quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Tamanho não é documento Ou de como os curtas conseguem refletir o País em toda a sua complexidade


LUIZ CARLOS MERTEN – O Estado de S.Paulo

É um título que pode induzir o leitor a pensamentos libidinosos, ainda mais que o filme se chama Porn Karaokê. Mas é bom não se equivocar. A ideia é só chamar a atenção para um fato incontestável. Formato e suporte são meros detalhes. Alguns dos melhores e mais intrigantes filmes brasileiros da atualidade você pode ver, ou talvez já tenha visto, no Festival de Curtas. Como o citado Porn Karaokê, de Daniel Augusto. Karaokê pornográfico. É um espaço. Uma adolescente que viu estranhas tatuagens surgirem em seu corpo – e depois elas desaparecem – busca explicações no Porn Karaokê. Existem referências a David Lynch. Los Angeles é um ponto no mapa, no centro do mundo da protagonista.

Outra grande cidade, São Paulo, é a protagonista de Cidade Improvisada, de Alice Riff, que investiga o universo do rap. Quando improvisam seus versos e cospem palavras iradas sobre a injustiça social e o caos urbano, os MCs que dropam freestyles diante da câmera da diretora colocam a voz da periferia na tela. O filme começa com (e ao longo dele voltam) as imagens de um equilibrista que caminha sobre os estreitos parapeitos de viadutos. Esse movimento precário assume uma dimensão metafórica. Os MCs são 15 e talvez seja até injusto destacar só um punhado deles – Max V.O., Slim Rimografia, Bebel Du Ghetto, DD. Na sessão de sábado à tarde no Cine Olido, no centro de São Paulo, o público aplaudiu em cena aberta as improvisações. A maior ovação foi para DD. A todos os problemas de quem vive na periferia ela acrescenta o da sua particular identidade. Ser mulher não é fácil em qualquer lugar.

O local, como em Porn Karaokê, era muito importante. Nos amplos corredores que dão acesso ao conjunto de salas da Galeria Olido, nos sábados à tarde, os street dancers fazem daquele lugar o palco de suas exibições. A cidade pulsa, em toda a sua complexidade, naquelas coreografias e nas improvisações. A cidade é, pelo contrário, estagnada no curta de Liliane Sulzbach que tem esse título – A Cidade. Ela é habitada por velhos, e o espectador é introduzido à rotina de um lugar que parece parado no tempo. Aos poucos, revela-se uma história. A superação de um drama doloroso.

A cidade é o que sobrou do antigo leprosário de Itapuã, junto ao rio, na Grande Porto Alegre. A lepra, ou Mal de Hansen, sempre foi motivo de estigmatismo social, e isso desde tempos imemoráveis. Basta lembrar os leprosos de Ben-Hur, de William Wyler, tratados como tragédia, e os de O Incrível Exército de Brancaleone, de Mario Monicelli, como humor. O projeto do leprosário surgiu para segregar os enfermos. Eles eram separados da família, estimulados a viver entre eles. Sobraram poucos, 35, que ainda vivem ali. As modernas formas de tratamento e cura tentam acabar com o preconceito. Aquelas pessoas, os sobreviventes, são todas sexagenárias, ou mais. Amargam dores. Uma lembra que era muito jovem ao ser arrancada de casa e levada para um lugar que seria ‘lindo’, foi o que lhe disseram. Outra observa que aquele grupo é a sua verdadeira família. A outra, a biológica, desertou de sua vida há muito tempo.

Liliane Sulzback é autora de outro belo curta sobre a infância. Aqui, busca outro segmento na linha de tempo. A cidade parece morta e, quando ela acrescenta à montagem as cenas do passado, para mostrar como era o leprosário, quando cheio, as pessoas parecem sem vida naquelas imagens em preto e branco. São sempre vistas em grupo, caminhando para o mesmo lugar, como zumbis. “Sair para onde, se vivi sempre aqui?”, uma delas se pergunta. E, malgrado todo sofrimento, homens e mulheres cantam, como num filme do inglês Terence Davies, o sublime Vozes Distantes, de 1988.

Daniel Augusto tem feito curtas que dialogam com a história e a cultura norte-americanas. Fordlândia, em parceria com Martinho Andrade, é sobre a cidade construída numa gleba da Amazônia (e depois abandonada) por Henry Ford. She Is Lost Control, com base na música do Joy Division, é sobre uma garota que sofre um acidente e se indaga sobre a própria identidade. A garota e a busca da identidade estão de volta em Porn Karaokê. As marcas que surgem e desaparecem são metáforas do próprio cinema. Não se iluda. A duração pode ser curta, mas o efeito desses filmes no imaginário do público – no seu imaginário – persiste.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

''De modo análogo, também a problemática do poder, da estrutura do poder e da sua modificação, não pode ser compreendida do ponto de vista do fator econômico (riqueza, poder da propriedade, etc) , mas através das leis da estrutura econômica desta ou daquela formação social. Resumindo, podemos dizer: a distribuição de riqueza (''economia'') , a hierarquia e a estrutura do poder (''poder'') pelas leis que têm origem na ordem social em determinada etapa do desenvolvimento. O problema é de como, em uma determinada sociedade, é repartido o poder, quem é o detentor do poder, como ele é exercido, e portanto qual é a natureza da hierarquia do poder; qual o critério e a escala do prestígio social, quem é autoridade, herói ou herege e ''diabo'', e portanto qual é o caráter e a escala da posição social; enfim, de que modo se distribui a riqueza, como a sociedade se divide entre possuidores e destituídos ou então nos que possuem mais e nos que possuem menos, portanto qual é a divisão da riqueza [...]"

(Karel Kosik - Dialética do Concreto)

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Infelizmente o curitibano não pode rir da desastrada boa intenção da octogenária italiana que, tentou restaurar um mural no Santuário da Misericórdia, Espanha, por conta própria e sem pedir autorização. Do mesmo modo age o poder público na Capital das Araucárias, que em poucos anos fez pouco caso da demolição da antiga sede da Matte Leão Jr, ou melhor, 110 anos de história da empresa que foi o carro chefe da economia no estado por quase um século, retirou a única argola que restava do tempo em que se andava à cavalo em Curitiba, que resistia na rua São Francisco, e agora promete colocar no chão o Hospital Espírita de Psiquiatria Bom Retiro, onde foi internado, em 1974, Austregésilo Carrano, autor de Canto dos Malditos, que inspirou o premiado filme Bicho de Sete Cabeças e constituiu-se um marco para a luta anti-manicomial. Curitiba talvez não seja diferente do resto do país, mas saber preservar o patrimônio artístico, cultural e histórico é façanha que sim, nos aproximaria do primeiro mundo, o que será impossível para governantes do terceiro mundo, que sobrevivem às custas do cabresto eleitoral garantido pela mídia, ou de instituições que, pelo que parece, sirvam basicamente para garantir a perpetuação deste nocivo círculo vicioso cujo o lema é o lucro, não importa como. Um povo sem História não possui Cultura. Um povo sem Cultura não produz Arte legítima. Você vai rir de quem?

Ricardo Pozzo

sábado, 25 de agosto de 2012

Amores

Ovídio

Não devo atrever-me a defender os meus depravados costumes
e a terçar falsas armas em defesa dos meus vícios.
Confesso – se alguma utilidade tem confessar os pecados;
mas logo depois de confessar, caio, de cabeça perdida, nos meus erros.
Odeio e não sou capaz de não desejar o que odeio.
Pobre de ti! Aquilo que porfias por deixar, quão penoso é carregá-lo!
Faltam-me forças e poder para me governar a mim mesmo;
sou arrastado, como proa baldeada pela força das ondas.
Não é uma beleza, em especial, que estimula o meu amor;
cem são as razões para eu estar, sempre, a amar:
se há uma que baixa os olhos com recato,
deixo-me inflamar, e aquele pudor é para mim cilada;
se há outra que é provocante, sou cativado por não ser simplória
e por me dar esperança de ser bem viva na doçura do leito;
se me pareceu agreste e a imitar as severas Sabinas,
ela quer, mas, na sua sobranceria, finge, eis o que eu penso;
se és culta, agradas-me pelos teus dotes – tão raros – para as artes;
se és rude, agradas-me pela tua própria simplicidade.
Há uma que afirma que, ao pé dos meus, são toscos os versos
de Calímaco?Pois se lhe agrado, de pronto ela me agrada;
há, também, a que me condena, como poeta, e condena os meus versos;
e eu desejaria suportar o peso das coxas daquela que me condena.
Uma caminha com elegância – o seu movimento cativa-me; outra é bronca
- mas poderia tornar-se bem mais elegante no contacto com um homem.
Esta, porque canta com doçura e com ligeireza faz evoluir a sua voz,
quereria eu dar beijos arrebatados àquela que está a cantar;
estoutra percorre, com a agilidade do polegar, as queixosas cordas,
tão sabedoras mãos, quem não seria capaz de as amar?
Aquela tem um rosto aprazível e faz mil movimentos com os seus longos
braços
e com a elegância e arte bamboleia o peito delicado;
para não falar de mim mesmo, que me deixo tocar por qualquer motivo,
coloca ali Hipólito: tornar-se-ia um outro Priapo.
Tu, por seres tão alongada, emparceiras com as antigas heroínas
e és capaz, com o teu corpo, de ocupar o leito inteiro;
esta é elegante na sua pequenez: por uma e outra sou arrebatado;
ambas, a alta e a pequena, caem bem ao meu desejo.
Não é elegante – e vem-me à ideia que elegância poderia acrescentar-se-lhe;
está cheia de enfeites – que ela mostre as suas próprias prendas.
A alvura da sua pele há-de seduzir-me, há-de seduzir-me a mulher bem rosada;
e até com cores baças é prazenteiro o amor;
se tombam, de uma fronte branca como a neve, cabelos negros,
Leda fazia-se admirar pela sua negra cabeleira;
se são ruivos, a Aurora era aprazível pelos seus cabelos cor de açafrão.
A todas as histórias o meu amor é capaz de adaptar-se.
Uma idade jovem seduz-me, uma idade mais madura toca-me;
aquela por ter mais beleza de corpo, esta por possuir sabedoria.
Enfim, as mulheres que podem apreciar-se em toda a cidade de Roma,
a todas elas pode o meu amor abranger.»


Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 70/1

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Dois Corpos Tombando na Água

esperei por ti em todos os lugares errados
- a quem pedir agora explicações?

viver diziam-me era assim e não havia
mistério nenhum nisso apenas
um roteiro obscuro estabelecido
entre o que tem de acontecer e aquilo
que não acontece nunca

e diziam-me ainda ninguém pode
com justiça reclamar
o que há tantos anos abandonou
num sombrio patamar de prédio suburbano

perdemo-nos então
por pensamentos palavras actos e omissões
e todas as palavras recuaram por infinitos precipícios
sem reconhecerem o som da nossa voz
nem o eco das noites em que todas
nos tinham pertencido

num sombrio patamar de prédio suburbano

até pode ser que nem gostes muito destas palavras
nem de mim agora que os meus gestos
são tão diferentes
agora que recordas tanta coisa que eu esqueci
e ainda bem ninguém pode viver
com o peso do que ficou para trás
agora que os livros as canções as laranjeiras
ficaram para sempre naquele cenário de primavera
que fazia de nós todos o garantiam
presas tão fáceis

pressinto que hás-de culpar-me sempre
pelos anos que perdemos por becos ruas avenidas
esquecendo à toa aquilo
que só um ao outro deveríamos ter ensinado
talvez até tenhas razão mas eu chegara
àquele lugar da vida onde só se pode
amar para sempre e sem remédio
e de um dia para o outro a minha boca
desaprendeu disciplinadamente o sabor da tua
e os teus passos a tua voz o céu de paris
a janela sobre os telhados os domingos de sol
atravessaram as mais arrastadas fronteiras
e estabeleceram os seus limites do lado de lá
de todas as madrugadas que eram nossas

houve mesmo um tempo desculpa em que esqueci
as cartas os cigarros as fugas os recados
as canções as camélias o jardim
onde me esperavas às nove da manhã
a velha que nos olhava abanando a cabeça
entre estátuas decepadas e gatos vadios

talvez um dia quem sabe o destino
volte a ter novos contornos e nos olhe de frente
e ainda sobre tempo para reaprender a soletrar correctamente
todas as palavras que admitiam ter nascido
do teu corpo da tua voz do sabor da tua boca
tempo para povoar de novos sons os velhos discos de vinil
e sonhar com mundos à espera de serem salvos
pelas nossas palavras

tempo para nos olharmos e encontrarmos
sem remorsos
a maneira de nos perdermos de novo nos caminhos
que levam ao coração absoluto da terra

talvez um dia quem sabe eu volte
a faltar às aulas para esperar por ti


Alice VIeira,
Dois Corpos Tombando na Água





Os peruanos segundo Chambi

Fotógrafo fixou a vida tanto da elite de seu país como dos despossuídos, dignificando os últimos, segundo Vargas Llosa

23 de agosto de 2012

ANTONIO GONÇALVES FILHO – O Estado de S.Paulo

A sintaxe visual aparentemente simples do peruano Martín Chambi encerra um dos grandes mistérios da fotografia. Quais seriam, afinal, as referências culturais desse homem que só cursou a escola primária, filho de mineiro e primeiro fotógrafo indígena latino-americano? Sejam nas cenas da vida cotidiana, nas paisagens ou nos retratos que integram a exposição Chambi Inédito, a partir de sábado, na Galeria Fass, é possível identificar desde uma fixação no autorretrato como forma de autoconhecimento – à maneira de Rembrandt – até uma luz oblíqua que ilumina apenas fragmentos do corpo, como na pintura de Caravaggio, além de uma composição rigorosamente estudada, que fez com que os críticos o associassem ao pictorialismo.

