mais patéticos, no entanto, são os daquelas pessoas que querem parecer mais felizes do que são. O recurso adotado: mentem.

O casamento delas está uma lua de mel, os filhos só dão alegrias, são muito requisitadas no trabalho, os amigos não param de telefonar, a vida tem sido um passeio num campo florido, e fica sem explicação aquele olhar melancólico, o sorriso forçado, a exaustão de ter que passar o falso entusiasmo adiante, como se não tivéssemos condições de perceber seu verdadeiro estado de ânimo, que é coisa que se transmite sem palavras. Ver alguém se esforçando para parecer feliz é das situações mais constrangedoras que se pode testemunhar.

Está triste? Esteja! Não é rico, nem jovem, nem belo? Nem por isso ficará sozinho. Pessoas não se apaixonam por estereótipos, mas pela singularidade de cada um, pela capacidade de ser surpreendido, pela sedução que o inusitado provoca. Uma pessoa que se preocupa em “parecer” já está derrotada no primeiro minuto de jogo.

Dá valor demais à opinião dos outros, não age conforme a própria vontade, não se assume do jeito que é, inventa personagens para si mesmo e acaba se perdendo justamente deste “si mesmo”, que fica órfão. Quer parecer mais inteligente? Comece admitindo que não sabe nada sobre nada e toque aqui: ninguém sabe.


MARTHA MEDEIROS - 21 Sep 2011 

A mãe do filósofo



Arthur Schopenhauer tinha problemas com a mãe, e isso lhe marcou a vida para sempre. Já li alguma coisa dele e a respeito dele, mas talvez o que tenha gostado mais seja um volume que o meu amigo Guilherme, da Beco dos Livros, enviou-me dias atrás. Trata-se de uma alentada biografia escrita pelo alemão Rüdiger Safranski, um professor de Berlim. Nesse livro está reproduzido um extenso trecho de uma carta de Johanna, a mãe de Schopenhauer, para o filho, quando ele ainda era jovem e ainda não havia rompido com ela.

A carta é famosa. Johanna faz uma crítica corrosiva ao filho e, ao mesmo tempo, lhe dá conselhos que poderiam ajudá-lo bastante, se os acatasse. A análise da mãe de Schopenhauer é tão arguta que serve para qualquer pessoa, em qualquer época, inclusive eu e você. Vou reproduzir abaixo um pedaço ácido de sabedoria e de franqueza:

“Tu não és um homem mau, não estás desprovido de inteligência, nem de educação, em suma, dispões de tudo que poderia fazer de ti um modelo e exemplo para a sociedade humana. Conheço muito bem os teus sentimentos e sei que existem poucos melhores do que tu, mas és também aborrecido e insuportável em outros sentidos e acho muito difícil conviver contigo.

Todas as tuas boas qualidades são empanadas porque te julgas ‘esperto demais’ e essa arrogância não te serve para nada nesse mundo, simplesmente porque não podes controlar essa tua mania de querer saber mais do que os outros, de encontrar defeitos em toda parte, menos em ti mesmo, de querer controlar tudo e de te achar capaz de melhorar as pessoas com que te relacionas.

Isso serve apenas para exasperar os que se acham ao redor de ti, ninguém está interessado em ser assim ensinado e melhorado de uma forma tão violenta, menos ainda por um indivíduo tão insignificante como ainda és; ninguém pode suportar uma censura vinda de alguém que ainda demonstra tantas fraquezas em seu caráter pessoal e muito menos pode gostar dessa tua maneira de criticar os outros em um tom oracular, definindo tudo à tua maneira, sem admitir a menor objeção.

Se fosses menos instruído e inteligente do que és, serias simplesmente ridículo; mas, mesmo que reconheçam tuas qualidades, continuas extremamente irritante. Os seres humanos, em geral, não se portam com maldade quando não se sentem atacados”.

Entre tantas verdades ditas por Johanna em sua carta, há duas que chamam mais a atenção:

1. Quando ela observa que o filho tem a tendência de ver e apontar os defeitos das outras pessoas.

2. É a frase que encerra o parágrafo: “Os seres humanos, em geral, não se portam com maldade quando não se sentem atacados”.

As sentenças se completam. Uma decorre de outra. As pessoas se sentem atacadas quando surge alguém que tem o hábito de ver e apontar os seus defeitos e, sentindo-se atacadas, se portam com maldade e, portando-se com maldade, acabam demonstrando com ainda maior clareza os seus defeitos, que são apontados por quem tem o hábito de assim o fazer, e a coisa nunca mais cessa, para todo o sempre.

É muito difícil compreender esse ensinamento de madame Schopenhauer, apesar da sua simplicidade. Você pode ver as pessoas pelo lado bom ou pelo lado ruim. Isso depende de você, não das pessoas. Logo, o que é bom e o que é ruim não está nelas, mas em você, que as vê.

Pegue como exemplo alguns dos profissionais mais bem remunerados e com maior prestígio do Brasil: os técnicos de futebol. Como é que, ganhando 500, 600, 700 mil reais por mês, alguns deles se portam de forma tão ranzinza, agressiva e amarga? É porque eles não ouvem o elogio, ouvem a crítica. Deixam-se abalar pelo que existe de negativo, jamais se elevam pelo que há de positivo em sua atividade. São poucos os que aprendem. Celso Roth aprende.

Vejo Celso Roth evoluindo a cada jogo e a cada entrevista. Prova de inteligência, que é mais importante do que conhecimento. Schopenhauer precisou criar um sistema filosófico para superar o desamor da mãe e, por fim, encontrar a paz. Celso Roth, como qualquer bom técnico de futebol, não precisará de tanto para encontrar a vitória



DAVID COIMBRA - : 13 Sep 2011

Dez do onze




Dez anos depois do brutal ataque terrorista aos Estados Unidos, a nossa consciência ainda se agita revendo as imagens da destruição das torres. Como todo mundo, quando vi as cenas das torres, pensei num erro ou num filme para, lamentavelmente, constatar como o "real" (aquilo que ocorre fora do nosso controle e a despeito de nossa vontade) podia assumir formas impensáveis, superando o meu mais radical surrealismo.

Imediatamente dei-me conta da espessura do mundo em que vivemos. O planeta fica mais cada vez menor, mas torna-se mais complexo e mais difícil de entender. Apesar de toda a nossa onipotência ideológica, científica e tecnológica - desse fantástico conjunto de certezas que nos fez destruir culturas, estigmatizar credos religiosos, chamar sem pensar duas vezes sociedades e etnias de "selvagens" e "primitivas", roubar e repartir continentes como foi o caso da America Pré-Colombiana, da África e do Oriente Médio -, eis que, de modo insuspeito, somos feridos por dentro.

O atentado - como em Pearl Harbor - vinha do ar, mas com aviões de passageiros e em pleno território americano. Havia um ataque sem declaração de guerra. Os inimigos não queriam tomar coisa nenhuma. Lutavam contra um modo de vida e por valores religiosos numa guerra que, sendo santa, não era um mero prolongamento da política por outros meios como manda o nosso figurino.

E para demonstrar essa subversão da racionalidade da "arte da guerra", essa criação do Ocidente europeu na sua imensa e inigualável experiência com todos os tipos de conflito (só entre 1500 e 1914 ocorreram mais de 140 conflitos de todos os tipos na Europa supercivilizada e inventora, entre outras maravilhas, da música sinfônica e do romance), o 11 de Setembro passa por cima de todas convenções que tornam o matar e o destruir atos obrigatórios de patriotismo, justificando a barbárie.

Aqui não tínhamos a recorrente idiotice de uma "guerra que iria acabar com todas guerras", mas um ato não previsto. David contra um Golias que caía estrondosamente. E para provar isso, seus autores não estavam neste mundo, mas no outro. Morreram com a destruição que fabricaram, colocando na vasta arena dos conflitos inventados pelo homem o elemento religioso que é, sem nenhuma dúvida, o centro paradoxal das mais contundentes arrogâncias humanas.

Essa foi a minha primeira leitura.

Testemunhávamos um conflito sem uma "terra de ninguém" e sem soldados devidamente uniformizados, arregimentamos em exércitos embandeirados e tocados a marchas militares. Seus mentores não eram figuras públicas que dominavam "a teoria da guerra" (como Leônidas, Alexandre, Napoleão, Nelson, Washington, Montgomery, Rommel, Koniev, Patton, etc., etc., etc.), mas seres invisíveis operando em rede e atuando de dentro para fora.

Eis o opróbrio deste nosso tempo de liberdade e de busca de felicidade - de uma modernidade em que a parte domina e tem precedência sobre o todo. Quanto mais individualismo, mais agressivas são as manifestações do todo que cobra pelos limites ultrapassados pelo uso abusivo da liberdade individual por grupo, indústria, país ou pessoa. Seja pelo desastre ecológico, seja como prova o terrorismo, pela destruição do velho código segundo o qual nenhum homem deve pagar pelos erros cometidos por outro homem.

Minha outra perturbação foi dada pelo sobressalto do ataque. Lembrei-me das vezes em que fui agredido inesperadamente. Uma vez, por um tapa na cara; noutro, por ter sido chamado na televisão de "proxeneta de índio"; doutra feita, por terem duvidado do meu amor. A violência que, como sabem os seus agentes, requer coragem, dinamita pontes e suprime mediações - as explicações, as desculpas, as contradições e as perspectivas que nos tornam humanos -, mobiliza o que há de pior no agredido que, imediatamente, se sente no dever de revidar na mesma moeda. Quando, porém, ele sucumbe ao mesmo tipo de reação e deseja beber sangue com sangue, ele vive a mesma loucura dos seus atacantes. Assim agindo, como ocorreu nessa desafortunada América contemporânea sob a égide da doutrina Bush, ele abandona os seus valores e repete - eis a contradição - a lógica do terrorismo que combate. Pois, como dizia Rousseau, só pode haver guerra entre países. Usar a força das armas contra o pecado ou contra o terrorismo não é fazer guerra, é praticar um exorcismo religioso dos mais arriscados. Antigamente isso era chamado de Inquisição.

