Por Pedro Tierra*
Pertenço a uma geração que viu não poucos companheiros de
luta voltarem das sessões de interrogatórios deformados pela brutalidade dos
espancamentos para não entregar um ponto de encontro, uma informação, um
documento. Para não delatar. Para não trair. Alguns simplesmente, não voltaram.
Pagaram com a morte seu silêncio. A delação era a ignomínia. A condenação ao
ostracismo, à exclusão de qualquer ambiente de convívio social. A morte civil.
Muito já se escreveu sobre a traição e os traidores. A
literatura é abundante sobre esse gesto humano ignóbil, particularmente nas
disputas pelo poder. Da bíblia aos gregos, de Dante a Shakespeare. Ainda que
momentaneamente saudada por quem dela se beneficiou, a traição não perde seu
caráter repulsivo, mesmo para eles. É indelével e permanecerá para sempre na
face do traidor. Nas suas relações futuras, todos se lembrarão dele. E dela. E
apontarão o estigma, quando for conveniente.
A História, tampouco, poupa os traidores. O nascimento das
nações resultou, em geral, de partos sangrentos. Em que a forca e os
fuzilamentos não foram economizados, de parte a parte. De quem oprimia e de
quem contra a opressão se levantava. Países que conseguiram constituir-se como
nações, com território, língua, cultura, com um destino comum construído pela
vontade majoritária dos seus nacionais reservam aos traidores as penas mais
severas.
De uma prática considerada repulsiva, a delação
converteu-se, no Brasil do golpe, em moeda corrente, manipulada pelo Estado e
pela mídia, diante do silêncio e, não se enganem, do desprezo da sociedade.
Temos assistido com o estômago embrulhado a um espetáculo que a cada dia nos
surpreende pela desfaçatez e o cinismo.
O Instituto da Delação Premiada é um singelo exercício
institucional em que o traidor vende ao Judiciário o relato que melhor lhe
convém sobre o crime que cometeu. E recebe, em troca, benefícios compatíveis
com a avaliação que faz o Juiz do peso social e político da personalidade
traída, com vista aos objetivos que ele, Juiz, deseja alcançar.
Não chega a ser surpreendente o rápido processo de
desmoralização e degeneração de um mecanismo dessa natureza que se utiliza de
um comércio entre o tratador e os répteis que se dispõem a mentir, a rastejar
pela migalha de um favor, de um benefício pessoal, de uma redução de pena ao
oferecer aos acusadores a cabeça de eventuais cúmplices, agora desafetos, não
se escusando à esperteza de furtar a delação mais suculenta de algum ex-sócio.
Não cabe a comparação, por indevida, entre quem foi
despedaçado física e moralmente pela Ditadura Militar e, eventualmente,
fraquejou e esses escroques docemente constrangidos a delatar, a mentir, em
troca da promessa de usufruir das relações e da fortuna que amealharam de forma
criminosa.
Há fatos que lançam sobre o passado sua luz, elucidam
circunstâncias e conferem a eles um novo significado. Nos últimos dias
estivemos diante de fatos dessa natureza. Duas declarações emitidas por dois
importantes personagens da República: a primeira, prestada diante do juiz da
13ª Vara de Curitiba. Perguntado pela defesa do Presidente Lula: “O Doutor
Sérgio Mouro fez uma pergunta sobre se o senhor tratava de contribuições paralelas,
não contabilizadas, caixa 2. O senhor fez uma afirmação aqui muito clara, eu
nunca tratei. Então eu pergunto, o senhor hoje muda a versão por conta da sua
delação premiada”? Resposta – “ Eu não tenho um acordo de delação premiada. –
“O senhor tem uma negociação em curso”. –“Existem tratativas. Isso é um assunto
que está a cargo dos meus advogados, eu confio no trabalho deles, são advogados
de alta qualificação, com experiência no setor, e confio que eles estejam
fazendo o melhor, dentro da lei, olhando maneiras de contribuir com a justiça,
que é a minha vontade, e maneiras de obter benefícios, que também é a minha
vontade”. Transferir aos advogados a responsabilidade pela decisão não anula o
fato concreto de delatar. De negar a declaração anterior “Eu nunca tratei” para
atender aos objetivos do interrogador. A que versão se deve dar crédito? Esse é
o problema do delator. Será perseguido pela declaração anterior. Porque o
compromisso não é com os fatos – já que não foi, afinal, oferecida nenhuma
prova além de sua própria palavra –, o compromisso é com o “tratador”.