Teo Allain Chambi, neto do fotógrafo e diretor da fundação que leva o seu nome, confirma a suspeita de que ele talvez tivesse visto algumas reproduções das telas de Rembrandt no estúdio de seu professor de fotografia, Max T. Vargas. “Numa entrevista a um jornal de Lima, em 1927, meu avô disse que sua inspiração era um tal de Rembranat (sic), que tinha visto na casa de seu mestre”, conta Teo, também fotógrafo e um dedicado pesquisador da obra do avô, que deixou mais de 30 mil placas de vidro, segundo seus cálculos.

Na primeira catalogação, feita pelo antropólogo norte-americano Edward Ranney com ajuda dos filhos de Chambi, Victor e Julia, eram 14 mil placas. A pesquisa rendeu uma exposição de 150 fotos no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), em 1979, que viajou pelo interior dos EUA e chegou a Londres, passando pelo Canadá. Ranney, formado em Yale e também fotógrafo, descobriu a arte de Chambi quando o peruano já era um veterano profissional de 73 anos, mas ainda desconhecido fora de seu país. O americano, estudioso das culturas andinas antigas, viu nesse material um valioso guia para analisar os costumes dos descendentes dos incas e uma oportunidade de mostrar ao mundo a qualidade excepcional do trabalho do fotógrafo peruano, transformando em negativos mais de 5 mil placas de vidro de seu estúdio.

As fotos de Ranney, hoje com 70 anos, não disfarçam o legado que recebeu de Chambi em sua formação como fotógrafo. Sobre ele, o curador Peter C. Burnell já escreveu que o americano consegue captar a essência das edificações pré-colombianas, sendo capaz de traduzir o olhar arquitetônico que levou as comunidades indígenas a emular as paisagens andinas em seus monumentos. O autorretrato de Chambi em Machu Picchu (de 1932, ao lado) mostra que seu olhar parece ter herdado dos ancestrais essa capacidade de mimetizar a natureza, pois ele mesmo surge como um totem no exato local escolhido pelos turistas como o belvedere das ruínas do antigo império inca, como observa seu neto Teo. Chambi foi pioneiro em fazer cartões-postais de Machu Picchu, a cidade perdida dos incas, descoberta em 1911 (os exploradores, até essa data, passavam por ela sem dar atenção ao patrimônio da humanidade).

Antes de voltar sua atenção para sítios arqueológicos, Chambi vivia de seus retratos da burguesia local de Cusco. É possível identificar dois olhares distintos nas fotos das cerimônias sociais da classe dominante e nas festas populares dos indígenas, com os quais, naturalmente, Chambi se identificava. Uma de suas imagens icônicas é a das damas da sociedade cusquenhas que emergem entre arbustos como botões de rosa (veja foto acima, de 1931). Nela, as senhoritas são retratadas numa composição teatral, francamente artificial e um tanto ‘camp’. Basta comparar essa imagem com Reunião de Carnaval em Cusco (1930) – luz natural sobre rostos de populares embriagados – para atestar que a simpatia de Chambi estava, obviamente, com os despossuídos.

“Ele foi, de fato, o primeiro a retratar o próprio povo indígena, escravizado até os anos 1920, o que o fez se integrar ao movimento indigenista e colocar as imagens de índios na vitrine de seu estúdio em Cusco”, conta o neto Teo Chambi, revelando que pretende organizar uma exposição em Buenos Aires para aproximar sua visão antropológica de Pierre Verger. O fotógrafo francês, que adotou o Brasil, conheceu Chambi em seu estúdio da Calle Marqués, 69, endereço também frequentado pela elite de Cusco, que contratava o fotógrafo para documentar batizados e festas de casamento. “Nunca fizeram uma exposição comparativa e acho que também valeria a pena mencionar August Sander, embora considere que cada um tem seu mundo, a despeito das muitas afinidades.”

Presente em coleções institucionais importantes como as do MoMA de Nova York e particulares, como as dos fotógrafos Mario Testigo e Sebastião Salgado, as imagens de Martín Chambi, além do lado documental e antropológico, destacam-se pelo alto nível técnico. O escritor peruano Mario Vargas Llosa lembra a esse respeito que o mundo de Chambi “é sempre belo”. O prêmio Nobel de Literatura acrescenta: “É um mundo no qual as formas de desamparo, discriminação e vassalagem foram humanizadas e dignificadas pela limpeza da visão e elegância do tratamento”.

Essa visão, diz o neto do fotógrafo, tem a ver com o senso de honra de um descendente dos incas que, católico, fez do registro da imagem uma profissão de fé. “Isso explica sua fixação nos templos e o fato de ter entre suas primeiras fotos as das procissões de Cusco.”









Mestre andino

Exposição traz 25 fotos inéditas do peruano Martín Chambi, pioneiro que registrou a vida dos índios
23 de agosto de 2012

ANTONIO GONÇALVES FILHO – O Estado de S.Paulo

Ao ser consagrado como o fotógrafo peruano que registrou as melhores imagens de Machu Picchu e a vida dos índios descendentes das culturas andinas pré-colombianas, Martín Chambi (1891-1973) foi associado aos grandes nomes da fotografia de sua época – liderando a lista de afinidades o alemão August Sander (1876-1964), cujos retratos de pessoas socialmente deslocadas revelam um olhar terno sobre os discriminados. Chambi, aliás, tinha um histórico bem parecido com o de Sander. O peruano descobriu a fotografia aos 14 anos, quando trabalhava numa mina de ouro de Carabaya, explorada pelos ingleses. O alemão, filho de carpinteiro, também viu uma câmera pela primeira vez nas mãos de um fotógrafo que trabalhava para a companhia de mineração da qual era empregado em Herdorf, sua cidade natal.

Chambi ganha, a partir de sábado, sua terceira exposição em São Paulo (as outras duas foram na Pinacoteca do Estado, em 2003 e 2006). Desta vez é uma mostra com 25 imagens (24 delas inéditas) selecionadas pelo neto do fotógrafo, Teo Allain Chambi, especialmente para a Galeria Fass.

São fotografias desestabilizadoras, como as de Sander, não tanto pelos tipos incomuns – que tornaram o alemão alvo fácil dos nazistas -, mas principalmente pela coragem de lançar um olhar antropológico sobre o Peru que seus contemporâneos não tinham. Tanto é verdade que a fama de Chambi se deu graças à curiosidade que despertava nos estrangeiros seu estúdio em Cusco. Enquanto os colegas preferiam ostentar na vitrine a alta burguesia peruana, Chambi escancarava a miséria das deserdadas populações indígenas andinas. Mestre da fotografia documental, Chambi é também uma referência do uso da luz natural em composições de rara beleza e sofisticada construção.

Recompensa

Despedaçada na vertente duma súplica
fiquei intacta. Silente. Absoluta.
Nos meus passos mais certos os vestígios.
Nos meus olhos mais límpidos as águas.
No meu corpo mais nitidez de lírio.
Recompensa bebida na fonte dum martírio.

Natália Correia

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

In memoriam Paul Éluard

Paul Celan

Depõe no túmulo do morto as palavras
que ele pronunciou para viver.
Deita-lhe a cabeça entre elas,
fá-lo sentir
as falas da nostalgia,
as facas.

Depõe sobre as pálpebras do morto a palavra
que ele recusa àquele
que o tratava por tu,
a palavra
que viu passar por ela o sangue do seu coração,
quando uma mão, despida como a sua,
atou aquele que o tratava por tu
às árvores do futuro.

Depõe-lhe esta palavra sobre as pálpebras:
talvez
surja nos seus olhos, ainda azuis,
um outro, mais estranho, tom de azul,
e aquele que o tratava por tu
sonhe com ele: Nós.


Paul Celan. Sete Rosas Mais Tarde. Edição Bilingue. Antologia Poética, 3ª edição. Selecção, tradução e introdução de João Barrento e Y. K. Centeno. Edições Cotovia, 1996., p. 63

The Drinker


Cantos de Safo para Átis

Cantos de Safo para Átis

Natália Correia

Mon Athis n’est pas revenue sur ses pas!…
Safo

I

Espero-a num silêncio de margem
enfeitiçada do rio e da viagem.
E na noite mais densa e mais acesa
onde aranhas de luz tecem um corpo
para a sua alma de princesa.

II

Desfez-se a brisa em meu cabelo agreste
Átis de corpo vegetal
perfumado e silvestre.
Lírio florido na mão que te procura
com delírios nos olhos
mordidos na cintura.

III

Como pombas
seus seios vêm pousar nas minhas mãos.
Estremecem e partem.
Como pombas minhas mãos os perseguem.

IV

Virginal
abandonou-se no meu colo
claro e penetrante como o olhar de Apolo.
Partiu
purificada na alegria
dum corpo que lhe dei.
Fiquei
na estrela que o brilho me copia.
Acesa mas tão fria.

V

Lentos meus gestos desenham o seu rosto
rasgando a escuridão da sua ausência.
E o meu canto enleia-se no gosto
de a cantar em distância e em transparência.

Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 87/8


La Damnation de Faust (Brussels – may 2002)

Antonio Pappano is conducting – Susan Graham

– D’amour l’ardente flamme

D’amour l’ardente flamme,
Consume mes beaux jours.
Ah! la paix de mon âme
A donc fui pour toujours!
Son départ, son absence
Sont pour moi le cercueil,
Et loin de sa présence,
Tout me paraît en deuil.
Alors ma pauvre tête
Se dérange bientôt,
Mon faible cœur s’arrête,
Puis se glace aussitôt.
Sa marche que j’admire,
Son port si gracieux,
Sa bouche au doux sourire,
Le charme de ses yeux,
Sa voix enchanteresse,
Dont il sait m’embraser,
De sa main, la caresse,
Hélas! et son baiser,
D’une amoureuse flamme,
Consument mes beaux jours!
Ah! le paix de mon âme
A donc fui pour toujours!
Je suis à ma fenêtre,
Ou dehors, tout le jour -
C’est pour le voir paraître,
Ou hâter son retour.
Mon cœur bat et se presse
Dès qu’il le sent venir,
Au gr? de ma tendresse,
Puis-je le retenir!
O caresses de flamme!
Que je voudrais un jour
Voir s’exhaler mon âme
Dans ses baisers d’amour

Loves burning flame
Consumes my life.
Ah, my souls peace
Has fled for ever.
His departure, his absence
Are death to me,
And far from his presence
All seems to me in mourning.
Now my poor head
Is soon in turmoil,
My feeble heart stops,
Then at once freezes over.
His gait that I admire,
His carriage so graceful,
His mouth sweetly smiling,
The charm of his eyes,
His enchanting voice
With which he knows how to set me afire,
The caress of his hand,
Alas! and his kiss,
The flame of love
Consume my life.
Ah, my souls peace
Has fled for ever.
I am at my window
Or outside all day -
To see him appear,
Or hasten his return.
My heart beats and throbs faster
When it senses his coming,
O that through my tenderness
I might bring him back!
O burning caresses!
How I should wish one day
To see my soul sigh
In his loving kisses!

sábado, 18 de agosto de 2012

Movimento Perpétuo



Todo o tempo é de poesia
Desde a névoa da manhã
À névoa do outro dia.
Desde a quentura do ventre
À frigidez da agonia.
Todo o tempo é de poesia.
Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue sossobram.
Vidas que a amar se consagram.
Sob a cúpula sombria
Das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
Da celeste alegoria.
Todo o tempo é de poesia.
Desde a arrumação do caos
À confusão da harmonia.

terça-feira, 14 de agosto de 2012


As redes sociais de Cortázar

Cartas e biblioteca explicam obra de argentino

SYLVIA COLOMBO – FOLHA SP

RESUMO Reunidas em cinco tomos, as cartas de Julio Cortázar registram impressões literárias e políticas sobre a Argentina e sobre a Europa. Em outra obra, pesquisador se debruça sobre os 4.500 volumes da biblioteca pessoal do autor de “O Jogo da Amarelinha” para entender o diálogo que escritor manteve com a literatura.

Não havia Facebook nem Twitter no tempo de Julio Cortázar (1914-84). Mas o escritor argentino, autor de “O Jogo da Amarelinha” e “Histórias de Cronópios e de Famas” era um viciado em redes sociais estabelecidas por meio de cartas, e tinha muitos amigos com quem compartilhava impressões sobre filmes, música, viagens e, principalmente, outros livros.

Essa é a sensação que fica quando se folheia os cinco tomos de sua farta correspondência, lançados agora na Argentina pela Alfaguara -”Cartas 1: 1937-1954″, “Cartas 2: 1955-1964″, “Cartas 3: 1965-1968″, “Cartas 4: 1969-1976″, “Cartas 5: 1977-1984″ [cerca de R$ 72 cada um, mais taxas]. As missivas foram reunidas pela viúva do escritor, a tradutora Aurora Bernárdez, e pelo editor e filólogo catalão Carles Álvarez Garriga, e são uma versão estendida, em mais de mil cartas, de uma versão lançada em 2001, com três tomos.

Há conversas com amigos de infância, como Eduardo Jonquieres, o tradutor Paco Porrúa, a mecenas Victoria Ocampo, e com grandes escritores com quem se correspondia com frequência, como Mario Vargas Llosa, José Lezama Lima, Juan Carlos Onetti, Guillermo Cabrera Infante e Alejandra Pizarnik. A correspondência familiar é reduzida, algumas à mãe, outras às suas mulheres e ex-mulheres e uma única enviada ao pai, de quem vivia afastado, em 1949.

Chama a atenção o fato de não haver cartas de seus amigos e conhecidos brasileiros. “Não chegou nada a tempo, mas sabe-se que foi próximo de muitos, como o tradutor Davi Arrigucci Jr., os escritores Haroldo de Campos e Décio Pignatari e o cantor Caetano Veloso”, diz Garriga à Folha.

Cortázar não lia em português, e sim por meio de traduções francesas. Em carta de fevereiro de 1983, escreveu: “Às vezes penso que o mais forte que li nos últimos dez anos foi a obra de dois brasileiros, Clarice Lispector e Osman Lins, quase dá vontade de lançar-se ao português em busca de outras coisas que possam existir”.

GÊNERO Para Garriga, em alguns anos o epistolário de Cortázar será valorizado como um gênero dentro de sua obra. “A qualidade de sua prosa me parece sempre a mesma, esteja escrevendo um conto, um romance ou uma carta. A assombrosa linearidade de seu pensamento é admirável”, diz.

Ele conta que a leitura dos originais, “limpíssimos”, deixa claro que Cortázar “nem corrigia nem duvidava”. “Ainda que escrevesse só com um dedo de cada mão, era um mecanógrafo velocíssimo e, segundo contam, não se detinha em nenhum instante. Há cartas que são pequenos relatos, e outras, quase poemas.”

Em 1937, no começo da primeira leva de cartas, Cortázar era ainda professor na província de Buenos Aires. O argentino partiu para Paris em 1951, aos 37 anos, por não estar de acordo com o regime peronista. Recebeu uma bolsa do governo francês, depois passou a trabalhar como tradutor da Unesco.

Estão registradas suas impressões literárias e políticas sobre a Argentina e sobre a Europa, sobretudo a França, no período em que viveu naquele país. Repete-se o tom entusiasmado com que comenta cada obra ou lugar novo que conhece, mas também um sentimento de culpa e de entrega com relação a cada interlocutor.

“Outra circunstância que desperta a maior simpatia ao ler essas centenas de páginas é ver como Cortázar tem a capacidade camaleônica de adaptar-se ao interlocutor, seja ele um editor renomado, seja o filho de um amigo, seja um tradutor perdido, sempre com a maior empatia”, afirma Garriga.

Pelo visto, na vida real ele atuava de forma parecida, e talvez por isso caia bem a todo o mundo (ainda hoje, pessoas que apenas o frequentaram sustentam que os momentos divididos com ele foram os mais importantes de sua vida).

DESCULPAS A maioria das cartas começa com longas desculpas pela demora em contestar. Depois, comenta aspectos da vida do interlocutor, pergunta sobre a família e sobre o trabalho. Em alguns casos, opina avidamente sobre este.

O cubano José Lezama Lima e o mexicano Octavio Paz recebem detalhados comentários literários sobre suas obras. Também aparecem broncas, como a que dá no peruano Mario Vargas Llosa pelo fato de ele ter se ausentado de um encontro em Cuba que pedia a liberdade de um preso político do regime comunista.

A correspondência chega num momento em que a obra de Cortázar vem sendo rediscutida na Argentina. Alguns críticos fazem ressalvas ao fato de ter se tornado um cânone sem voltar a ser avaliado.

Para o editor e crítico Damián Tabarovsky, o escritor está super-valorizado e sua obra tem mais importância como porta de entrada para a literatura do que por seu verdadeiro legado estético. Ele diz que, depois de passar por autores como Raymond Roussel, Robbe-Grillet e Foucault, torna-se impossível voltar a Cortázar. “Os mecanismos de divulgação cortazarianos passam a nos parecer triviais.”

Cortázar morreu em Paris em 12 de fevereiro de 1984, sendo enterrado no cemitério de Montparnasse. Nove anos mais tarde, seus livros foram doados à Fundação Juan March, em Madri. O editor e jornalista Jesús Marchamalo explorou os 4.500 tomos da coleção, e o resultado é o livro *”Cortázar y los Libros” [importado, ed. Fórcola, 112 págs., cerca de R$ 32 mais taxas],* lançado na Espanha.

ANOTAÇÕES Marchamalo recolheu as anotações, dedicatórias e desenhos, como a famosa espiral, que se repete em várias obras, e que o argentino fazia às margens e nas folhas de rosto dos livros.

“Os comentários que fazia eram o diálogo que estabelecia com a literatura. Fazia observações sobre estrutura, consistência dos personagens, coisa que lhe pareciam inverossímeis, tentativas equivocadas”, diz Marchamalo à Folha.

São comuns as observações “voilá”, “bien!”, “penoso”, mas também outras mais divertidas, como “que macanudo sos!”, esta para Lezama Lima, ou, em referência a um livro cuja capa era desenhada pelo artista mexicano Rufino Tamayo, “que te parta um rayo!”. Cortázar lia em francês, inglês, espanhol e alemão, e os comentários sempre seguiam o idioma em que estava lendo.

A biblioteca e as dedicatórias registram também a relação de Cortázar com Alejandra Pizarnik, a quem o escritor praticamente adotara como irmã mais nova e a quem tentava proteger e aconselhar. Pizarnik atravessou longo calvário em instituições psiquiátricas, até se suicidar em 1972.

“As dedicatórias que ela fazia para ele nos livros que lhe enviava estão entre as coisas mais estremecedoras que li. Mostram como ela caminhava por seu escuro túnel”, diz Marchamalo.

A coleção que está em Madri não pode ser considerada como a reunião de todos os livros que teve em vida. Cortázar viajava muito, conviveu com algumas mulheres, o que pode ter feito com que muitos volumes se perdessem.

Ainda assim, Marchamalo chama a atenção para o fato de que Cortázar tinha poucos livros de Jorge Luis Borges e, além disso, muito pouco anotados.

“Os dois se admiravam mutuamente, mas viviam em mundos diferentes, e sempre deixaram isso claro. Tanto com relação à literatura como quanto à política. Cortázar era mais engajado, abraçou a Revolução Cubana em certo momento. Borges sempre esteve alheio a essas coisas. Aí não havia um diálogo”, diz o editor.

CLARICE De autores brasileiros, há apenas volumes de Clarice Lispector, em espanhol, português e francês. Muitos livros dos mexicanos Carlos Fuentes e Octavio Paz, seus grandes amigos, e alguns de Mario Vargas Llosa, com quem mantinha bastante contato.

Na correspondência lançada na Argentina, está documentado o desentendimento entre eles por conta do desaparecimento do poeta cubano Heberto Padilla, perseguido pelo regime.

Mas a história que Marchamalo prefere e que reflete a relação de Cortázar com os livros é a que o escritor contava sobre como Aurora e ele se entretinham em suas viagens pela Europa.

“Eles não tinham dinheiro e viajavam com poucos recursos. Era muito comum comprarem edições baratas em estações, que liam entre eles. Cortázar lia uma página, arrancava, passava para Aurora, e depois de ler iam jogando-as fora. Para mim, é uma metáfora da biblioteca que colecionou durante toda a vida, de páginas que eram consumidas, comentadas e devolvidas ao vento.”

O riso do diabo

11 de agosto de 2012

Sergio Augusto – O Estado de S.Paulo

Em menos de 50 dias, cinco baixas sem reposições à altura. Por ordem de saída de cena: o crítico de cinema Andrew Sarris, o jornalista Alexander Cockburn, o cineasta Chris Marker, o escritor e ensaísta Gore Vidal e o crítico de arte Robert Hughes. Não me lembro de estrago similar na cultura em tão curto espaço de tempo. A bruxa (ou seria o Diabo?) anda à solta.

Os três últimos mortos ao menos foram lembrados e devidamente exaltados nestas paragens, mas os dois primeiros nem à cova rasa de um simples registro fúnebre tiveram direito. Cockburn, vá lá, afinal não escrevia para publicações de grande tiragem, mexia com política e era desbragadamente de esquerda, um réprobo ideológico. Sarris, porém, não só lidava com um assunto bem mais popular como foi um dos mais agudos e influentes críticos americanos das últimas cinco ou seis décadas.

Ambos brilharam na mesma trincheira, o semanário alternativo The Village Voice, no auge de seu prestígio. Sarris, que morreu em 20 de junho, aos 83 anos, tinha uma cabeça europeia e foi cria espiritual da revista parisiense Cahiers du Cinéma, de onde importou a teoria do “cinema de autor”, seu mais lembrado cavalo de batalha e pomo de discórdia entre ele e concorrentes diretos (Pauline Kael, John Simon) e indiretos (Gore Vidal, entre outros).

O olhar privilegiado e a elegância da escrita, com notório penchant por aliterações, fizeram dele o continuador de uma tradição iniciada por Otis Ferguson e James Agee. Estreou no Voice em1961, louvando A Aventura, de Antonioni (cuja opção pelo tédio mais tarde lhe inspiraria o neologismo “antonioniennui”), e em suas páginas pontificou durante 30 anos, até se transferir para o New York Observer.