Finalmente - se é que existe nesse episódio um ponto final -, jamais vi melhor comprovação do pessimismo de Schopenhauer quando ele dizia que este nosso mundo é pior do que o inferno. No inferno, você sabe por que sofre. Há um elo entre o que se fez o que se paga. Mas neste mundo, não há como saber os motivos do sofrimento recebido. O coração não desaba porque, mesmo sendo insignificante e muitas vezes covarde, contraditório, pecador e temeroso, mesmo sendo feito de carne e sangue, ele continua batendo esperançoso. Orgulhoso de si mesmo e de sua finitude.



- ROBERTO DAMATTA.: 14 Sep 2011

Quando o passado deixa de iluminar o futuro




Não foram poucas as vezes em que a obra de Marx e a herança do seu pensamento foram declaradas como peremptas e anacrônicas, não sendo capazes de explicar a natureza do nosso tempo. A queda do Muro de Berlim significaria a demonstração fática de que o augúrio de tantos afinal encontrava a sua confirmação: na melhor das possibilidades, Marx seria um pensador prisioneiro das circunstâncias do século 19 e da filosofia da história de Hegel, com a qual, apesar dos seus esforços, jamais teria conseguido romper.

Sobretudo estaria por terra o princípio que, na sua teoria do materialismo histórico, assentava o primado da instância econômica na determinação da vida social, cujo desenvolvimento o levou a seus estudos sobre o capitalismo em sua obra maior, O Capital, quando identificou o processo de subsunção da economia real ao sistema financeiro como o foco de crises especulativas que o ameaçariam persistentemente de colapso.

Estamos bem longe da queda do Muro e, apesar do diagnóstico, ora vencedor, que condenou Marx ao anacronismo, desde o setembro negro de 2008 o mundo parece estar fora dos seus eixos, vítima dos mecanismos da intermediação financeira, pondo em xeque hegemonias, moedas, conquistas sociais e políticas. Este pós-2008 é diverso dos acontecimentos dos idos de maio de 1968, pois, em vez de gravitar em torno de valores culturais, trata-se de uma crise que, sem deixar de incluí-los, tem o seu epicentro na natureza do sistema capitalista e nas dificuldades que enfrenta para a sua reprodução ampliada. O seu tema dominante não é o dos libertários que, em 1968, bradavam que "é proibido proibir", e o papel dos seus filósofos de ontem tem encontrado o seu equivalente funcional nos economistas de hoje e nos comentaristas versados na crítica da sociabilidade. A matéria é outra: é econômica, falta de emprego e de oportunidades de vida.

Não há observador qualificado da cena contemporânea que se recuse à hipótese de que estamos diante de uma mudança epocal. O capitalismo, mais uma vez, poderá sair renovado da crise atual, mas o preço da sua reprodução parece exigir algo bem além de uma retomada do experimento keynesiano. Os custos de uma saída para os ciclos depressivos se tornam cada vez mais pesados, e já importam a necessidade de uma inédita ordenação do sistema financeiro em escala mundial, com a efetivação de mecanismos de cooperação internacional que a todos obrigue. Estamos longe dos tempos de Hegel, quando se podia conceber a transferência da tocha da civilização de um Estado para outro, e, definitivamente, a China não parece ser o lugar mais adequado para o seu novo endereço.

Aqui, do extremo Ocidente onde nos situamos, e do alto da nossa História bem-sucedida, com seus valores de paz, de comunidade, que, bem ou mal, tem resistido aos avanços da mercantilização da vida social, muito particularmente pela convivência que se soube criar entre diferentes etnias e religiões, todas protegidas constitucionalmente, e pelo fato capital dos nossos êxitos no processo de modernização, estamos dotados de condições para o exercício de voz nos desafios ora presentes no mundo.

Nossas credenciais têm, portanto, um duplo registro: o das ideias e o dos interesses. E o que ainda nos falta é um projeto de nação que se afirme de baixo para cima, rompendo com décadas de modernização pelas vias do pragmatismo, de Vargas a Lula, passando por JK e pelo regime militar, sempre em busca de ajustamento ao mundo. A linguagem da modernização foi e segue sendo a da economia, tudo o mais devendo ceder lugar a ela e aos imperativos de luta contra o tempo na superação do atraso de suas forças produtivas. O desenvolvimento político e social seria sucedâneo do sucesso no front econômico, com que se justificava uma política de tutela das associações dos trabalhadores e o autoritarismo político que confiava às elites na chefia do Estado a missão de nos conduzir, com o pé no acelerador, a novos patamares de acumulação.

A nova época que se abre diante de nós, se imediatamente promete ser de escassez e de destruição criadora de ativos, como dizem os economistas, também pode ser a da oportunidade para a política e para a reconstituição do tecido social, esgarçado depois de décadas de exposição nua aos automatismos do mercado. O tempo é de riscos e de novos rumos. Como disse um grande autor, na História de um povo há momentos em que o passado deixa de iluminar o futuro, como agora, em que a tradição do nosso processo de modernização não nos serve para o enfrentamento da crise atual, que está a exigir um novo repertório, uma vez que o antigo, que nos levaria a uma tentativa de fuga solitária, nos pode excluir ou subalternizar a nossa presença nos fóruns de cooperação internacional de onde deve sair uma nova engenharia para a operação da economia-mundo.

Tal repertório é o do moderno, estimulada a autonomia dos seres sociais e o adensamento da sua participação na esfera pública, especialmente os de origem subalterna, com uma radical desprivatização do Estado, lugar do interesse público e da universalização de direitos, e da afirmação, inclusive no cenário internacional, da democracia como um valor universal. Ainda imersos em trevas, como na metáfora de Tocqueville, o autor há pouco citado, aqui e ali se distinguem riscas de luz, tênues, é verdade, como na liberação de poderes públicos capturados, por meio de uma intermediação política não republicana, por interesses privados, e no encontro, em São Paulo, da presidente Dilma com líderes e importantes personalidades da oposição.

Aí podem estar sinais de que a estratégia da presidente estaria considerando a possibilidade de fazer frente à crise com a política do moderno.

- LUIZ VIANNA WERNECK.27 Aug 2011 


Tocqueville revela como funciona uma revolução



  
CRÍTICA CIÊNCIA POLÍTICA


Revoltas populares no mundo árabe conferem nova atualidade a clássico

OTAVIO FRIAS FILHO

DIRETOR DE REDAÇÃO

Clássicos são os livros que se renovam a cada época. A onda de revoltas populares em curso no mundo árabe confere nova atualidade a esta reedição das memórias de Tocqueville em torno da Revolução de 1848 na França.
Deputado e ministro durante aquele período tumultuoso, Tocqueville redigiu as recordações quando o advento da ditadura de Napoleão 3º (1851) lançou políticos moderados como ele no ostracismo. Não pretendia publicá-las, o que terá contribuído para o tom confessional adotado no escrito.
Mas este não é apenas o relato minucioso de uma revolução enquanto se desenrolava, nem seu autor foi somente um parlamentar liberal-conservador.
Alexis de Tocqueville (1805-1859) é um dos principais pensadores políticos da modernidade.
Sua crítica à democracia de massas, imbuída de admirável argúcia histórica e sociológica (embora lhe faltasse a dimensão econômica), ecoa até hoje. E seu texto é o de um escritor, sem abstrações nem jargão acadêmico.
A ideia essencial de Tocqueville é que a modernidade acarreta necessariamente a democratização do poder político e a redução das desigualdades. Desse aspecto desejável decorrem, porém, dois riscos. O primeiro é que a maioria venha a exercer uma forma inédita de ditadura "democrática", capaz de suprimir a liberdade e o direito à discordância.
O outro risco é que um líder populista (ele pensava em Napoleão 3º, modelo de autocrata moderno também para Karl Marx) possa encarnar a vontade da maioria, legitimando-se por mecanismo plebiscitário até converter a ditadura "democrática" em despotismo pessoal.
Além da Grande Revolução de 1789, houve revoltas democratizantes na França em 1830 e em 1848 (haveria outra em 1870). Tocqueville insiste que todas essas insurreições são "apenas uma (...) que nossos pais viram começar e, segundo toda probabilidade, nós não veremos terminar."
A revolução é sempre a mesma porque seu sentido igualitário não muda. Mas é também a mesma por gerar mitos e ilusões que se repetem a cada onda.
Assim, toda revolução segue um movimento pendular, em que a ruptura inicial se acelera numa direção cada vez mais extrema.
Alcançado, porém, um enigmático ponto de saturação, o pêndulo se detém e começa um brutal movimento na direção inversa, rumo à restauração. Essa é a farsa que se repete; seu saldo histórico não é nulo, pois a restauração nunca é completa. No entanto, a comédia é também tragédia pela sanguinolência inevitável dos acontecimentos.
Como conservador que era, Tocqueville preferia a lenta evolução dos costumes, a sedimentação cumulativa das experiências, que as revoluções expressam e impulsionam, mas também desbaratam.
Ao lado de "Democracia na América" e "O Antigo Regime e a Revolução", seus dois livros famosos, as "Lembranças de 1848" não deveriam faltar na estante do estudioso de história ou ciência política. E são leitura prioritária para quem quer conhecer o mecanismo das revoluções e a dança macabra que ele comanda.