O corolário desta declaração que circulou há poucos dias na
forma de carta-renúncia à condição de filiado ao Partido dos Trabalhadores,
representa um esforço malsucedido de emprestar dignidade à desonra. O
essencial, o que ficará, é o comércio que se operou entre o tratador e os
répteis que a ele sucumbiram. Esse comércio enfeixa todo o significado
simbólico do gesto do delator. Em alguns meses os beneficiados deitarão ao fogo
a memória desses fatos e seus personagens e a converterão em cinzas. Eles
perderão a serventia.
Para conforto de seus novos amigos ele, por sua parte,
assegura que vai se empenhar a partir de agora, convertido à virtude, pensando
mais em sua família do que no partido, em defender a verdade. Não escapará da
armadilha que preparou para si mesmo: estará defendendo sua verdade particular
ao lado da plutocracia que um dia combateu.
A segunda circulou pela imprensa convencional e pelas redes
sociais: “Só luta por uma causa, quem tem valor. Os que brigam por interesse
têm preço. Não que não me custe dor, sofrimento, medo e, às vezes pânico. Mas
prefiro morrer que rastejar e perder a dignidade”. Dias depois dessa declaração
o dirigente político que
a proferiu foi condenado a 30 anos de prisão. E afirmou
estar feliz pela absolvição de um companheiro de processo.
A síntese exprime uma aguda consciência da natureza de
classe do conflito em que se debate o país e a escolha de um homem maduro,
provado nas múltiplas circunstâncias históricas que enfrentou. Soube conduzir e
vencer batalhas. Sabe entender as derrotas que sofreu. Mas sabe também que o
sonho que construímos ao longo da vida só nos abandona quando dormimos.
Definitivamente, o processo que envenena o Brasil e que
resultou no golpe de 2016, cujo propósito principal é nos devolver à humilhante
condição de neocolônia fornecedora de produtos primários, despe as disputas
políticas das vestimentas hipócritas do discurso moral que dominou a cena
pública do país nos últimos anos. São o que são: escolhas políticas.
Neste momento da história assistimos, com as variações
determinadas pelas condicionantes econômicas, sociais e culturais de cada país,
o capitalismo se despedir de sua mais vistosa invenção política: a Democracia
Liberal. Ela deixou de ser funcional para a acumulação. As instâncias
convencionais da ação política foram esvaziadas, os sindicatos, os partidos, os
parlamentos. E substituídas pelos comitês executivos das grandes corporações.
No caso brasileiro a hipertrofia dos órgãos de controle e a condição de poder
tutelar sobre os demais poderes assumida pelo judiciário gerou as condições
para um golpe de estado capaz de, em alguns meses, fazer da Carta de 88 uma
Constituição bastarda. Liquidado o capítulo dos Direitos Sociais que justificava
seu título de “Constituição Cidadã”.
As petroleiras, os bancos, o agronegócio, o monopólio da
mídia, contam entre os 3% da sociedade que apoiam o governo ilegítimo de Michel
Temer. E têm força suficiente para mantê-lo no poder até que cumpra o desmonte
cabal do projeto democrático-popular representado por Lula e pelo Partido dos
Trabalhadores. Os autores das declarações de que tratei aqui serão julgados,
num futuro que espero seja breve, pela integridade com que se conduziram diante
das escolhas políticas que fizeram.
*Pedro Tierra (Hamilton Pereira) é poeta. Ex-Presidente da
Fundação Perseu Abramo.
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