Considerava-se um “cultista”, um fiel baluarte de filmes autorais, de preferência não herméticos, haja vista sua defesa apaixonada de Chaplin, Murnau, Ford, Renoir, Max Ophuls (Lola Montès reinou absoluto em seu top ten anos a fio), Welles, Hitchcock, Howard Hawks e outros totens da crítica parisiense. A Nouvelle Vague entrou na América por suas mãos. Nenhum de seus livros lhe deu mais notoriedade que The American Cinema, balanço dos primeiros 70 anos do cinema americano, rico em observações sutis e avaliações tão audaciosas quanto idiossincráticas. Em seu panteão não havia lugar para John Huston, Elia Kazan, Billy Wilder, William Wyler e outros monstros sagrados de Hollywood.

Sarris já era uma estrela do Voice quando Cockburn lá estreou a coluna Press Clips, exemplar exercício de media criticism que me serviu de inspiração e modelo para uma coluna (É Isso Aí), que na segunda metade dos anos 1970 editei no Pasquim. Nascido e criado na Irlanda, filho e irmão de grandes jornalistas, Alex, morto em 21 de julho, aos 71 anos, revelou-se um fiscal do poder tão bem informado e implacável quanto I.F. Stone e um dos críticos mais intransigentes das iniquidades do capitalismo, o que não o impediu de ser convidado pelo Wall Street Journal pré-Murdoch para colaborar, por uns tempos, em sua página de opinião, com total liberdade.

Muito inteligente e gozador, ocasionalmente se deixava ofuscar por alguma caturrice ideológica – e aí extrapolava. Insurgiu-se, por exemplo, contra a campanha dos ambientalistas por acreditar que combater os combustíveis fósseis significava fazer o jogo do lobby da indústria nuclear. Àquela altura, há muito deixara (brigado) o Voice e montara sua barraquinha na revista The Nation e também na Counterpunch, publicação impressa e on-line de grande penetração junto às esquerdas, que agora seu velho parceiro Jeffrey St. Clair terá de editar sozinho.

Sua coluna em The Nation intitulava-se Beat the Devil (literalmente, enganar o diabo), em homenagem ao pai, Claud Cockburn, que, com o pseudônimo de James Helvick, escreveu uma pequena farsa com este título, adaptada ao cinema por Truman Capote a pedido de John Huston. Claud era uma figuraça. Enviado pela versão britânica do diário comunista Daily Worker para cobrir a Guerra Civil Espanhola, aderiu à causa republicana e trocou a máquina de escrever pelo fuzil.

Sarris considerava Beat the Devil (no Brasil, O Diabo Riu Por Último) um dos filmes mais superestimados de Huston. O elenco é ótimo (Humphrey Bogart, Jennifer Jones, Robert Morley, Peter Lorre e, de brinde, Gina Lollobrigida), as locações deslumbrantes (Ravello, na costa amalfitana) e a intriga involuntariamente absurda, por culpa do improvisado roteiro de Capote. Sarris tinha razão. Durante as filmagens, em 1953, Huston reclamou dos preciosos azulejos que cobriam o salão de entrada do Palazzo Palumbo, principal locação do filme. “Fotografam mal em preto e branco”, disse ao dono do palácio, já então hotel, que nem discutiu e mandou trocá-los por outros com maior rendimento monocromático.

Gore Vidal, residente em Ravello por várias décadas, nunca deu trégua à sua indignação por aquele atentado ao patrimônio histórico e arquitetônico da cidade. Sempre que a ocasião lhe permitia, espinafrava o dono do Palumbo, um italiano estilo Rossano Brazzi que conheci quando lá me hospedei em 1974 e que, duas décadas depois do atentado, ainda apresentava o falso piso do lobby como se ainda fosse a relíquia seiscentista original, no melhor estilo Vittorio Gassman.

Soube dessa pitoresca história de lesa patrimônio pelo próprio escritor, não em Ravello, pois lá não se encontrava em minha primeira visita à cidade, justamente programada para entrevistá-lo em seu habitat, uma bela villa debruçada sobre o Mar Tirreno. Hoje a villa é mais um albergue de luxo da rede montada por Giuseppe Palumbo, que nada tem a ver com o quadrinista homônimo e já deve estar rindo com o Diabo faz tempo.

Flor Garduño


Obrigada pelo fogo

F. SCOTT FITZGERALD- FOLHA SP

tradução VANESSA BARBARA

Aos 40 anos, a sra. Hanson era uma mulher bonita, mas um tanto apagada, que vendia espartilhos e cintas em viagens de negócios fora de Chicago. Por muitos anos seu território havia oscilado entre Toledo, Lima, Springfield, Columbus, Indianápolis e Fort Wayne, portanto a transferência para a região de Iowa-Kansas-Missouri fora uma promoção, já que a empresa estava mais fortemente estabelecida a oeste de Ohio.

No leste, ela conhecia pessoalmente a clientela e sempre tomava um drinque ou fumava um cigarro no escritório dos compradores, depois de concluídos os negócios. Mas logo descobriu que, na nova área, as coisas eram diferentes. Não só deixavam de lhe perguntar se ela desejava fumar como, em várias ocasiões, quando ela mesma indagou se alguém se importaria caso acendesse um cigarro, a resposta veio compungida: “Não é que eu me importe, mas seria um péssimo exemplo para os empregados”.

“Ah, claro, eu entendo.”

Às vezes, fumar era importante para a sra. Hanson. Ela trabalhava muito e era um jeito de fazê-la descansar e relaxar psicologicamente. Era viúva e não tinha nenhum parente próximo para quem escrever à noite, e assistir a mais de um filme por semana prejudicava seus olhos, de modo que fumar tornou-se um importante sinal de pontuação na comprida sentença de um dia na estrada.

Na última semana de sua primeira viagem pelo novo território, ela foi parar em Kansas City. Era meados de agosto e estava se sentindo sozinha entre seus novos contatos, portanto foi com alegria que encontrou, na recepção de uma das empresas, uma mulher que havia conhecido em Chicago. A sra. Hanson sentou-se enquanto aguardava ser anunciada e, conversando, descobriu um pouco sobre o homem com quem iria se encontrar.

“Ele se importaria se eu fumasse?”

“O quê? Meu Deus, sim!”, a amiga afirmou. “Ele deu dinheiro para financiar a lei contra o fumo.”

“Ah. Bem, obrigada pelo conselho – obrigada mesmo.”

“É bom você tomar cuidado por aqui”, a amiga acrescentou. “Principalmente com os maiores de 50 anos. Os que não estiveram na guerra. Um homem me disse que quem participou da guerra nunca faria objeção a um fumante.”

Porém, em sua parada seguinte, a sra. Hanson topou com uma exceção. Ele parecia um jovem muito agradável, mas tinha os olhos fixos no cigarro que ela segurava entre os dedos, tanto que ela se viu obrigada a apagá-lo. Foi recompensada quando ele a convidou para almoçar e, ao longo do período, efetuou uma compra de valor substancial.

Depois disso, ele insistiu em lhe dar carona até o compromisso seguinte, embora ela tivesse a intenção de procurar um hotel nas redondezas e dar umas tragadas no banheiro.

Foi um desses dias repletos de espera -todos estavam ocupados ou atrasados e, quando os clientes chegavam a aparecer, eram homens de rosto duro que não toleravam a autocomplacência alheia, ou então mulheres consciente ou inconscientemente comprometidas com as ideias desses homens.

A sra. Hanson não acendia um cigarro desde o café da manhã e de repente percebeu que era por isso que sentia uma vaga insatisfação ao fim de cada reunião, não importando o quanto havia sido bem-sucedida financeiramente.

Ela dizia: “Acho que cobrimos um mercado diferente. É tudo entretela e látex, claro, mas nós realmente conseguimos juntá-los de um modo diferente. O aumento de 30 por cento nas vendas deste ano fala por si só”.

Mas pensava consigo mesma: Se ao menos eu pudesse dar três tragadas, conseguiria vender até aqueles corpetes antiquados com barbatanas.

Só havia mais uma loja para visitar, porém o compromisso estava marcado para dali a meia hora. Daria tempo de passar no hotel, mas, sem nenhum táxi à vista, ela caminhou pela rua, pensando: “Talvez eu deva parar de fumar. Estou ficando viciada”.

À sua frente havia uma catedral católica. Parecia muito alta, e de repente ela teve uma ideia: se tantas nuvens de incenso haviam subido em espirais até chegar a Deus, um pouco de fumaça no vestíbulo não faria a menor diferença. Por que é que o Altíssimo iria se importar com uma mulher exausta dando umas baforadas no vestíbulo?

Contudo, ainda que não fosse católica, o pensamento a incomodou. Fumar era tão importante assim, mesmo correndo o risco de ofender tanta gente?

E ainda assim. Ele não se importaria, pensou com persistência. Na época Dele, ainda não haviam descoberto o tabaco…

A sra. Hanson entrou na igreja; o vestíbulo estava escuro e ela procurou um fósforo na bolsa, mas não encontrou nenhum.

Vou apanhar o fogo de uma das velas, pensou.

A escuridão da nave era cortada apenas por um facho de luz num dos cantos. Ela caminhou pelo corredor lateral em direção ao borrão esbranquiçado, então reparou que não era causado por velas e, em todo caso, estava quase sumindo -um homem parecia prestes a apagar a última lamparina a óleo.

“São oferendas votivas”, ele disse. “Nós apagamos à noite. Acho que é mais importante para quem ofereceu se as economizarmos para o dia seguinte, em vez de mantê-las acesas a noite toda.”

“Entendo.”

Ele apagou a última chama. Não havia mais luz na catedral, salvos um candelabro elétrico no teto e a lâmpada sempre acesa diante do sacrário.

“Boa noite”, disse o sacristão.

“Boa noite.”

“Suponho que você tenha vindo para rezar.”

“Isso mesmo.”

Ele entrou na sacristia. A sra. Hanson ajoelhou-se e rezou.

Fazia muito tempo que ela não rezava. Mal sabia para quê, então rezou para seu empregador e para os clientes em Des Moines e Kansas City. Quando terminou, olhou para cima. Uma imagem de Nossa Senhora a encarava de um nicho a menos de dois metros de sua cabeça.

A sra. Hanson contemplou vagamente a imagem. Então ficou de pé e caiu, exausta, na beira do assento. Em sua imaginação, a Virgem desceu, como na peça “O Milagre”, tomou seu lugar e vendeu espartilhos e cintas, ficando tão cansada quanto ela. Então a sra. Hanson deve ter cochilado por uns minutos. Acordou com a sensação de que algo havia mudado, sentiu aos poucos um aroma familiar no ar, que não era de incenso, e sentiu que seus dedos doíam. Então percebeu que o cigarro que trazia entre os dedos estava aceso -e queimando.

Ainda sonolenta demais para pensar, ela deu uma tragada para manter a chama viva. Então olhou para cima e viu o nicho vago de Nossa Senhora, à meia-luz.

“Obrigada pelo fogo”, ela disse.

Mas não lhe pareceu o suficiente, de modo que ela se ajoelhou, com a fumaça subindo em espirais do cigarro entre seus dedos.

“Muitíssimo obrigada pelo fogo”, ela disse.

SOBRE O TEXTO Recusado em 1936 pela “New Yorker”, que o considerou muito fantástico e diferente do estilo de Scott, este conto foi publicado pela primeira vez na edição de 1º de agosto da revista. Agora, chega ao leitor brasileiro pelas mãos de Vanessa Barbara, tradutora de “O Grande Gatsby” (Penguin Companhia).

Isamu Noguchi com nadja


Por uma literatura suja

10/08/2012

Por Tatiana Salem Levy | Para o Valor, do Rio

O último romance de Paulo Scott, “Habitante Irreal”, me despertou inúmeras questões que mereceriam um estudo minucioso. Eu poderia discorrer longamente sobre o livro, tamanha a sua força. Poderia falar de Maína, a personagem índia que continuou habitando o meu imaginário dias depois de concluída a leitura. Ou do envolvimento político de Paulo, jovem gaúcho envolvido com o movimento estudantil nos anos 80 e, mais tarde, com os “squats” em Londres. Ou de Donato, filho desse casal improvável, e a primeira vez em que vê o mar. Poderia ainda falar da segurança narrativa do autor, do seu domínio da trama e da estrutura. No entanto, prefiro falar daquilo que, aparentemente, constitui o defeito do romance e termina por se revelar a sua maior potência: a sujeira.