LEMBRANÇAS DE 1848
AUTOR Alexis de Tocqueville
EDITORA Companhia das Letras
TRADUÇÃO Modesto Florenzano
QUANTO R$ 28,50 (392 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo

FOLHA DE SÃO PAULO> 27 Aug 2011

Jânio




Confissão. Meu primeiro voto foi para o Jânio Quadros. Não espalhe. Parafraseando o samba antigo: se eu soubesse, naquele tempo, o que sei agora, eu não seria este ser que tenta se explicar e explicar as anomalias da política brasileira. Que me lembre, estava-se votando contra a corrupção do governo Kubitschek, que Jânio varreria. Mas Jânio não era só o anti-JK. Seu sucesso se devia em grande parte à sua personalidade diferente, justamente ao fato de ser uma anomalia. Como aconteceria anos depois com o Collor, um Jânio Quadros sem a caspa, a suspeita de que fosse meio louco era uma credencial. O Brasil  precisava de um presidente não-convencional para fazer o que os convencionais não faziam. Mas Jânio foi anômalo demais.

Não sei se votei na figura excêntrica ou na sua promessa de limpar a sujeira de Brasília. A sujeira, vista desta distância no tempo, não parece tanta assim, a ponto de justificar o Jânio. Não demorou para a História – ou a falta de memória – absolver JK, que hoje é homenageado como um presidente exemplar, e foi até citado como tal no discurso de posse do Fernando Henrique. Mas na época foi a corrupção do seu governo que levou muitos eleitores – inclusive estreantes como eu – a votar na vassoura. Mais intrigante do que o breve governo do Jânio e o entusiasmo da maioria do eleitorado de então pelas suas esquisitices, que já prefiguravam o que viria depois, foi essa absolvição do Juscelino pelo tempo, essa sua lenta transformação de corrupto em exemplo. Talvez enaltecer JK seja uma espécie de penitência por termos acreditado no Jânio, sua alternativa maluca. Eu não posso rasurar meu currículo de eleitor mas a nação pode corrigir suas opções do passado, esquecendo-as. Também não perdoamos o Collor?

Ou talvez se tenha chegado à conclusão que para Juscelino fazer o que fez, industrializando o país, construindo Brasília, etc., a promiscuidade do governo com empreiteiras e empreendedores era quase obrigatória e, em retrospecto, louvável. O governo só precisava se preocupar com eventuais críticas da UDN e de parte da imprensa, a Polícia Federal da época não se metias nessas coisas. Portanto do governo JK se podia dizer que não era corrupto, era despreocupado. Fomos injustos com ele. Pela minha parte, um pouco atrasado, peço desculpas.

- LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO.: 28 Aug 2011 

"Jakob Von Gunten" ilumina um mundo de insignificâncias -


  

CRÍTICA ROMANCE



MARCELO BACKES



O suíço Robert Walser (1878-1956) é louvado por Canetti (1905-1994), Sebald (1944-2001) e Coetzee e frequentemente comparado a Franz Kafka (1883-1924).
"Jakob von Gunten" (1909), sua obra-prima, é um romance de formação sem formação. Ele conta o desenvolvimento -inexistente- de um interno do Instituto Benjamenta, que deveria intermediar seu caminho do núcleo mais estrito da família ao mais amplo da sociedade.
"Jakob von Gunten" antecipa a modernidade de "Berlin Alexanderplatz" ao retratar a cidade e mostra um personagem conformado.
Ele não se apavora como o Laurids Brigge de Rilke e consegue fingir que ama o mundo, o que o torna ainda mais doloroso que os personagens de Kafka.
Nas notas de seu diário sem data, Jakob mostra por que gosta de ser oprimido e só consegue respirar nas "regiões inferiores".
Seu objetivo é "ser e permanecer pequeno". Ele diz sim a tudo com a maior facilidade e não passa de um"zero à esquerda".
O Instituto Benjamenta é a "montanha mágica" do servilismo, e seu diretor, o sr. Benjamenta, um Voltaire que ensina a cultivar o jardim -dos outros.
Se Kraus, colega de Jakob, é o aluno exemplar, o criado como deve ser, Jakob, descendente de nobres, é um vagabundo, que vai a restaurantes comer garçonetes e vê a srta. Benjamenta, irmã do diretor, morrer quase em seus braços porque nenhum homem a amou.
Ela era a possibilidade de redenção e até corteja Jakob, mas ele não consegue consolá-la quando ela está triste e se limita a lamentar a falta de dinheiro.

SENTIDO DA EXISTÊNCIA
Ao final, Jakob acaba sucumbindo ao ataque do diretor e sai com ele para a selva desértica do mundo, depois de o instituto acabar por falta de alunos.
A grande pergunta de Jakob tenta dar conta do sentido da existência. Seu diário é cheio de invocações oníricas e fantasiosas e belas frases de recorte aforístico: Jakob diz que "só as mulheres sabem se zangar "e que os palitos de fósforo se riem à socapa.
Walser foi funcionário como Kafka, teve irmão suicida, mãe depressiva, viveu boa parte da vida em sanatórios e morreu em meio à neve, num passeio, exatamente como décadas antes um de seus personagens.
Seus microgramas, decifrados após sua morte, são a prova prática de uma tentativa radical-mais do que a de Kafka- de se apartar da opinião pública.
Walser parece querer deixar claro que o artista ideal é aquele que jamais deixa de fazer arte, mas não para atender ao desejo narcísico ou altruísta de legar uma obra.
Escrever de fato para si mesmo, sem dar atenção aos outros: esse é o mandado de sua arte purista.
E, assim como o palhaço da ópera, ele esconde sua tristeza por trás de um sorriso quase convulsivo, que aparece também em "Jakob von Gunten".
Suas lágrimas íntimas banham um mundo de ninharias; o temor de ver a máscara do riso caindo impede-o de se aproximar diretamente do que é grande, e Walser ilumina a existência humana pelas beiradas, desvelando o imenso valor das coisas "insignificantes".

MARCELO BACKES é escritor e tradutor, autor de "Estilhaços" e "Três Traidores e uns Outros", entre outras obras

JAKOB VONGUNTEN

AUTOR Robert Walser
EDITORA Companhia das Letras
TRADUÇÃO Sergio Tellaroli
QUANTO R$ 39 (152 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo

 FOLHA DE SÃO PAULO. 09 Jul 2011

- Acaso, acaso - Quim disse, respirando a plenos pulmões, como o titã da rua Revillagigedo -, acaso é o cacete. Na hora da verdade tudo está escrito. Era o que os merdas dos gregos chamavam de destino. (Os detetives selvagens)

Roberto Bolaño

El secreto de la muerta



Hace mucho tiempo, en la provincia de Tamba, vivía un rico mercader llamado Inamuraya Gensuké. Tenía una hija llamada O-Sono. Como ésta era muy bonita y sagaz, el mercader juzgó inoportuno brindarle sólo la exigua educación que podían ofrecerle los maestros rurales; la confió, pues, a unos servidores fieles y la envió a Kyõto, para que allí adquiriera las gráciles virtudes que suelen exhibir las damas de la capital. En cuanto la muchacha completó su educación, fue cedida en matrimonio a un amigo de la familia paterna, un mercader llamado Nagaraya, y con él compartió una dicha que duró casi cuatro años. Sólo tuvieron un hijo, un varón, pues O-Sono cayó enferma y murió después del cuarto año de matrimonio.

En la noche siguiente al funeral de O-Sono, su hijito dijo que la madre había vuelto y que estaba en el cuarto de arriba. Le había sonreído, pero sin dirigirle la palabra: el niño se había asustado y había emprendido la fuga. Algunos miembros de la familia subieron al cuarto que había pertenecido a O-Sono, y no poco se asombraron al ver, a la luz de una pequeña lámpara que ardía ante un altar en el cuarto, la imagen de la muerta. Parecía estar de pie ante un tansu, o cómoda, que aún contenía sus joyas y atuendos. La cabeza y los hombros eran nítidamente visibles, pero de la cintura para abajo la imagen se esfumaba hasta tornarse invisible; semejaba un imperfecto reflejo, transparente como una sombra en el agua.

Todos se asustaron y abandonaron la habitación. Abajo se consultaron entre sí; y la madre del esposo de O-Sono declaró:

-Toda mujer siente predilección por sus pequeñas cosas, y O-Sono le tenía gran afecto a sus pertenencias. Acaso haya vuelto para contemplarlas. Muchos muertos suelen hacerlo... a menos que las cosas se donen al templo de la zona. Si le regalamos al templo las ropas y adornos de O-Sono, es probable que su espíritu guarde sosiego.

Todos estuvieron de acuerdo en hacerlo tan pronto como fuera posible. A la mañana siguiente, por tanto, vaciaron los cajones y llevaron al templo las ropas y los adornos. Pero O-Sono regresó la próxima noche y contempló el tansu tal como la vez anterior. Y también volvió la noche siguiente, y todas las noches se repitió su visita, que transformó esa casa en una morada del temor.

La madre del esposo de O-Sono acudió entonces al templo y le contó al sumo sacerdote lo que había sucedido, pidiéndole que la aconsejara al respecto. El templo pertenecía a la secta Zen, y el sumo sacerdote era un docto anciano, conocido como Daigen Oshõ.

Dijo el sacerdote:

-Debe haber algo que le causa ansiedad, dentro o cerca del tansu.