“Habitante Irreal” é um livro sujo, tanto na temática quanto na linguagem. Fala de assuntos pouco explorados na nossa literatura, dos índios, de seus descendentes, da situação calamitosa em que se encontram, à margem na sociedade. Aliás, literalmente à margem, vivem, como Maína, em acampamentos na beira da estrada. Buscam, como Donato, uma identidade esfacelada.

O romance aborda esse universo com uma voz de dentro. Embora o narrador seja em terceira pessoa, sua visão é muito íntima dos personagens, muito próxima da realidade em que ocorre a história. Ao lado da temática surge uma narrativa suja, em que abundam excessos, descrições exageradas, parênteses insistentes, diálogos barrocos e, ao mesmo tempo, muito realistas. É justamente dessa linguagem excessiva que emerge o fulgor do livro de Scott.

O excesso é o movimento de transbordamento pelo qual o autor tende a sair de si, extravasar-se. Uma obra de arte limpa demais, concisa demais, redonda demais, termina, na maioria dos casos, por sufocar a vida. É nos pontos de sujeira que emerge o “efeito de real”, conceito criado por Roland Barthes para explicar aquilo que numa obra salta para fora, capaz de nos tocar, de nos levar perto do tão almejado real. Em outros termos, a sujeira é aquilo que escapa do controle do autor, aquilo que se impõe à mercê da sua vontade e, num certo sentido, o extrapola. Aquilo que num trabalho de edição até poderia ficar de fora, mas, de tão insistente, permanece. Porque sem a sujeira muitos livros seriam apenas histórias bem contadas. E o leitor precisa de mais do que isso, precisa do sangue que só “aquele” autor pode dar.

Na mesma altura em que li “Habitante Irreal”, fui ao cinema ver “Na Estrada”, de Walter Salles, impecável na direção, na atuação e na fotografia. Belo em sua melancolia. Mas limpo demais para ser “on the road”. Faltou lama no filme, a terra das estradas gaúchas do romance de Scott. Então, lembrei-me da obra de outro escritor, Samuel Rawet, sujo dos pés à cabeça. Sua obra é bastante irregular, mas tem momentos primorosos que se destacam por uma falta de compromisso com a estética limpa e acadêmica. “Não temo a linguagem exaltada”, diz ele em “Eu-Tu-Ele”. E de fato não teme: em seus contos e novelas, abundam palavrões, obscenidade, escatologia.

No ensaio intitulado “Corpus”, Jean-Luc Nancy desenvolve o conceito de “excrita”, “excrição”. Em realidade, ele liga a ideia de escrita ao sufixo “ex” (fora), aproximando-a de palavras como exteriorização, exposição e excesso. Trata-se de pensar a literatura como um movimento para o exterior. Afirma o filósofo: “A ‘excrição’ (’excription’) de nosso corpo, eis por onde é preciso passar primeiro. Sua inscrição para fora, sua colocação ‘fora do texto’ como o movimento mais ‘próprio’ do texto: o texto ‘mesmo’ abandonado, deixado no seu limite.” Na literatura de Rawet, observamos constantemente um corpo que se expõe, que se revela excessivamente. O excesso seria a forma de se deixar levar, pois nele não há boicote possível: fica-se a nu.

Na novela “Viagens de Ahasverus à Terra Alheia em Busca de um Passado Que não Existe Porque É Futuro e de um Futuro Que já Passou Porque Sonhado”, essa ideia mostra-se evidente. Ahasverus perambula por todos os cantos do planeta, vai de Haifa ao Rio e a Paris; por todos os tempos, passando da Inquisição na Península Ibérica a hoje, e sob as formas humanas mais variadas. Condenado à errância eterna por ter zombado de Cristo, não consegue se lembrar exatamente de onde vem, quem é e “nem mesmo se havia nascido”. Está sempre se metamorfoseando, tomando as formas mais diversas. Tudo é muito difuso e impreciso para Ahasverus, pois ele não consegue se fixar numa terra, num tempo.

O corpo do personagem se expõe em todas as suas facetas: o movimento, a dor, a paralisia e o sexo. Nessa novela de um único parágrafo, a sexualidade é explorada com vigor. Ahasverus se masturba e tem relações com homens e mulheres. A certa altura, diz o narrador:

“E subitamente precipitou-se numa avalanche de metamorfoses incompletas até assumir a forma de íncubo e depois súcubo, e nas duas formas de súcubo e íncubo exalar um cheiro de esperma e enxofre, produto de uma sexualidade desbragada, insatisfeita, permanente, ávidas sempre as duas formas de gozo, e no auge do gozo desejando mais gozo, tanto gozo que as duas formas eram insuficientes, e se multiplicaram em quatro, oito, dezesseis, trinta e duas, sessenta e quatro, fazendo sentir em toda a terra o cheiro de gozo, esperma e enxofre”.

Uma exaltação constante anima Ahasverus, como se ele pudesse explodir a qualquer instante. A sexualidade aparece aqui como uma maneira de fazer expelir o próprio corpo, expô-lo. Da mesma forma, as cenas de vômito são frequentes em sua obra, como se os personagens, na impossibilidade de falar do incômodo, precisassem vomitar o que sentem. No conto “Trio”, diz o narrador: “Paulo, sentado no meio, equilibrou a garrafa de cachaça no chão e abriu os braços como se crescesse de repente. O corpo maior do que o corpo. A pele, uma jaula para o tamanho que ia tomando. Nem o vômito perturbou a amplidão das mãos estendidas. Escorreu pelo peito, ramificou-se pelas coxas, e foi se empoçar entre as pernas”.

Se o padrão é um corpo limpo e quase inorgânico, ele traz para seus textos um corpo sujo e orgânico. Para tratar desse tema, é preciso uma linguagem igualmente suja. Por isso, em seus textos há tantas exclamações, frases de inconformidade e xingamentos. Para exteriorizar o corpo que não cabe em si, Rawet faz uso de uma linguagem que se coloca para fora, vomita, libertando-se de um pensamento sistemático e fechado.

É claro que uma prosa, para ser convincente, precisa de uma estrutura bem amarrada, personagens vivos, domínio linguístico. Qualidades essas que Paulo Scott e Samuel Rawet têm de sobra. Não estou aqui para fazer uma apologia do caos. Queria apenas dizer que um pouco de sujeira é fundamental, aquele ponto de desequilíbrio que coloca o leitor diante das feridas do mundo.

Tatiana Salem Levy é escritora e doutora em letras. Publicou os romances “A Chave de Casa” e “Dois Rios” (Record).

Os primeiros encontros

Cada momento passado juntos
Era uma celebração, uma Epifania,
Nós os dois sozinhos no mundo,
Tu, tão audaz, mais leve que uma asa,
Descias numa vertigem a escada
A dois e dois, arrastando-me
Através dos húmidos lilases, aos teus domínios
Do outro lado, passando o espelho

Pela noite concedias-me o favor,
Abriam-se as portas do altar
E a nossa nudez iluminava o escuro
À medida que genuflectia. E ao acordar
Eu diria «Abençoada sejas!»
Sabendo como pretenciosa era a bênção:
Dormias, os lilases tombavam da mesa
Para tocar-te as pálpebras num universo de azul,
E tu recebias esse sinal sobre as pálpebras
Imóveis, e imóvel estava a tua mão quente.

Rios palpitantes por dentro do cristal,
A montanha assomando na bruma, mar enfurecido,
E tu com a bola de cristal nas mãos,
Sentada num trono enquanto dormes,
- Deus do céu! – tu pertences-me.
Acordas para transfigurar
As palavras de todos os dias,
E o teu discorrer transbordante
De poder revela na palavra «tu»
O seu novo sentido: significa «rei».
Simples objectos transfigurados,
Tudo – a bacia, o jarro -, tudo
Uma vez de sentinela entre nós
Se torna límpido, laminar e firme.

Íamos, sem saber por onde,
Perseguidos por miragens de cidades
Derrotadas construídas no milagre,
Hortelã pimenta a nossos pés,
As aves acompanhando-nos o voo,
E no rio os peixes à procura da nascente;
O céu, a nós se abrindo.

Porque o destino seguia-nos o rastro
Como um louco com uma navalha na mão.

Arseny Tarkovsky.

« 8 Ícones». Versão de Paulo da Costa Domingos.
Assíro&Alvim, Lisboa, 1987., p.15-19

sábado, 4 de agosto de 2012

Tuttologo in TV

di profilo ha la faccia da fesso
di faccia il profilo è lo stesso

---------------------------------------Luciano Erba

Virá a morte e terá os teus olhos

Virá a morte e terá os teus olhos

Cesare Pavese

Virá a morte e terá os teus olhos
esta morte que nos acompanha
da manhã à noite, insone,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra vã,
um grito emudecido, um silêncio.
Assim os vejo todas as manhãs
quando sobre ti te inclinas
ao espelho. Ó cara esperança,
nesse dia saberemos também nós,
que és a vida e és o nada.

Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como deixar um vício,
como ver no espelho
re-emergir um rosto morto,
como ouvir lábios cerrados.
Desceremos ao vórtice mudo.

Cesare Pavese (tradução de Jorge de Sena)

Vendrá la muerte y tendrá tus ojos
-esta muerte que nos acompaña
de la mañana a la noche, insomne,
sorda, como un viejo remordimiento
o un vicio absurdo-. Tus ojos
serán una vana palabra,
un grito acallado, un silencio.
Así los ves cada mañana
cuando sola sobre ti misma te inclinas
en el espejo. Oh querida esperanza,
también ese día sabremos nosotros
que eres la vida y eres la nada.
Para todos tiene la muerte una mirada.
Vendrá la muerte y tendrá tus ojos.
Será como abandonar un vicio,
como contemplar en el espejo
el resurgir de un rostro muerto,
como escuchar unos labios cerrados.
Mudos, descenderemos en el remolino.

Versión de Carles José i Solsora

Verrà la morte e avrà i tuoi occhi -
questa morte che ci accompagna
dal mattino alla sera, insonne,
sorda, come un vecchio rimorso
o un vizio assurdo. I tuoi occhi
saranno una vana parola,
un grido taciuto, un silenzio.
Così li vedi ogni mattina
quando su te sola ti pieghi
nello specchio. O cara speranza,
quel giorno sapremo anche noi
che sei la vita e sei il nulla
Per tutti la morte ha uno sguardo.
Verrà la morte e avrà i tuoi occhi.
Sarà come smettere un vizio,
come vedere nello specchio
riemergere un viso morto,
come ascoltare un labbro chiuso.
Scenderemo nel gorgo muti.

Frida Kahlo e Diego Rivera

Senza bussola

Secondo Darwin avrei dovuto essere eliminato
secondo Malthus neppure essere nato
secondo Lombroso finirò comunque male
e non sto a dire di Marx, io, petit bourgeois
scappare, dunque, scappare
in avanti in indietro di fianco
(così nel quaranta quando tutti) ma
permangono personali perplessità
sono ad est della mia ferita
o a sud della mia morte?

----------------------Luciano Erba

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Não há coisa mais amarga…

‘Não há coisa mais amarga do que a aurora dum dia
em que nada acontecerá. Não há coisa mais amarga
do que a inutilidade. Pende cansada no céu
uma estrela esverdeada, surpreendida pela madrugada.
Vê o mar ainda escuro e a mancha de fogo
a que o homem, para fazer alguma coisa, se aquece;
vê e cai de sono entre as pardas montanhas
onde há um leito de neve. A lentidão da hora
não tem piedade de quem já nada espera.’

Cesare Pavese. Trabalhar Cansa

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Memória

“El imperio americano se hace pedazos”

GORE VIDAL, ESCRITOR
“Cualquiera que no odie a los negros será odiado por un tercio de la población de Estados Unidos “.