-Pero vaciamos todos los cajones -replicó la anciana-; no hay nada en el tansu.

-Bien -dijo Daigen Oshõ-, esta noche iré a la casa y montaré guardia en el cuarto para ver qué puede hacerse. Den órdenes de que nadie entre a la habitación mientras monto guardia, a menos que yo lo requiera.

Después del crepúsculo, Daigen Oshõ fue a la casa y comprobó que el cuarto estaba listo para él. Permaneció allí a solas, leyendo los sûtras; y nada apareció hasta la Hora de la Rata. Entonces la imagen de O-Sono surgió súbitamente ante el tansu. Su rostro denotaba ansiedad, y permaneció con los ojos fijos en el tansu.

El sacerdote pronunció la fórmula sagrada prescrita para tales casos, y luego, dirigiéndose a la imagen por el kaimyõ de O-Sono le dijo:

-Vine aquí para ayudarte. Quizá haya en ese tansu algo que despierta tu ansiedad. ¿Quieres que te ayude a buscarlo?

La sombra pareció asentir mediante un leve movimiento de cabeza; el sacerdote se incorporó y abrió el cajón de arriba. Estaba vacío. A continuación, abrió el segundo, el tercero y el cuarto cajón; hurgó detrás y encima de cada uno de ellos; examinó con cuidado el interior de la cómoda. No halló nada. Pero la imagen permanecía erguida, con tanta ansiedad como antes. “¿Qué querrá?”, pensó el sacerdote. De pronto se le ocurrió que acaso hubiera algo oculto debajo del papel que revestía los cajones. Levantó el forro del primer cajón: ¡nada! Pero debajo del forro del cajón inferior halló algo: una carta.

-¿Era esto lo que te inquietaba? -preguntó.

La sombra de la mujer se volvió hacia él, con su lánguida mirada en la cara.

-¿Quieres que la queme? -preguntó Daigen Oshõ.

Ella se inclinó ante él.

-Esta misma mañana será quemada en el templo -prometió el sacerdote-, y nadie la leerá salvo yo.

La imagen sonrió y se disipó.

Rompía el alba cuando el sacerdote bajó las escaleras, a cuyo pie la familia lo aguardaba expectante.

-Cálmense -les dijo-, no volverá a aparecer.

Y la sombra, en efecto, jamás regresó.

La carta fue quemada. Era una carta de amor redactada por O-Sono en la época de sus estudios en Kyõto. Pero sólo el sacerdote se enteró de su contenido, y el secreto murió con él.

FIN

 Lafcadio Hearn

06 Jul 2011

Biblioteca Digital Ciudad Seva

Preámbulo a las instrucciones para dar cuerda al reloj


Julio Cortázar - 

Piensa en esto: cuando te regalan un reloj te regalan un pequeño infierno florido, una cadena de rosas, un calabozo de aire. No te dan solamente el reloj, que los cumplas muy felices y esperamos que te dure porque es de buena marca, suizo con áncora de rubíes; no te regalan solamente ese menudo picapedrero que te atarás a la muñeca y pasearás contigo. Te regalan -no lo saben, lo terrible es que no lo saben-, te regalan un nuevo pedazo frágil y precario de ti mismo, algo que es tuyo pero no es tu cuerpo, que hay que atar a tu cuerpo con su correa como un bracito desesperado colgándose de tu muñeca. Te regalan la necesidad de darle cuerda todos los días, la obligación de darle cuerda para que siga siendo un reloj; te regalan la obsesión de atender a la hora exacta en las vitrinas de las joyerías, en el anuncio por la radio, en el servicio telefónico. Te regalan el miedo de perderlo, de que te lo roben, de que se te caiga al suelo y se rompa. Te regalan su marca, y la seguridad de que es una marca mejor que las otras, te regalan la tendencia de comparar tu reloj con los demás relojes. No te regalan un reloj, tú eres el regalado, a ti te ofrecen para el cumpleaños del reloj.


El tapado



Cuando el correo de Cochabamba se anunció a toque de pututu1 por las calles del pueblo, don Benjamín Díaz Vela había acabado de comer un plato de saisi2 y de beber su acostumbrada chicha. La familia pasaba en el campo temporada veraniega. Y él, que había venido a vender maíz y muko3, no estaba sino a la espera de ese correo para recoger los periódicos de la capital, y su correspondencia.

A pasos lentos bajó desde su casa a la oficina de correos, en la plaza, siguiendo la angosta e inclinada acera de la calle que le obligaba a apoyarse en el bastón de chonta4. Debajo de la galería, esperaban muchas personas la distribución de cartas.

El redondeado y rubicundo Benjamín era hombre retraído, de pocas amistades aunque de mucha parentela. Para no entablar conversación alguna, contestó los saludos de sus paisanos con ademanes cortantes y se fue derechamente a la ventanilla de oficina donde una simpática empleada, de moño alto y agradable acento, le entregó sin dilación su paquete de papeles.

-Don Benjamín, tiene Ud. periódicos y una carta del Banco Hipotecario.

-Muchas gracias, señorita Eloína.

Al emprender la subida de regreso Díaz Vela comenzó a sentir cierta desazón por la carta del Banco. Había solicitado una prórroga de seis meses para una obligación cuyo plazo vencía en dos semanas más.

Tenía corazonada de negativa. Aunque podía leer en la calle, pues no pasaba de las cinco de la tarde, prefirió hacerlo en el patio de su casa. Sentado en un viejo sillón de forro verde, junto a los alegres limoneros que perfumaban el recinto, y mientras consentía que sus tordos le picotearan familiarmente los zapatos por las fajas de resorte, sobre los tobillos, encontró que su presentimiento había sido cabal. El banco se negaba a conceder la prórroga y exigía cortesmente la devolución de los diez mil bolivianos prestados por tres años con la garantía de la finca de Lomalarga.

El escarabajo travieso de la preocupación comenzó a rascar el descansado y apacible cerebro del terrateniente Díaz Vela, cuyo hijo menor había partido a Europa, hacía poco, con objeto de estudiar medicina en una universidad alemana. Él hallaba en su conciencia que no había sido puntual en los pagos de amortización fijados en la escritura de préstamo, Tampoco pudo serlo en los de intereses. Todo esto por ayudar a Rómulo cuya vida de estudiante provinciano con el título de “hijo de padres ricos” le costó caro en Cochabamba y ahora le costaba mucho más. Tampoco le demandaba poco gasto sostener el rango de su mujer y de sus tres hijas mozas, dotadas de belleza, imaginación y buen gusto para gastar el dinero con la elegante despreocupación que exigía el buen tono en la pequeña ciudad. Las rentas feudales eran crecidas, pero los gastos se sobreponían a ellas con gallarda preeminencia que por fuerza requería del crédito. Para salir de la deuda tendría que venderle al cura una de sus propiedades, sin duda la mas pequeña, esa de Veladeros con seis colonos. Era una solución dolorosa. Se trataba nada menos que de la propiedad heredada a sus padres, henchida de sus recuerdos de infancia.

Díaz Vela acabó de leer en cama, a la discreta luz de una lámpara de kerosén, los diarios. Pasándose la mano por la rubescente calva, comprendió que no podría dormir. La prensa no traía nada sensacional. Continuaban los artículos en torno a la obra y la personalidad del presidente Montes. Se setía solo y fatigado. Su hacienda de Veladeros se le desprendía del corazón, desgarrándose quejumbrosamente, a las manos del párroco que la ambicionaba desde hacia tiempo. El reloj de la iglesia dio las ocho.

-¡Tata Lanchi! -su llamado salió por la puerta de dos hojas, abierta en una mitad, y fue a despertar en el zaguán al mayordomo de Lomalarga, yacente sobre un par de cueros de carnero, al lado de los pongos5.

-Tatay, patrón -contestó Lanchi acercándose solícito al lecho de su amo que le ordenó en quichua.

-Ven a charlarme un poco. No me viene el sueño.

-Bueno, patrón.

El indio se sentó en el suelo, junto a la puerta, a discreta distancia del catre de metal amarillo, cuyos barrotes y varillas brillaban como el oro. Hablaron de la cosecha y de la siembra, del régimen de lluvias nunca satisfactorio, de las heladas y del polvillo en el trigo, del rendimiento del molino, de las entregas de pollos, huevos y quesillos; del herbaje de ganado mayor y menor; del estricto cumplimiento de las obligaciones personales. El indio, provecto y experimentado, tocaba los temas de interés patronal, pues sabía de sobra que sus problemas personales y los de los colonos carecían de importancia. Su charla se desataba y discurría apacible como un arroyo claro por un cauce sin tropiezos. Pero Díaz Vela no conciliaba el sueño. Se sumía en largos silencios y oía llover la charla de Lanchi hasta que al agotarse el tema callaba el comedido relator moviéndole a nueva incitación con preguntas y tanteos sobre esto y lo otro. Al cabo el indio, que tragaba la saliva amarga de su bolo de coca para no escupir sobre la alfombra, osó representar ante su amo, medrosamente, cuando este le repetía el consabido:

-¿Qué mas hay? Sigue no más contando.

-Ya de todo te he contado pues patrón. Ya no tengo más para contarte. Tendrás acaso alguna preocupación muy grande para no dormir. Tal vez fuera bueno que tomes un poco de chichita. Iré a comprarte si quieres patrón.

-¡Oh tata Lanchi! -respondió Díaz Vela- bien sabes que yo no tomo más de uno o dos vasos sobre la comida. Tengo mis razones para no dormir. El Banco de Cochabamba me cobra diez mil pesos. Para pagarlos tendré que vender mi finquita de Veladeros. Todo esto por mis hijos. Romulito me cuesta mucha plata. Si ya no recuerdas nada por lo menos inventa pues algo, Lanchi, para distraerme. No puedo esta noche con la soledad que me rodea.

-Así es patrón. Una desgracia muy grande -lo compadeció el mayordomo.

Y seguidamente recordando las exploraciones de unos cateadores de minas que habían estado semanas antes por Lomalarga, continuó su charla.

-Olvidaba comunicarte patrón que hará cosa de un mes estuvieron por Lomalarga unos buscadores de minas. Subieron a la cumbre más alta donde existe el socavón que todos conocemos.

-¿Ese que dejaron los jesuitas?

-Ese mismo patrón. Regresaron diciendo que ahí no hay nada bueno y siguieron por el lado de Ayquile.

-Así es. Yo he estudiado eso. No hay más que piedras.

-Más bien en esta casa patrón, en el patio chico de las gallinas, pueda que haya algo. Dos veces, muy de noche, yo he visto arder y apagarse en el suelo, sin chispas ni humo, una fogata que me ha llenado de miedo. La primer a vez creí que era cosa de duendes o del Diablo…

Un alacrán que le hubiese picado en la cama no le habría hecho incorporarse con tanta vivacidad como la tranquila noticia confidencial de su humilde servidor.

-¿En el patio de las gallinas? ¿En qué sitio precisamente? ¿Dos veces has dicho?

-Al centro, en medio patio, delante del corredor de las gallinas. Como iba diciendo la primera vez, hace ya muchos años, cuando era mayordomo mi padre, vine de su acompañante. Dormimos en el zaguán. Más o menos a la media noche los burros se habían salido del corral hasta la puerta de calle. Yo los devolví y aseguré, Al salir por el pasaje miré el corral de gallinas y vi una llamarada que se apagó al instante. Asombrado y asustado, corrí a contárselo a mi padre quien me ordenó acostarme diciendo que sin duda estaba medio dormido para tener tales visiones. Y más no se hab1ó del caso.

-¿Y la segunda vez, Lanchi?

-La segunda vez hará cosa de seis meses. Para entonces yo sabía que este fuego es señal de plata enterrada.

-No siempre, Lanchi.

-Pero así dicen tatay.

-Dicen pues disparates. ¿Tu has de saber más que yo? Estamos en que viste por segunda vez las llamas, ¿ahí mismo, Lanchi?

-En el mismo sitio patrón, en medio patio, delante del corral donde duermen las gallinas. Pero entonces no eran llamas vivas y altas como la primera vez, sino llamitas bajas y vacilantes como cuando se apagan las hogueras de San Juan en el rescoldo. Una cosa muy rápida.

-Está bien, Lanchi. Yo también he visto en otras partes estos fuegos. En vez de plata lo que generalmente hay en esos entierros es un montón de huesos. Eso puede ser. Ahora vete, ya es tarde.

-Así será patrón. Buenas noches. Que duermas bien.

Díaz Vela rebulló su cuerpo ligeramente obeso y no se dignó contestar al mayordomo. Estaba seguro de que el indio le había dado la clave de un tesoro oculto, de un tapado. ¡Qué capricho el de los viejos coloniales! Él, como todos, había buscado los tapados siempre en las paredes tanteando con un martillo de madera. Pero en esta casa de sus abuelos el tesoro estaba en el suelo. Despacharía cuanto antes al mayordomo. Los pongos que habían llegado esa tarde en reemplazo de los otros serían excelentes jornaleros gratuitos para la excavación que comenzaría al día siguiente mismo. Plata, oro, piedras preciosas…

El sueño acudía a pasos sordos y blandos hasta cerrarle los ojos dulcemente. ¡Y después dicen que la ambición y la avaricia no dejan dormir! Don Benjamín Díaz Vela durmió como un bendito.

La mañana del día siguiente, domingo, hizo desocupar el gallinero y terminó la realización de las cargas de maíz y muko. El mayordomo regresó a la finca llevando una carta en que Benjamín decía a su esposa que se quedaba por unos días, hasta arreglar el despacho de un giro para Romulito y gestionar la prórroga de plazo con el Banco. En realidad estaba resuelto a darle una sorpresa fulminante con el tesoro de Lanchi.kk

Los pongos armados de picos y lampas6 iniciaron bajo la vigilancia de su amo la excavación de un pozo en el centro mismo del patio de las gallinas. En seis horas de trabajo duro llegaron a dos metros de profundidad por metro y medio de diámetro. El suelo era duro, compacto de arcilla seca, piedras redondas y cascajo. No se presentaba señal de tesoro oculto. Díaz Vela suspendió la faena un tanto descorazonado. La arcilla blanca, azulosa y bermeja en capas alternadas de variado espesor, mostraba lucientes las huellas de las herramientas sin descubrir indicio alguno, directo o indirecto, de que allí hubiesen enterrado por lo menos una lata de sardinas. Pudiera ser que estuvieran desviados del verdadero sitio del tapado. Por previsión resolvió no adelantar en la profundidad ni una pulgada más sino ensanchar el hoyo por una parte hasta el corredor y por otra hasta la puerta del patio, lo que significaría un diámetro de cinco metros. Prácticamente ese proyecto de excavación abarcaba el registro de todo el subsuelo del patio excluyendo solamente el angosto corredor. Estaba resuelto a seguir. ¿Acaso otros dueños de casas viejas como él no habían encontrado tapados? Díaz Vela comió un buen plato de chajchu7 y bebió una botella de chicha. Antes de acostarse llamó al par de pongos y les previno, cauteloso:

-No van a hablar con nadie del trabajo que hacemos. Les costaría caro. Estoy buscando el cadáver del hijo de la mujer que fue nuera de uno de mis antepasados.

Y de nuevo la noche abrió sus negros ojos de tinieblas envolviendo los febriles ensueños de grandeza de Díaz Vela. Acostado sobre su brillante catre de varillas y barrotes amarillos, estuvo desvelado en la sombra con la extraña historia de Lanchi que había venido a plantear implícitamente la solución de todos sus problemas. El tapado tendría que ser una fortuna como para pagar al Banco y reconstruir la antigua casona de sus abuelos. Como para ir de viaje él y su mujer y sus hijas en caravana familiar hasta Buenos Aires. Como para embarcarse rumbo a Europa al encuentro de Rómulo. Trajes, joyas, holgada cuenta corriente, prepotencia burguesa. Una vejez no solamente decorosa, sino envidiable… Y el sueño bueno le libraba de los ensueños inquietantes, borrando en su cerebro las imágenes de la vanidad humana.

Domingo de trabajo. Lunes, martes, miércoles, jueves, viernes: jornadas de diez horas con cuatro acullis8 de coca que él pagaba generosamente dando a cada pongo dos libras por día. Una colina de tierra, salida de la excavación, cubría un sector del corral de caballos. El hoyo era un embudo inmenso de cinco metros de profundidad en cuyo fondo brillaba, como un espejo de cerúleos reflejos, el agua de un manantial recóndito.

A eso habían llegado el viernes por la tarde.

-¡Basta, basta! Aquí lo dejamos todo -gritó desilusionado Díaz Vela-. Ese indio bruto me va a aclarar la cosa mañana.

Por la noche cayó la lluvia, leve, fina, menuda, persistente, haciendo subir el nivel del agua en el embudo, por lo menos medio metro. Al día siguiente sábado, el encuentro del mayordomo con su patrón de Lomalarga en la vieja casona de Díaz Vela aclaró la situación en desenlace poco o nada dramático pero terminante.

-¿Cómo es Lanchi que después de tantos días de trabajo y habiendo hecho cavar tan hondo en el lugar donde tú viste las llamas, no encontramos absolutamente nada? ¿No será que por puro animal me has indicado un sitio diferente? Porque aquí no hallamos ni siquiera un zapato viejo.

-¡Oh patrón! -exclamó Lanchi melancólicamente-. Como no teniendo ya nada que contarte aquella noche me dijiste que inventara algo para distraerte, lo inventé sin la menor malicia, Y como tampoco me avisaste que pensabas hacer cavar supuse que no le diste importancia a mi relato. También recuerdo que me dijiste que estos fuegos no indican tapados de plata sino cuando más de huesos. ¿No habrá habido siquiera huesos. patrón?…

-Indio mentiroso, no me vengas a preguntar nada. Mañana mismo entras al trabajo para tapar solito, por tu cuenta, el hoyo que me has hecho abrir inútilmente.

-Lo haré con toda voluntad patroncituy. Espero que me perdones, papasuy…

Y ambos, alguna vez, ¡oh dulzura patronal! sonrieron buenamente a la pálida luz del atardecer de aquel nuboso día de verano, mientras en el aire parecía disiparse la obsedante presunción del tesoro oculto.

FIN


Augusto Guzmán. Contista boliviano.

Cuentos del Pueblo Chico, 1954
1. pututu: cuerno de toro que hace de trompeta de guerra; expresión indígena de autoridad.
2. saisi: plato criollo boliviano; guiso de carne condimentado con ají.
3. muko: harina de maíz mascada y ensalivada hecha bocados y secada al sol, que servía para elaborar la chicha, bebida alcohólica quechua.
4. chonta: especie de caña o palmera de madera dura.
5. pongos: sirviente indígena que hacía turno gratuito y semanal al que estaban obligados los arrendatarios de una finca, antes de la reforma agraria de 1952.
6. lampas: azada o pala de hierro.
7. chajchu: plato criollo cochabambino consistente en chuño, papa, ensalada de cebolla y tomate.
8. acullis: bolitas de hoja de coca.


terça-feira, 27 de agosto de 2019

Quando o Brasil mudou




Tenho cá, muito rígidos nas minhas estantes, seis tomos encadernados em couro tingido de azul-escuro de um livro publicado em 1967, em São Paulo: “História do Povo Brasileiro”. Autores: Afonso Arinos de Melo Franco e Jânio da Silva Quadros. Eles mesmos, que, seis anos antes, haviam sido protagonistas de um capítulo decisivo da história do povo brasileiro, Jânio como presidente da República, Afonso Arinos como seu ministro das Relações Exteriores.