Andrés Fernández Rubio Madrid 3 DIC 1996- El País

Gore Vidal enseña su colmillo retorcido desde el primer momento, cuando un fotógrafo se arrodilla para retratarle en contrapicado y él le hace señas rápidamente para que vuelva a ponerse en pie mientras masculla: “Te descuidas y todos quieren hacer Ciudadano Kane”. Luego posa para la entrevista por su lado mejor, el izquierdo, y saluda frente a un equipo de televisión a la manera de la monarquía británica; es decir, desenrollando un bote de mermelada boca abajo, como él mismo explica en su libro autobiográfico Una memoria, editado por Anaya & Mario Muchnik. Vidal ha viajado a Madrid para presentar el volumen (mañana celebrará un debate con el público en el Círculo de Bellas Artes a las ocho de la tarde), un texto escrito en defensa propia frente a libros de otros en los que se ve dibujado sin exactitud.Se las sabe todas Gore Vidal, de 70 años y uno de los grandes intelectuales norteamericanos, novelista, ensayista, dramaturgo, guionista de Ben-Hur o actor; nieto del senador populista ciego Thomas Pryor Gore; pariente de Al Gore; relacionado con Jackie Kennedy a través de un padrastro que ambos compartieron; interesado él mismo en la carrera política dentro del Partido Demócrata mucho tiempo…

“Yo quería ser presidente y dio la casualidad de que un amigo mío lo consiguió”, explica sin inmutarse Gore Vidal refiriéndose a John F. Kennedy -el escritor Martin Amis destacó en Vidal tras entrevistarle “su falta de modestia, su inigualable y divertido narcisismo, su auténtico amor por sí mismo”-.

Los Kennedy aparecen sobradamente en Una memoria, y Gore Vidal captura al lector desde el primer capítulo cuando cuenta cómo Jackie Kennedy “se subía el vestido y le enseñaba a la inocente Nini cómo hacerse una irrigación después del acto sexual”. ¿Qué opina Gore Vidal del revival de Jack y Jackie Kenedy en Estados Unidos y de aquella presidencia resumida en una palabra: Camelot? “Uhhh”, brama. “Camelot era la mafia. Y lo digo literalmente, era una familia criminal, empezando por el abuelo del presidente, que se encargaba, desde la alcaldía de Boston, de controlar el mundo del hampa en la ciudad. Su hija se casa con John Kennedy, quien hereda las relaciones de su suegro con FranK Costello, jefe de la mafia de la Costa Este de Estados Unidos. John Kennedy, hasta que su hijo llegó a presidente, comía una vez a la semana con Frank Costello en Central Park South de Nueva York: una comida entre criminales”.

Ácido comentarista de la vida americana desde su retiro italiano de Ravello, Gore Vidal cree firmemente que el declive del imperio americano es un hecho, y una ocasión alertó sobre la posibilidad de que, como en el caso de Kennedy, Bill Clinton cayese asesinado. “Pensé que el odio que Clinton y su mujer estaban generando en sectores del pueblo americano podía terminar en un intento de asesinato”, comenta. “Pasó lo mismo con John F. Kennedy. Los Kennedy también creaban a su alrededor esa clase de histeria, y, aunque los Clinton son mucho más inocentes, generan el mismo odio y una especie de rabia en un país donde cualquiera tiene en su casa una pistola”.

En opinión del sarcástico e implacable Gore Vidal, “cualquiera que no odie a los negros será odiado por un tercio de la población de Estados Unidos. Y Clinton los defiende. Ese sector también odia a las mujeres que se salen del tiesto, como Hillary Clinton, que es demasiado brillante para ellos. Como dijo una vez uno de la derecha dura: ‘Es la primera dama de cualquiera”. Y respecto a las posibles aspiraciones presidenciales de su pariente, Al Gore, Vidal afirma: “Tiene la ambición de Cromwell. Pero van a ser cuatro años terribles porque el imperio se está cayendo a trozos”. Y ofrece como datos significativos el endeudamiento del país, la falta de control de las armas, el mínimo gasto educativo v el fracaso de la cultura.

Vidal se ha hecho célebre por su mordacidad, su frialdad y sus broncas. En una ocasión Norman Mailer le tiro el líquido de un vaso a la cara y le dio un puñetazo, y su enemistad con Truman Capote, al que llama cara de feto en el libro, es legendaria -se le atribuye la siguiente frase cuando le comunicaron su muerte: ‘Ése fue un buen paso en su carrera’- En una fotografía del libro aparecen Capote, Tennessee Williams y él. “No podía soportar a Capote”, dice Vidal. “Mentía acerca de todo, la mentira era su forma de expresión artística. Podías ver cómo se lo inventaba todo sobre la marcha, sobre todo si se trataba de gente famosa.si hubiera tenido la mitad de imaginación para su obra de ficción hubiera sido un novelista importante. Comencé a evitarlo cuando supe que se dedicaba a extender mentiras sobre mí. Por el contrario, fui muy amigo de Tennessee. Gran clase. Viajábamos, reíamos… Pero se volvió loco a base de píldoras y alcohol”.

El índice de Una memoria, titulado en inglés Palimpsest, está plagado de nombres famosos con los que Gore Vidal despliega su cinismo, su humor despiadado y, a veces, como en el caso del filósofo George Santayana, su admiración y cortesía. El escritor pide que no se tome demasiado en serio a los miembros de la generación beat, por ejemplo, pese a que tienen capítulo propio en las memorias. “Fue un fenómeno basado realmente en el extraordinario don de Allen Gingsberg para la publicidad”, dice. “Allen pensaba que yo tenía demasiado éxito y que no encajaba. Pero lo cierto es que yo estaba demasiado ocupado con el sexo y la literatura, sin tiempo suficiente para ir conduciendo coches a través del país. Kerouac era un hombre dulce, aunque un mal bebedor que se acabó matando por eso. Era horriblemente estúpido, verdaderamente estúpido, pero tenía ese adorable don de la frescura. He releído En la carretera y es dulce como el trabajo de un niño: sus ojos están abiertos, se siente bien, está enamorado de Neal Cassady… Este último hecho nunca ha podido ser aceptado por ninguno de los críticos que lo han colocado en la columna de los heterosexuales. Por eso he tenido que ocuparme en mis memorias [Vidal narra su encuentro sexual de una noche con Kerouac] de sacarlo de esa columna y de ponerlo en la que realmente le corresponde, que es en la otra o en ambas a la vez. Era un espíritu libre”



Amor, sexo, amistad
“El amor es un tema sobre el que no pienso demasiado, y diría que los imbéciles que he conocido hablaban del amor en grandes términos”, afirma Gore Vidal. “Cada vez que alguien empieza a hablar de amor verdadero saco el revólver y disparo. Hay sexo y amistad, y éstas son las dos únicas cosas que me interesan. Nunca sé de qué habla la gente cuando habla de amor. Ni ellos tampoco. Lo saben cuando hablan de sexo, pero no lo quieren admitir. O cuando hablan de poder, de la manera de usar el poder de las apariencias y de su posición con respecto a los demás seres humanos”.

Pese a este duro comentario, en el libro de Gore Vidal hay un leit-motiv: un joven jugador de béisbol rubio y de ojos azules llamado Jimmie Trimble con el que Vidal se masturbaba en la adolescencia. Trimble murió asesinado en la II Guerra Mundial. “Sí, es una declaración de amor”, dice Gore Vidal. “Pero me ha costado casi 70 años darme cuenta”, añade con escepticismo. “No he pensado en ello prácticamente en todo este tiempo, aunque ha estado ahí, en la parte de atrás de mi cerebro”.

Gore Vidal se reconoce en una palabra: pansexual. Se jacta de la promiscuidad sexual que ha practicado, y añade que siempre la ha recomendado “hasta que llegó el sida”. “Gracias a Dios”, continúa, “he vivido antes de los tiempos del sida, y desconozco lo que pasa por las mentes de los jóvenes ahora, si están aterrorizados por el sexo cuando deberían estar practicándolo todo el tiempo. En mi época coincidí con varios que tenían una cosa en común conmigo: la promiscuidad total. Uno era Kennedy, otro Brando, Tennessee Williams y yo. Nos conocíamos, éramos de la misma edad, vivimos una época maravillosa, no parábamos”.

Se lo perdieron

“La sífilis fue barrida en los cuarenta y desde entonces hasta los ochenta ha habido al menos 40 años espléndidos”, continúa. “¡Lo siento por los que se lo perdieron!”Gore Vidal se enfrentó a “la dictadura heterosexual” de América a los 23 años. Su libro La ciudad y el pilar, de 1948, trataba “sobre la fundamental naturalidad, mejor dicho, normalidad, de la homosexualidad”. Poco después apareció el informe Kinsey, “donde se descubrió que el 37% de los americanos varones habíamos practicado el sexo con otros hombres”, dice. “Esto cayó como una bomba en Estados Unidos. Como también cayó como una bomba La ciudad y el pilar, porque trataba de chicos normales enamorándose y disfrutando del sexo. ¡No era posible, tenían que ser locas, tenían que ser peluqueros, era imposible entre los soldados! Tuvo críticas malas pero fue un gran éxito y un gran escándalo. Y tres meses después llegó el doctor Kinsey diciendo lo mismo. Todo el país se quedó de piedra y un intelectual -en América no tenemos muchos y de los que hay muy pocos son buenos- se preguntó: ‘¿Y dónde está el amor en el informe Kinsey?’ Y el doctor Kinsey respondió: ‘Yo no mido el amor sino las eyaculaciones”.

Algo de novo na Terça-Feira Negra

18 de setembro de 2001

Gore Vidal – Folha SP

Segundo o Corão, foi terça-feira que Alá criou as trevas. No dia 11 de setembro, quando pilotos suicidas lançaram aviões de carreira americanos contra pontos arquitetônicos significativos, não precisei afastar os olhos da televisão e procurar um calendário para saber que dia era: a Terça-Feira das Trevas tinha lançado sua sombra sobre Manhattan e ao longo do rio Potomac.

Tampouco me surpreendi ao saber que, apesar dos aproximados US$ 7 trilhões que gastamos desde 1950 naquilo que é eufemisticamente descrito como nossa “defesa”, nenhum aviso antecipado foi dado pelo FBI, pela CIA, pela Agência de Inteligência de Defesa ou por qualquer outro organismo, e que nenhum caça americano se ergueu à altura da ocasião, a não ser que, como dizem os boatos, caças americanos tenham abatido a aeronave que se chocou com o Pentágono e a que caiu perto de Pittsburgh.

Embora nosso governo tenha por hábito atribuir a culpa às pessoas erradas, a impressão que se teve é que, desta vez, tinha acertado, pelo menos em parte: o bilionário saudita, educado em Harvard e ocasional residente no Afeganistão Osama bin Laden passara a perna em nós. Enquanto os seguidores de Bush se atropelavam para preparar a que seria a antepenúltima das guerras -mísseis lançados pela Coréia do Norte e claramente marcados com bandeiras desse país choveriam sobre Portland, Oregon, mas seriam interceptados pelos balões de nosso escudo antimísseis-, o astuto Bin Laden sabia que só precisava de pilotos dispostos a cometer suicídio e matar os passageiros que por acaso estivessem a bordo dos aviões comerciais que sequestrariam. Assim, algo de novo realmente aconteceu sob o sol da Terça-Feira Negra.

Minha irmã, que vive em Washington, tinha uma amiga que estava a bordo de um daqueles aviões. Sem perder a calma, a amiga ligou para seu marido no celular. “Fomos sequestrados”, informou. Em seguida, passou a descrever seus últimos minutos de vida, enquanto o avião se atirava contra o quinto lado do Pentágono. Era o aniversário do marido. Sempre tivemos civis sábios e corajosos. São os militares, os políticos e a imprensa que nos deixam preocupados. Afinal, não nos deparamos com bombardeiros suicidas desde os camicases, como os chamávamos no Pacífico na época em que eu era soldado na Segunda Guerra Mundial. Naquela época, nosso inimigo era o Japão. Hoje, temos Bin Laden, os muçulmanos, os paquistaneses…

O telefone não pára de tocar. Moro ao sul de Nápoles, na Itália. Editores, televisões e rádios italianas querem comentários. Eu também quero. Recentemente escrevi sobre Pearl Harbor.