Cada volume da obra tem cerca de 350 páginas, estourando num total de quase duas mil. Mas estou certo de que pelo menos 1950 dessas páginas são subalternas a outras 50: as que tratam da renúncia de Jânio à presidência, ocorrida há 50 anos mais dois dias, em 25 de agosto de 1961.

Você sabia da existência desse livro, que, só por existir, é sensacional? Imagine: eles escreveram duas mil páginas, tudo para chegar àquele trecho definitivo para biografia de Jânio e para o futuro do Brasil, tudo para que Jânio pudesse se justificar para a posteridade. Lá estão, em linguagem rebuscada, que Jânio falava em linguagem rebuscada, suas pretensas razões. Depois de todo um arrazoado tecido na terceira pessoa, Jânio e Afonso Arinos alegam que o ex-presidente-autor enfrentou “contradições no sistema institucional brasileiro”. Foram essas contradições que ele teria tentado resolver com um plano bem pensado e coerente. Note a ginástica verbal que Jânio e Afonso Arinos fazem para explicar a sandice de 1961:

“Seu raciocínio foi o seguinte: primeiro, operar-se-ia a renúncia; segundo, abrir-se-ia o vazio sucessório – visto que a João Goulart, distante na China, não permitiriam as forças militares a posse, e destarte, ficaria o país acéfalo; ; terceiro, ou bem se passaria a uma fórmula, em consequência da qual ele mesmo emergisse como primeiro mandatário, mas já dentro do novo regime institucional, ou bem, sem ele, as forças armadas se encarregariam de montar esse novo regime, cabendo, em consequência, depois a um novo cidadão – escolhido por qualquer via – presidir ao país sob novo esquema viável e operativo: como, em tudo, o que importava era a reforma institucional, não o indivíduo ou os indivíduos que a promovessem, sacrificando-se ele, ou não se sacrificando, o essencial iria ser atingido.

O plano, porém, falhou exatamente na vacilação dos chefes militares. João Goulart, compadecendo-se com a reforma parlamentarista, desfez, talvez sem sabê-lo, todo o plano concertado”.

Mais algumas linhas adiante, os autores definem o que foi, para eles, o ato de Jânio:

“A renúncia foi, assim, expressão de uma coerência de tipo heroico, no sentido carlyliano; Jânio Quadros acreditou que os destinos nacionais, num dado momento, dependiam de sua coragem de sacrificar sua carreira pessoal”.

Quer dizer: a renúncia tresloucada de Jânio Quadros transformou-se em um ato patriótico e generoso, de renúncia pessoal, de abnegação. E mais: transformou-se em um plano racional, premeditado, minuciosamente calculado. Isso, é evidente, nas palavras do próprio Jânio Quadros. Seis volumes, duas mil páginas. Quanta tinta, quanto papel, quanto tempo gasto para tentar justificar o injustificável.

Uma lição para os dirigentes do Grêmio: depois de feito o mal, nem todo o verbo da língua portuguesa será capaz de corrigi-lo.

Semana Gre-Nal

Digamos que o Grêmio jogasse assim no Gre-Nal:

Marcelo Grohe; Gabriel, Mário Fernandes, Edcarlos e Júlio Cesar; Fernando, Gilberto Silva, Rochemback e Douglas; Leandro e André Lima.

Não é um time desprezível. Não é um time para o fundo penumbroso da tabela de classificação. Mas não sei se é time para bater Leandro Damião e Oscar.

Fernando não rende no Grêmio o mesmo que na Seleção Brasileira.

Parece enfeitado, autossuficiente em demasia. No Grêmio, ele dá toquinho, ele tenta ser clássico, ele se atrasa na jogada. Na Seleção ele é aceso, preciso, ele é concentrado. Entre os adultos, talvez falte a Fernando jogar como adulto.

Victor sempre falha em Gre-Nal. Leandro Damião sempre faz gol em Gre-Nal. Se tudo correr como sempre corre, o Gre-Nal de domingo começa com 1 a 0 para o Inter.

O Inter tem uma escola de atacantes no Beira-Rio. O professor Ortiz pega os atacantes, treina em separado com eles, aperfeiçoa suas virtudes, corrige seus defeitos. Os resultados são dois: dentro de campo, o Inter conquista vitórias graças a seus atacantes. Fora de campo, o Inter se viabiliza vendendo-os.

Investimento premeditado na mercadoria mais valorizada do futebol. Simplesmente genial.

Enquanto isso, no Grêmio, o último grande centroavante formado pelo clube foi... Luiz Carvalho, nos anos 30. Simplesmente estúpido.


DAVID COIMBRA - 23 Aug 2011 

Jamais esquecerei




Como não amar o passado? – me pergunta uma leitora a propósito de uma de minhas crônicas. Por uma coincidência, estive esvaziando gavetas e encontrei o instantâneo em que outra amiga e eu passeamos de mãos dadas pela Praça da Matriz.

Ana Laura tinha cabelos loiros e traços perfeitos. Ana Laura e eu passeávamos de mãos dadas pela Praça da Matriz de sua cidade. Corriam então os Anos Dourados, o dia era de verão e glorioso.

Não sei do que foi feito de Ana Laura, se casou, se ainda mora em sua cidade, se tem filhos, se é odontóloga, advogada, médica ou simplesmente do lar. Mas recordo como se fosse hoje nós dois tão jovens passeando de mãos dadas num começo de namoro.

Não sei o que foi feito de Ana Laura, mas guardo a memória precisa de seu vestido leve, de seus tornozelos finos, de seu sorriso perfeito. Lembro que falávamos de um baile que ia haver aquela noite, de um cachorrinho que tinha desaparecido, do Brasil, que era então um país inaugural.

Um sorridente mineiro semeava estradas, hidrelétricas, desbravava fronteiras e instalava fábricas de automóveis onde então eles eram importados. Fuscas, Dauphines, DKWs, Aero-Willys, Simca-Chambords enchiam ruas e avenidas, uma rodovia rasgava a selva, Brasília erguia-se do nada em pleno Sertão.

Vivíamos então um tempo mágico, pois os ventos da esperança sopravam por aqui. Ana Laura era parte daquele cenário, em que soavam os acordes da bossa nova, nascia o cinema novo, o Brasil era campeão mundial de futebol na Suécia, Maria Esther Bueno vencia em Wimbledon, Éder Jofre arrasava nos ringues, ganhávamos ainda certames de basquete a pesca submarina.

Onde andará Ana Laura? Será diplomata, psicanalista, pianista? Não sei. São tudo coisas de problemática resposta. Só sei que os tempos são outros, bem diversos daqueles em que a adolescência era azul e o país uma festa móvel.

E o que foi feito de mim? Hoje sou todo um senhor que não caminha pela Praça da Matriz com uma garota loira. Não há mais Anos Dourados, somos um mar de corrupção.

Me resta a imagem da garota de 15 anos – os mesmos 15 anos que eu tinha – e que de repente e sem aviso, no passeio pela Praça da Matriz de sua cidade me disse aquelas palavras que jamais esquecerei.


LIBERATO VIEIRA DA CUNHA -23 Aug 2011 

O Amor é o Amor




O amor é o amor — e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?…

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor
e trocamos — somos um? somos dois?
espírito e calor!

O amor é o amor — e depois?

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O Rato e o Anjo

Há um rato para cada português

Dos jornais

Anjo guardum
pra cada um

Da província

Um rato e um anjo de guarda
para cada.

Anjo defende o acto
mau,
a fazer ou a sofrer.

Rato celebra contrato?
Qual!

Rato rói,
até na orelha.
Anjo dói
de outra maneira.

Mas eis que,nestes enredos,
há dois a mais,um a menos.

Cai ao anjo a pena,
ao rato o pelame.
Um regressa ao seu enxame,
o outro à sua caverna.

E o português,desanjado,
já se vê desratizado.
Chora.


Alexandre O'Neill

A saga do casamento




O casamento é também um ardil que a civilização arranjou para manter presos à união conjugal o marido e a mulher.

Pelo casamento, como por um milagre jurídico e existencial, os casais se mantêm juntos mesmo após ter cessado o amor e se extinguido o desejo.

Foi uma forma que a sociedade moderna encontrou para que marido e mulher não se separassem, embora não tenham sobrevivido, durante a constância conjugal, os mesmos valores que existiam quando das núpcias.

Por isso é que se arrastam os casamentos em cima das ruínas do amor e do desejo, alicerçados muitas vezes pela amizade, outras vezes pelos filhos, que acabam sendo fortes motivos para que os casais não se separem.

O amor e o desejo são por demais fugazes para que possam ser administrados pela perenidade do casamento.

É quase fatal a fadiga dos metais entre os casais, que se veem assim assaltados pelo fastio e pelo tédio conjugal como uma pressão demolidora. Mas, de outra parte, trombam esses casais com a indissolubilidade do vínculo conjugal, que só pode ser desfeito pelo divórcio perante a lei humana e que é inquebrantável e eterno mediante a lei religiosa.