Agora me fazem a mesma pergunta, repetidas vezes: o que aconteceu não foi exatamente como a manhã do domingo 7 de dezembro de 1941? Não, não foi. Não tivemos aviso prévio do ataque da terça-feira passada -pelo que estamos sabendo até agora. Nosso governo tem muitos e muitos segredos dos quais nossos inimigos sempre parecem ter conhecimento de antemão, mas dos quais nós mesmos só ficamos sabendo anos mais tarde. O presidente Roosevelt provocou os japoneses para que nos atacassem em Pearl Harbor. No livro “A Era Dourada”, eu descrevo os vários passos que ele seguiu para isso. Hoje, sabemos o que ele tinha em mente: sair em socorro da Inglaterra para combater o aliado do Japão, Hitler. Mas o que será que Bin Laden tinha -ou tem- em mente?

Há várias décadas vem ocorrendo na mídia americana um processo implacável de satanização do mundo muçulmano. Como sou um americano leal, não posso lhe dizer por que isso vem acontecendo -mas o fato é que não temos o hábito de analisar por que qualquer coisa acontece, a não ser que seja para atribuir a outros a culpa por nossos erros. Num mundo em que o demônio está constantemente à espreita, andando para cima e para baixo e nos atormentando por sermos tão bondosos, nossa imprensa quer que acreditemos que Bin Laden é simplesmente mais uma manifestação do mal puro e simples, de modo que somos obrigados a invocar a cláusula cinco da Otan e detonar todos os diabos que lhe deram abrigo, para ensinar a eles a única lição que nós mesmos jamais aprendemos: que na história, assim como na física, não existe ação sem reação.

A administração Bush, embora se mostre estranhamente inepta em tudo menos em sua tarefa principal, que é isentar os ricos de pagar impostos, vem casualmente rasgando os tratados subscritos pelos países civilizados, coisas como o Protocolo de Kyoto ou o acordo sobre mísseis nucleares que tínhamos com a Rússia. Enquanto os bushitas levam adiante seu saqueio implacável do Tesouro e da Seguridade Social (um fundo cujos recursos são supostamente intocáveis), eles vêm deixando o FBI e a CIA ou fazer o que bem entendem ou não fazer absolutamente nada -um pouco como o Mágico de Oz fazendo seus engraçados truques de mágica de faz-de-conta, enquanto torce para que ninguém descubra que é tudo de mentirinha.

Para sermos justos, não podemos pôr toda a culpa de nossa incoerência no Ser Oval atual. Embora seus antecessores, de modo geral, tenham tido QIs mais altos do que o dele, também eles trabalharam assiduamente para o 1% da população que é dona do país, enquanto deixavam todo o resto se virar sozinhos. Bill Clinton foi especialmente culpado. Embora tenha sido de longe o presidente mais hábil desde Franklin Delano Roosevelt, Clinton, em sua busca frenética por vitórias eleitorais, armou o gatilho do Estado policial que seu sucessor deve, neste exato momento em que escrevo, estar se preparando para apertar.

Estado policial? Como assim? Em abril de 1996, um ano depois do atentado de Oklahoma, o presidente Clinton aprovou a lei antiterrorismo, uma chamada “lei de conferência”, para a qual contribuíram muitas mãos bastante sujas, incluindo as do líder da maioria no Senado, Bob Dole, que foi o co-patrocinador dela. Embora Clinton tenha feito muitas coisas desavisadas e oportunistas para vencer eleições, ele raramente disse alguma coisa desavisada. Sua legislação sobre o terrorismo autoriza o secretário de Justiça a utilizar as Forças Armadas contra a população civil, com isso anulando a lei Posse Comitatus, de 1878, que proibiu para sempre o uso da força militar contra nossa população. O habeas corpus, cerne da liberdade anglo-americana, também pode ser suspenso se for considerado que há um terrorista entre nós. Irritado com as críticas expressas por grupos e indivíduos apegados à Constituição, Clinton denunciou seus críticos como sendo “pouco patrióticos”. Depois, envolto na bandeira nacional, falou do trono: “Não há nada de patriótico em fazer de conta que se pode amar o país, mas desprezar seu presidente”. É uma afirmação estarrecedora, já que pode ser aplicada a toda a população, em algum momento ou outro. Em outras palavras, seria pouco patriótico o alemão que tivesse dito que odiava a ditadura nazista?

A Terça-Feira Negra já está impondo tensão considerável à nossa sociedade cada vez mais militarizada. Na década de 1970, o FBI se reinventou: de um corpo de “generalistas” treinados em direito e contabilidade e vestindo terno, gravata e camisa branca (por surpreendente que possa ser, J. Edgar Hoover seguia a linha civil), transformou-se num exército de guerreiros da linha “Armas e Táticas Especiais” (também conhecidos como SWAT), que gostam de vestir uniformes de camuflagem, roupas pretas de ninja e, dependendo da tarefa, máscaras de esqui.

No início dos anos 80 foi formada uma superequipe SWAT do FBI, a Equipe 270 de Resgate de Reféns. Como tão frequentemente acontece nos Estados Unidos, esse grupo se especializava, não em libertar reféns ou salvar vidas, mas em lançar ataques assassinos contra grupos que não aprovava, muitas vezes por serem excessivamente independentes, como foi o caso da seita religiosa Ramo Davidiano -cristãos evangélicos que viviam pacificamente em seu complexo próprio em Waco, Texas, até que uma equipe SWAT do FBI, equipada com tanques ilegais do exército, matou 82 deles, incluindo 25 crianças. Isso aconteceu em 1993.

Agora, desde a terça-feira passada, as equipes SWAT já poderão ser usadas para perseguir árabes-americanos suspeitos ou, na realidade, qualquer pessoa que possa ser culpada de terrorismo, um termo que não tem definição legal (como se pode combater o terrorismo suspendendo o habeas corpus, se aqueles que querem ter seus corpus libertados da prisão já se encontram presos?). Mas, no clima de trauma pós-Oklahoma, Clinton disse que aqueles que não estavam a favor de sua legislação draconiana eram conspiradores aliados aos terroristas, interessados em transformar a América “num lugar seguro para terroristas”. Se Clinton, que tinha a cabeça tão fria, foi capaz de se enfurecer a tal ponto, o que podemos esperar do superesquentado Bush, depois da terça passada?

Embora a população americana não tenha meios diretos de influir sobre seu governo, suas opiniões de vez em quando são colhidas por meio de amostras, em sondagens de opinião. De acordo com uma sondagem da CNN e da “Time” de 1995, 55% dos americanos acreditam que “o governo federal se tornou tão poderoso que ameaça os direitos dos cidadãos”.

O “The New York Times” é o principal veiculador das opiniões recebidas do empresariado americano, e, além disso, é um barômetro mais preciso dos estados de ânimo de nossos governantes do que, digamos, o “The Wall Street Journal”, que sofre de deficiência editorial. Mesmo assim, todos as colunas de editorial publicadas pelo “NYT” desde 12 de setembro têm errado o alvo, por pouco. Desconfio que a cobertura da televisão já nos tenha deixado esgotados a todos nós, menos o sensato conservador que é Anthony Lewis. Aquelas imagens de fogo e explosão teimam em se reformar diante de nossos olhos, mesmo quando não há um tubo catódico por perto para transmiti-las.

Sob o cabeçalho “Exigências da Liderança”, o “NYT” se mostra otimista, por assim dizer. Tudo vai sair bem se o senhor trabalhar duro e não deixar sua atenção se desviar da bola, senhor presidente. Aparentemente Bush “está enfrentando múltiplos desafios, mas sua tarefa mais importante é uma simples questão de liderança”. Graças a Deus. Não apenas só é preciso liderança, como isso é simples ao extremo. Por um instante eu tinha chegado a temer… Em seguida o “NYT” fala das coisas da maneira como se apresentam, em oposição a como deveriam se apresentar. “A administração passou boa parte do dia de ontem tentando superar a impressão de que Bush teria manifestado fraqueza quando deixou de retornar a Washington após o ataque terrorista”. Mas, pelo que pude perceber, ninguém se preocupou muito com isso. A maioria de nós se sentiu até um pouco mais segura com Bush em seu bunker em Nebraska. O “NYT” tranquiliza Bush, dizendo que ele não será forçado a aceitar democratas em seu gabinete, como fizeram alguns presidentes em tempos de guerra -e pronto. Aí está. Simplesmente atirado ali no meio, como que por acaso. “Em tempos de guerra”. Pacientemente, o jornal põe os pingos nos is, para Bush e para nós. “Nos próximos dias, é possível que Bush peça à nação que dê seu respaldo a ações militares que muitos cidadãos poderão achar alarmantes. Ele precisará mostrar que sabe o que está fazendo.” Assim fica fácil. Pena que FDR não recebeu cartas desse tipo de Arthur Krock, do velho “NYT”.

“Aliados contra o Terror” é o próximo editorial com título. Aparentemente, precisamos de aliados. “Como seu pai na Guerra do Golfo, ele terá que construir uma coalizão de nações dispostas a agir.” Ótimo conselho. Ele também deve encontrar um jeito de fazer com que esses aliados paguem por uma guerra que será travada pelo bem da Humanidade Inteira. Bush, pai, teve trabalho para convencer outros a ajudar a pagar a conta de sua guerra da CNN. Os japoneses tiveram a ousadia de reclamar da taxa de câmbio. Azar deles -basta ver o que aconteceu com o iene.

Quando a semana chegou o fim, paquistaneses de cabelos tingidos e olhos furtivos já estavam sendo interrogados pela CNN porque, de maneira ameaçadora, o Paquistão hoje atua como patrono extra-oficial do Taleban. “Acredita-se que o Taleban dá guarida ao mais perigoso terrorista internacional, Osama bin Laden.” Foi preciso muita coragem para publicar isso, “NYT”. Mas parece que se encaixa bem com o que vocês andam repetindo. “Washington deixou claro ontem que sua paciência com o Paquistão está se esgotando rapidamente.” Coitado do Paquistão. Eu é que não gostaria de estar em seu lugar.

Próximo editorial: “A Defesa Nacional”. “A luta contra o terror precisa se deslocar da periferia para o centro do planejamento e das operações de segurança nacional americanas. Ninguém está sugerindo que isso seja tarefa fácil ou que custe pouco, mas, com os quase US$ 30 bilhões que Washington gasta com espionagem, o país deveria saber mais sobre as redes do terror e suas conspirações. Se mais dinheiro puder ser investido com finalidades úteis…” “Os americanos precisam repensar como proteger o país sem abrir mão dos direitos e dos privilégios da sociedade livre que defendemos.” Verdade, verdade.

“Terceira Guerra Mundial”, de Thomas L. Friedman, é otimista. Friedman é muito jovem e ainda não viveu sua guerra. Mas, pensando bem, com a exceção de Colin Powell e dois ou três senadores, os membros da administração e os parlamentares, apesar de todos serem adeptos da retórica militar, são pessoas que só ficaram em casa. A região que Friedman cobre é o Oriente Médio, e muitas vezes o que ele escreve sobre o assunto é interessante. Das vozes erguidas no “NYT” na quinta-feira, apenas ele sugere que “o apoio que damos a Israel” desagrada aos árabes, mas, logo depois, ele passa a falar do ódio inato que os árabes nutrem por nossa hegemonia. De repente, de maneira desconcertante, ele berra: “Será que meu país realmente compreende que esta será a Terceira Guerra Mundial?”. A pergunta não é meramente retórica. “As pessoas que planejaram os atentados da terça-feira conjugaram alto grau de maldade com alto grau de gênio, com efeitos devastadores. E, a não ser que estejamos prontos para colocar nossas melhores cabeças para trabalhar para combatê-las -o projeto Manhattan da Terceira Guerra Mundial-, de maneia igualmente ousada, implacável e pouco convencional, vamos ter problemas sérios.” É a receita certa para mais problemas.