O casamento é, pois, uma coisa muito séria. Daí que multidões de jovens hoje o evitam, munidos da sabedoria de que cedo cessarão o amor e o desejo e, sem ligação pelo casamento, eles podem partir para outras uniões sem os embaraços de serem considerados amarrados ao matrimônio original.

Por isso é que muitos casais enfrentam o desgaste direto do casamento driblando-o com técnicas diversionistas. Dormindo em camas separadas, em quartos separados ou até em casas separadas, atenuando, assim, o absurdo dessa condenação de solidão a dois.

Há até alguns casais que se permitem, ao marido e à mulher, aventuras extraconjugais que os libertam do vínculo matrimonial, distraindo-se assim em incursões libidinosas fora do eixo do casamento em si, o que os faz suportar com estoicismo promíscuo as amarras do compromisso central.

Esses são os que mantêm o casamento com uma dança farsesca e perigosa, que cedo ou tarde poderá acarretar danos morais e materiais consideráveis.

Ao contrário dos outros, mais sinceros, que resolvem encarar de frente a fatalidade da separação.

Eu já escrevi certa vez que, pior que o casamento, só a separação. Há muitas separações bem-sucedidas, mas a maioria delas guarda marcas doloridas, cicatrizes que acabam por atingir não raramente os filhos da união conjugal fracassada.

Muitos casamentos iniciam-se sob o ritmo da amizade, da compreensão, da cordialidade apaixonada e terminam nas Varas de Família em discussões tão violentas e agressivas, que acirram ainda mais o ódio superveniente nas relações.

Restam, no entanto, alguns raros mas expressivos exemplos de casais que se separam e continuam amigos, até visitando-se, como fosse normal o que lhes aconteceu. São sábios dignos de admiração. Afinal, chegaram à conclusão de que tudo na vida tem um fim e não seria o casamento que iria se constituir em exceção.

Da minha parte, fico extasiado quando assisto, num restaurante ou num bar, a um ex-marido e uma ex-mulher em conversa amigável e civilizada.

São uns heróis.


PAULO SANT’ANA -  23 Aug 2011 

Novo bizarro




Em “Embassytown” nos defrontamos com uma bizarrice radical, e talvez com o incomunicável

China Miéville é escritor com uma missão: quer escrever um livro em cada subgênero literário. Já publicou policial, novela juvenil, steampunk, fantasia e até western. Há um termo guarda-chuva para todas suas experimentações: “new weird” (novo bizarro?), referência à “weird fiction” de escritores maravilhosamente estranhos da virada dos séculos XIX para XX, como H. P. Lovecraft. Miéville — esquisito até no nome, que mistura geografia com acento francês, camuflando sua biografia basicamente britânica — não se incomoda com o rótulo, tendo incentivado sua “viralização” on-line, mesmo com blog chamado “manifesto rejeitomentalista” (e na sua carreira paralela de pensador marxista, foi colaborador de outro blog, o “Tumba de Lênin”). Sua utilização das regras de cada subgênero é nada ortodoxa: todos eles se tornam vítimas do lado negro da força da literatura. Resultam sempre em livros que dão frio na espinha do leitor. O horror, o horror.

“Embassytown” (“Cidade-embaixada”), seu lançamento de 2011 (pelo que consegui pesquisar, nenhuma de suas obras teve publicação brasileira — esta coluna pretende apenas sugerir alguma tradução), dá estranheza para a tradição mais intergaláctica da literatura. O grosso da ação se passa num planeta nos confins do universo, onde humanos convivem com seres absolutamente diferentes. Em geral, mesmo na ala mais ousada da ficção científica, a comunicação com alienígenas é problema de tradução. Depois de um período de aprendizagem, a conversa rola solta, pois as linguagens têm estruturas compatíveis e exprimem emoções parecidas. Vide o ET do filme “Super 8”: a telepatia apenas nos diz que ele não quer nos fazer mal; seu objetivo é voltar para casa. No fundo, apesar das aparências , o alien é gente como a gente. Em “Embassytown” não: ali nos defrontamos com uma bizarrice radical, e talvez com o incomunicável.

O romance nos coloca diantede seres pra-lá-de-Marrakesh. Só tive impressão de tanta diferença cognitiva ao ler as aventuras dos “pequeninos” do planeta Lusitânia de Orson Scott Card (um de meus autores preferidos, exigindo futura coluna só para ele), que numa fase de suas vidas, depois de rituais ultraviolentos, podem transferir suas consciências para árvores com as quais a troca de informações acontece a partir de
batuques nos seus troncos. Os “anfitriões” (“hosts” no original) que vivem ao redor da cidade-embaixada de Miéville têm dois órgãosde emissão sonora. Sua linguagem é resultado da combinação de palavras ditas simultaneamente pelas duas  “ bocas  ” . Não adianta treinar dois humanos para falar coisas diferentes ao mesmo tempo. O sentido só se estabelece se os dois sons forem produzidos por uma mesma mente. Aí entram os embaixadores, gêmeos geneticamente idênticos treinados para sintonizar seus pensamentos , formando uma única identidade.

O bizarro não para por aí, e é além que as coisas ficam deveras interessantes. Os “ anfitriões  ” não sabem mentir, pois não conseguem falar sobre algo que não tenha acontecido na realidade. Essa incapacidade, ou impossibilidade da mentira, revela problema mais sério, que transforma o livro em tratado de linguística alucinada, ou especulação extremista sobre a linguagem. Os “anfitriões” não pensam. Ou melhor  : só pensam quando falam, e sua fala é pura referência a objetos ou atos específicos (são concretos como o sertanejo de João Cabral, “incapaz de não se expressar em pedra”). Não existe linguagem separada do mundo, portanto não existe significação, e consequentemente não existe metáfora, polissemia, ambiguidade, ou diferença entre a palavra e o referente. Como — ao viver — não paramos de pensar, e acreditamos no “penso, logo existo”, é absurdo imaginar numa linguagem sem pensamento: ler “Embassytown” faz nosso cérebro doer. Para não estragar a surpresa da dolorosa leitura, posso adiantar que o livro narra a aquisição não da linguagem, mas do pensamento. É um processo violento. Um personagem diz : a linguagem , com pensamento, é “a continuação da coerção por outros meios”. Outro discorda : “Bobagem. É cooperação . ” O narrador tenta concluir: talvez cooperação e coerção não sejam coisas tão contraditórias assim. E aprender a pensar — mesmo o Bem — necessariamente machuca, faz sofrer. Fisicamente.

No planeta dos “anfitriões”, há uma sutil mudança no slogan de William Burroughs, também cantado pela Laurie Anderson: “o pensamento é um vírus vindo do espaço sideral”. Pois linguagem — que nunca comunicou realmente nada — já havia por lá. Faltava a possibilidade da mentira, e da interpretação, e do falar uma coisa querendo dizer outra. Faltava a poesia (nãoconcreta?) e seu dom de iludir. Por coincidência, ao ler “Embassytown” estava lendo também “O senhor do lado esquerdo”, de Alberto Mussa (a “new weird fiction” brasileira?). Lá encontrei a seguinte declaração, definitiva: “Os leigos se impressionam muito com objetos esotéricos, fetiches, ritos e símbolos místicos, imagens demoníacas, animais sacrificados. Ignoram que a verdadeira magia é a fala, a linguagem humana.”


Quem respeita a linguagem, respeita também o silêncio. É preciso silenciar de vez em quando para a linguagem tentar recuperar sua potência. Maneira troncha que encontrei para dizer que esta coluna vai se silenciar por um mês. Como dá para perceber, preciso urgentemente de férias. Até a volta (da ambiguidade)


Hermano Vianna -  26 Aug 2011

Quarenta e sete


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Tio Vânia na Graça Aranha

Quarenta e sete anos é uma idade estranha para se assistir a "Tio Vânia". Porque esta é a idade do personagem de Tchekov, o personagem que subitamente descobre que toda a sua vida foi baseada em falsas premissas, que nenhuma de suas esperanças de juventude vingou e, que como no blues de Robert Johnson, todo o seu amor foi em vão.

Desde a primeira montagem, de Stanislavski, em Moscou, em 1899, é óbvio que espectadores de todas as idades são levados a confrontar as suas próprias realizações por menores que sejam, com as de Ivan Petróvitch - cujo diminutivo do prenome batiza a peça. Confrontá-las aos 47 anos, porém, adquire um significado distinto, arrepiante.

Não só porque, em certa medida, qualquer vida se revela tão absurda quanto a de Vânia. Também porque ele projeta, a partir dos seus 47 anos mal vividos, que faltam 13 para os 60. "Muito tempo", para ele, no tédio burguês da Rússia rural e pré-revolucionária. Pouco tempo, para mim, na histeria do Brasil novo-rico do século XXI.

Eu tinha 20 anos quando assisti pela primeira vez a "Tio Vânia". Para um garoto naquela idade, a peça de Tchekov parecia um balaio de advertências: não jogue sua vida fora, faça algo de útil dela, pense na posteridade, não perca tempo amando sem ser amado. Corria 1984. Saí do Teatro dos 4 como se tivesse levado uma surra de chicote.

Não havia qualquer vestígio de esperança na obra que o autor russo, com humor negro, insistira em chamar de "comédia". Vânia administrava uma fazenda com a sobrinha, enviando os rendimentos para a capital, a fim de bancar a carreira acadêmica do marido de sua falecida irmã, agora casado com uma mulher muito mais jovem.

Um dia, Vânia afinal percebeu que o ex-cunhado não passava de uma fraude intelectual. Aposentado, o professor Serebriákov se refugiara na fazenda, alterando-lhe a rotina com caprichos. Enquanto isso, sem querer querendo, sua bela Helena enfeitiçou Vânia e o amigo médico, Astrov. Para Tchekov, a beleza entristece, ao expor os homens à imperfeição de suas existências. Qual uma tempestade de outono, o conflito se aproxima, estouram alguns trovões, mas logo a vida, aquela vida, segue o seu curso.

A frustração prevalecia no mundo observado por Tchekov. Pior que isso. Os personagens de "Tio Vânia" pareciam preferir viver atolados nela do que fazer força, força de verdade, para se libertar, para mudar. Vânia odeia o ex-cunhado e ama Helena.

Astrov deseja Helena. Helena deseja Astrov. Sônia, a sobrinha, ama Astrov em silêncio.

Nada de fato acontecia. Como, aliás, é característico do teatro de climas do autor russo.

Num determinado momento, em torno de copos de vodca, Sônia perguntava à madrasta se ela teria preferido um marido jovem. "Claro!", responde Helena, rindo. Eis a comédia à moda de Tchekov, dolorosa. Anos depois, assistindo ao filme "Era uma vez em Tóquio", de Yasujiro Ozu, eu descobriria uma cena análoga. A caçula da família perguntava, em lágrimas, à viúva do seu irmão morto na guerra se a vida era mesmo só frustração. "É, sim!", sorria a gentil Noriko, interpretada por Setsuko Hara.

Ajudava - e muito - na devastação emocional descrita e causada por "Tio Vânia", a qualidade daquela montagem do Teatro dos 4 em 1984. Dirigida por Sérgio Britto, a partir de uma tradução de Millôr Fernandes, com Armando Bogus no papel-título, Christiane Torloni como a lânguida Helena, além de Rodrigo Santiago, Nildo Parente e Denise Weinberg nos outros papéis principais. Nunca os esqueci, o que gerou na minha cabeça um padrão difícil de superar. Inclusive para Louis Malle, que filmou "Tio Vânia em Nova York" em 1994, com Wallace Shawn e Julianne Moore.

Montagem do bom grupo mineiro Galpão dirigida por Yara de Novaes, "Tio Vânia (Aos que vierem depois de nós)", em cartaz no Sesc Ginástico só até o próximo domingo, já sofreu sérios reparos de Barbara Heliodora neste caderno. O anacrônico rádio não me incomodou tanto quanto as canções em espanhol ou o que me soou como uma excessiva ênfase na comicidade, que deveria apenas servir de distância para o impulso que faz o golpe de Tchekov penetrar mais fundo. Entretanto, gostei de Eduardo Moreira (Astrov) e, sobretudo, da atriz convidada Mariana Lima Muniz (Sônia).

De qualquer forma, pesados contras e prós, foi bacana reencontrar Vânia, agora, quando ambos temos 47 anos. Ele, claro, os terá para toda a sua merecida eternidade. Eu... Mesmo nas minhas manhãs mais cinzentas, porém, tenho de admitir que escutei as advertências de 1984 e fiz alguma coisa na vida - em especial, uma filha.

Anton Pavlovitch Tchekov jamais chegou aos 47 anos de seu personagem mais famoso. Morreu aos 44, em 1904, da então incurável tuberculose, que se manifestara duas décadas antes. Ele começara a tossir sangue no mesmo 1884 no qual se formara em Medicina, sua principal ocupação durante toda a vida, por mais que escrevesse compulsivamente contos e peças. Além de "Tio Vânia", as mais famosas são outras duas "comédias", "A gaivota" e "O jardim das cerejeiras", e o drama "Três irmãs".

Pode-se enxergar Tchekov em Astrov. Médico deprimido pelas condições de vida dos camponeses russos, entusiasmado de um modo quase panteísta pela natureza, desconfiado do casamento. O seu, breve, com a atriz Olga Knipper, não gerou filhos, mas um aborto espontâneo. Talvez não haja imagem mais apropriada à desesperança.


 ARTHUR DAPIEVE. 26 Aug 2011 

Aos Vindouros, se os Houver...

Vós, que trabalhais só duas horas
a ver trabalhar a cibernética,
que não deixais o átomo a desoras
na gandaia, pois tendes uma ética;

que do amor sabeis o ponto e a vírgula
e vos engalfinhais livres de medo,
sem peçários, calendários, Pílula,
jaculatórias fora, tarde ou cedo;

computai, computai a nossa falha
sem perfurar demais vossa memória,
que nós fomos pràqui uma gentalha
a fazer passamanes com a história;

que nós fomos (fatal necessidade!)
quadrúmanos da vossa humanidade.

Alexandre O'Neill


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.


Conflito de interesse




A expressão é parte do vocabulário dos sistemas políticos que perseguem um equilíbrio inalcançável entre pontos de vista particulares e o sistema que os sustenta em sociedades movidas por competição eleitoral. Quando não há competição eleitoral (como ocorre no liberalismo) há equilíbrio, mas, em contrapartida, não há conflito de interesse já que o interesse do Grande Irmão ou do Partido despoticamente sufoca tudo.

Mas no liberalismo de Montesquieu há, de um lado, a motivação por ganhos e, de outro, a consciência das implicações (e dos custos) da realização dessas motivações para a coletividade. E quando o Fulano ou o Sicrano souberem? Será que a proposta está de acordo com as normas do sistema? Questionam todos os interessados que querem realizar o seu empenho, o qual demanda visibilidade, pois o sistema precisa, como num jogo de futebol, de testemunho público e de "transparência". O que poderá ocorrer se eu for contratado em surdina, digamos, pelo Ministério do Turismo, para planejar o panorama do turismo no Brasil nos próximos quatro anos pela modesta quantia de 50 milhões de reais? Como ocorreu a contratação? Quem a propôs? Que tipo de relacionamento eu teria com certas pessoas do Ministério? Quem competia comigo ou quem inventou a ideia e assim por diante são perguntas mais do que legítimas que surgem aos berros ou sussurros, buscando a legitimidade (ou a face externa) do processo. Porque a legitimidade (uma dimensão capital das ações sociais que Max Weber suscitou na sua obra) diz respeito a presença do público ou da totalidade nos processos sociais. Eu posso fazer sozinho mas quem aprova comprando, lendo ou apoiando é a sociedade! A legitimidade fala da reação da coletividade diante dos fatos que ocorrem no seu meio. Se os fatos forem opacos ou bizarros (como pode um pessoa enriquecer 20 vezes em 2 dias; ou porque os "parques de diversão" se transformaram em "parques de aflição" na cidade do Rio de Janeiro), eles trazem de volta a lógica do bom-senso - a voz do todo ao qual também pertencemos.

O poder passou do carisma e da tradição (as pessoas nasciam, não se elegiam reis...) ao sistema burocrático-legal que se interpõe e administra os eternos conflitos entre os interesses particulares e a moralidade coletiva. As leis feitas para todos e o seu aparelho institucional são as almas do sistema democrático. Os interesses são as mãos visíveis dos desejos legítimos (ou escusos) de enriquecer e de ter sucesso. O problema é saber o que, como e quando tais interesses se sustentam num jogo no qual muitos agentes começam a oferecer simultaneamente os mesmos bens e serviços de modo cada vez mais igualitário e impessoal ao estado e ao "governo".

Impossível, porém, perceber conflito de interesses num sistema familístico no qual os governantes se apossavam do governo e do "poder", concebido como um modo de liquidar adversários, de ajudar parentes, partidos e amigos; e de aristocratizar quem o alcançava. Nesta concepção não havia uma diferença entre interesses do todo (ou da sociedade) representado pela administração pública e os interesses do "governo" que se confundiam com os segmentos certos de que "agora é a nossa vez".

Antigamente havia quem não pagasse imposto de renda no Brasil. Hoje todos pagamos impostos - muitos impostos. A teoria é puro bom-senso: paga mais quem ganha mais; e os impostos pagos são redistribuídos em bens e serviços que contemplam todo o sistema engendrando interdependências. Antigamente prestávamos mais atenção a cobrança; hoje - eis a revolução - prestamos muito mais atenção a redistribuição! A partir da vivência com um mundo mais transparente, repleto de problemas e informatizado, ficou claro que o tal "estado" - esse engenho que recolhe e usa os dinheiros de todos - não funciona pensando na coletividade que ele representa e deve servir, mas opera claramente em benefício de uma outra entidade que nós, no Brasil, chamamos de governo e que é, de fato, uma das encarnações mais negativas, senão a mais negativa do estado entre nós.

É precisamente isso que precisa ser mudado. Não dá mais para continuar a operar num sistema político no qual "ter poder" é distribuir cargos em vez de usar esses cargos como instrumentos de gerenciamento público. Não é mais possível pensar o "poder" como algo ao sabor de pessoas, partidos e interesses - como um recurso para aristocratizar grupos que dele fazem parte por nomeação, vínculo ideológico ou eleição. Está passando o tempo no qual o governo podia ser "dono do Brasil" e como tal gastar bastarda e irresponsavelmente o fruto do nosso trabalho, ignorando o país e pensando exclusivamente nos seus comparsas. O limite da demagogia que inventou esse híbrido de eleição, populismo e coalizão semipatriarcal tem tudo a ver com a incoerência entre pessoas e papéis. Afinal, um ator medíocre não pode interpretar Hamlet, do mesmo modo que é preciso fazer com que o estado e, sobretudo, o governo sejam servidores da sociedade, a ela devolvendo o resultado do trabalho de seus cidadãos comuns. Afinal, a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus. Essa é a questão!


- ROBERTO DaMATTA. 24 Aug 2011