A coluna “O Novo Dia da Infâmia”, de William Safire, prevê que “o próximo ataque provavelmente não será conduzido com um avião sequestrado, eventualidade contra a qual, tarde demais, vamos nos precaver. É mais provável que seja um míssil nuclear comprado por terroristas ou um barril de germes mortíferos.” Finalmente, Anthony Lewis acha de bom aviso deixar de lado o unilateralismo de Bush para cooperar com outros países, para conter as trevas da terça-feira com a compreensão de suas origens, ao mesmo tempo em que deixamos de lançar provocações contra uma cultura que se opõe a nós e nossos arranjos. Lewis -coisa incomum para um colunista do “The New York Times”- defende a paz agora. Eu também. Mas a verdade é que ele e eu somos velhos e já estivemos lá. Valorizamos nossas liberdades, que estão desaparecendo em ritmo acelerado -à diferença dos patriotas exacerbados que andam batendo seus tambores na Times Square, conclamando todos para uma guerra total a ser travada pela América.

Gore Vidal, crítico mordaz del modo de vida americano, fallece a los 86 años

Eva Sáiz Washington 1 AGO 2012 – EL PAÍS


Gore Vidal, una de las figuras literarias de Estados Unidos más importantes, no solo por su heterogénea y prolífica obra creativa, sino por su capacidad para diseccionar con una elegante mordacidad la idiosincrasia de su país, falleció el 31 de julio en su casa de Hollywood Hills (California). El escritor tenía 86 años y no pudo superar una neumonía, según indicó su sobrino Burr Steers.

Dotado de una admirable capacidad narrativa, la primera vocación de Vidal no fue otra que la de dirigir su país. “La única cosa que siempre he querido hacer en mi vida es ser presidente”, dijo en varias ocasiones. Buena parte de esa inclinación política la cimentó desde la cuna. Su abuelo materno, con quien se crió tras la separación de sus padres cuando él tenía 10 años, era Thomas Gore, senador por Oklahoma, a quien Vidal solía leerle y servirle de guía cuando éste perdió la vista. La filosofía política de su abuelo, muy crítica con la deriva exterior e interna de EE UU, sin duda contribuyó a apuntalar su mordacidad con la actividad gubernamental. Además del pedigrí materno, conviene recordar que el padre del autor, Eugene Luther Vidal, fue director de Comercio Aéreo bajo el mandato de Franklin D. Roosevelt, y que él mismo era primo del presidente Jimmy Carter y del exvicepresidente Al Gore.

Pero la vocación política del autor no se quedó en meras intenciones. Vidal fue candidato del Partido Demócrata a la Cámara de Representantes por Nueva York en 1960 y trabajó para John F. Kennedy en el Comité Asesor de las Artes para la Presidencia, entre 1961 y 1963. En 1982, tras dos aventuras relacionadas con la fundación de partidos independientes, el escritor volvió a presentarse por la formación demócrata, esta vez, al Senado por California en 1982.

Aunque nunca dejó de estar involucrado en el ámbito político –criticó duramente la deriva imperialista y la política antiterrorista de los dos mandatos presidenciales de George W. Bush-, la literatura acabó imponiéndose a su vocación presidencial. Vidal publicó su primera novela, Williwaw –inspirada en su experiencia militar en los estertores de la II Guerra Mundial-, en 1946. Pero su punto de inflexión literario lo constituyó La ciudad y el pilar de sal, una historia de temática abiertamente homosexual, considerada autobiográfica y que obtuvo altas dosis de éxito equivalentes al escándalo que generó. The New York Times se negó a escribir las reseñas de sus siguientes trabajos que, por lo demás, se ahogaron en la indiferencia de los especialistas literarios y del público en general.
Además de por sus novelas, en Estados Unidos Vidal es reconocido por su actividad como ensayista y crítico, que desarrolló sobre todo en periódicos y publicaciones en el último cuarto del siglo pasado. Entre sus obras, a caballo entre la ficción y la realidad, destacan su trilogía histórico política, formada por Washington D.C. (1967), Burr (1973) y 1876 (1976), en las que reflejó su particular y muy personal visión de la historia de EE UU. En 1995 salió a la luz su libro de memorias, Palimpsesto, en el que recogió su amistad con colegas, como Norman Mailer, Truman Capote o Tennessee Williams, y otros iconos estadounidenses como Orson Welles, Frank Sinatra, Marlon Brando, Paul Newman, Joanne Woodward –con quien llegó a estar prometido- Eleanor Roosevelt y varios Kennedy, además de reconocer que, con 25 años, ya había mantenido más de 1.000 encuentros sexuales con hombres y mujeres.

Vidal no solo escribió novelas y ensayos, en 1954 optó por trasladarse a Hollywood y escribir para la industria como un modo para ganar dinero fácil. Entre 1956 y 1970, colaboró en siete guiones, entre ellos los de Ben Hur o De repente el último verano, que coescribió con Tennessee Williams. Él mismo también intervino como actor en varias películas como Roma, de Federico Fellini, Gattaca o Ciudadano Bob Roberts. Incluso tenía su propia versión animada en las series de dibujos Los Simpson y Padre de Familia.

Eugene Luther Vidal nació en West Point, Nueva York, el 3 de octubre de 1925 en el seno de una familia de antiguas raíces políticas. El único hijo de Eugene Luther Vidal y Nina Gore se cambió el nombre por Gore en homenaje a su abuelo materno, con quien se crió en Virginia, tras la separación de sus padres. Vidal estudió en la Escuela de Saint Albans, en Washington. Tras una breve temporada en Francia, el escritor regresó a EE UU donde se graduó en la Academia Philips Exeter, para enrolarse inmediatamente después en el Ejército, en 1943. Durante la II Guerra Mundial, fue destinado a las Islas Aleutianas. Antes de trasladarse a California definitivamente en 2003, Vidal residió largas temporadas en Italia.

Ensaios de Gore Vidal devassam o império e sua política

O escritor norte-americano Gore Vidal morreu nesta terça-feira (madrugada de quarta no Brasil), aos 86 anos, em sua residência em Los Angeles, nos EUA.

Leia abaixo a análise do jornalista Amir Labaki publicada na Folha de 28 de junho de 2001, em ocasião do lançamento do livro “The Last Empire Essays 1992-2000″ (O Último Império Ensaios 1992-2000).

FOLHA SP

Ensaios de Gore Vidal devassam o império e sua política

Há oito anos Gore Vidal venceu o prestigiado National Book Award americano com “United States Essays 1952-1992″ (Estados Unidos Ensaios 1952-1992), um catatau de 1.300 páginas reunindo 140 textos sobre cinema, política, história, literatura e, claro, Gore Vidal. É provável que seja esse, mais que qualquer de seus romances, o volume que lhe garanta um lugar no panteão dos homens de letras dos EUA do século 20.

Comparado à primeira coletânea, o recém-publicado “The Last Empire Essays 1992-2000″ (O Último Império Ensaios 1992-2000) mais parece um posfácio expandido. Contam-se 48 ensaios, resenhas e cartas publicados desde o aparecimento de “United States” até janeiro deste ano.

Além da evidente superioridade estrutural da primeira antologia, o Gore Vidal de “The Last Empire” parece mais repetitivo e dogmático, ainda que na maioria dos textos não faltem a argúcia e a inquietude esbanjadas em “United States”. Tudo somado, Vidal continua a ser um dos maiores ensaístas em atividade. Nada mais natural, assim, que mais uma vez busque a aproximação com o mestre do gênero nos EUA, celebrando Edmund Wilson (”Rumo à Estação Finlândia”) desta vez no ensaio de abertura (”Edmund Wilson, Homem do Século 19″).

Como Wilson, o Vidal maduro tempera cada texto com toques autobiográficos. “Ele dá certamente o seu melhor”, escreve Vidal de Wilson, “quando ele volta suas luzes para uma figura literária a quem conhecia e então como que caminha em torno dela”.

Os ensaios de “The Last Empire” foram todos escritos sob o signo de Edmund Wilson (1895-1972). A tese básica de Vidal, a dos EUA como “o último grande poder global” numa era de crescente “irrelevância” do “Estado-nação” como o forjado pelo capitalismo moderno, é um desenvolvimento quase em linha reta de um dos textos mais polêmicos e menos conhecidos de Wilson, “The Cold War and the Income Tax” (A Guerra Fria e os Impostos, 1963). Nele, Wilson vinculava o aumentos dos impostos pessoais nos EUA do pós-guerra, em contraste com a declinante contribuição relativa das empresas, à voracidade do complexo industrial-militar justificado internamente pelo “Grande Satã” (Vidal) soviético.

O autor do recente “A Era Dourada” (Rocco, 512 páginas, R$ 41) reconhece a dívida explicitamente no ensaio que empresta título à nova antologia, publicado originalmente no recentemente revigorado “Vanity Fair” em novembro de 1997. “Desde 1941″, elabora Vidal, “quando Roosevelt tirou-nos da Depressão, bombear dinheiro federal em rearmamento, em tempos de guerra ou não, tem sido o principal motor de nossa sociedade”.

“Desde 1950″, desenvolve mais adiante, “a dominação de outros países tem sido exercida por meio da economia (o Plano Marshall depois da Segunda Guerra) e da presença militar, de preferência sutil (como a OTAN na Europa ocidental), e politicamente por meio de polícias secretas como a CIA, o FBI, o DIA etc.”.

Internamente, o jogo é outro. Vidal define a política americana como “um sistema de partido único (com duas alas de direita, uma chamada de democrata, outra de republicana)”, financiado pelo dinheiro das grandes corporações, que espertamente distribuem sua produção bélica pelo maior número possível de Estados a fim de garantir a simpatia dos deputados e senadores de cada região, leais assim a um crescente orçamento militar (previsto para US$ 329 bilhões em 2002, pouco menos que todo o orçamento brasileiro). Fecha-se o círculo, CQD, exulta Vidal.

O presidente democrata Harry Truman (1945-1953) surge como o grande arquiteto dessa estrutura e como vilão preferencial de “The Last Empire”. A seu lado, como continuadores, Vidal elenca, surpreendentemente, John Fitzgerald Kennedy (1961-1962), e, sem espanto, Richard Nixon (1969-1974), Ronald Reagan (1981-1989), o primeiro Bush (1989-1993) e o atual (2001).

No campo oposto, há espaço para poucos. Jimmy Carter (1977-1981) é solenemente desprezado, mas Vidal exibe uma crescente admiração por Bill Clinton (1993-2001), cujo embate contra Kenneth Starr e a inquisição Lewinsky são lidos como uma “conspiração reacionária” contra um raro presidente que ousou uma política de transferência, ainda que limitada, de recursos da indústria armamentista para o campo social.

Política é a obsessão deste experiente Gore, ocupando nada menos que três das quatro partes de “The Last Empire”, mas o volume reserva seu terço inicial para outras paixões. Vidal abre a temporada de revalorização dos romances de Sinclair Lewis (1885-1946), defende Mark Twain (1835-1910) da sanha “politicamente correta”, bate continência às artes de Thomas Mann (1875-1955), Anthony Burgess (1917-1993) e do grande poeta grego C. P. Cavafy (1863-1933) e chora a morte de Sinatra. Entre as baixas, a mais contundente é a da reputação de John Updike como romancista (”agarrado à facilidade”), a partir de uma leitura devastadora de “Na Beleza dos Lírios” (Companhia das Letras, 1997).

Por estas e por outras que, se as reedições de Lewis se avolumarem, críticas menos condescendentes a Updike surgirem, ataques ao mito JFK se sucederem, e o ex-vice e provável recandidato Al Gore, em 2004, repetir o ex-vice e depois presidente Nixon, em 1968, ao se vingar de uma derrota eleitoral infligida à contrapelo da lei, todos podem culpar Vidal.
Edmund Wilson era impulsivo e idiossincrático, mas não um polemista e jamais kamikaze. Este é Gore Vidal, certo ou errado, homem do século 20.