sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Amores perros

Con el fin del año ha llegado a Lima una extraordinaria novela. El hombre que amaba a los perros, del cubano Leonardo Padura (Tusquets, Buenos Aires, 2011) le da un giro contemporáneo a la conocidísima historia del asesinato de León Trotsky en México a manos de un agente infiltrado en su círculo íntimo por José Stalin, 1940.



Parte del giro está en que el narrador es un cubano que vive en La Habana, presenta al lado del relato histórico su propia vida diaria en la dictadura burocrática contemporánea de los hermanos Castro, y expresa una suerte de simpatía objetiva hacia el lado humano de Trotsky, la víctima de esta historia.



El otro giro es que se trata de una obra de tema político deliberadamente escrita en la forma de una novela de serie negra policial. Padura no omite los contenidos de la enemistad Stalin-Trotsky, pero el tema central es la cacería misma, evocada desde los años 80 como un secreto peligroso, acaso por estar el narrador en Cuba.



El último cubano célebre que narró el asesinato de Trotsky fue Guillermo Cabrera Infante. Su novela Tres tristes tigres (1964) presenta una parodia de cómo tratarían el tema diversos escritores cubanos. Entonces evocar los crímenes de Stalin era una provocación en la isla, aun si el XX Congreso desestalinizador del PCUS había sido ocho años antes.



Hoy las cosas son diferentes. El autoritarismo del régimen cubano nunca ha podido, y en verdad tampoco querido, ni remotamente competir con la vesania del alcohólico Stalin y sus ejecutores. Padura se las ingenia para reconocer esto y a la vez para tender un largo arco de relación entre el horror soviético y las playas tropicales.



Es inevitable que el lector llegue a la conclusión de que todo sistema staliniano, radical o moderado, necesita uno o varios Trotskys para mantener las cosas en su sitio. Los hermanos Castro se libraron de sus críticos y detractores muy temprano, con eficacia y sin la truculencia del colega georgiano. Pero la comparación llegará tarde o temprano.



El libro tiene el ritmo y la estructura de las policiales modernas, y esok inevitablemente influye en nuestra percepción del célebre asesinato. Lo que suele ser presentado como una pugna ideológica aquí aparece sobre todo como la conspiración de un asesino compulsivo, que empieza devorando fichas y termina comiéndose el tablero mismo.



Por eso si bien hay en el texto un Stalin infame, no hay en cambio un Trotsky heroico (el tiempo de la novela empieza después de su caída en desgracia). La naturaleza de la víctima rara vez es relevante en el discurso de la serie negra; es la mentalidad del protagonista lo que nos hace avanzar en la lectura

Por: Mirko Lauer – La República





quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

“Como o interior do trem não era muito claro, aquele espelho não era tão nítido quanto deveria ser. Ele não refletia bem as imagens. Por isso, enquanto Shimamura olhava compenetrado, foi se esquecendo da existência do espelho e começou a pensar que a moça flutuava na paisagem do entardecer.
Foi nesse momento que os raios de sol, já tênues, iluminaram o rosto dela. O reflexo do espelho não era suficiente para apagar a claridade de fora, nem esta, forte o bastante para ofuscar a imagem refletida no espelho. A claridade passava como um relâmpago pelo seu rosto, mas não era suficiente para iluminá-lo. A luz era fria e distante. No momento em que o contorno de sua pequena pupila foi se iluminando, como se os olhos da moça e a luz se sobrepusessem, seus olhos se tornaram um vaga-lume misterioso e belo que pairava entre as ondas da penumbra do cair da tarde.” (p. 15)
O PAÍS DAS NEVES
Yasunari Kawabata

Tradução de Neide Hissae Nagae
“Da janela do trem, avistava uma larga avenida com altas árvores que despontava logo após a estação Yurakucho e se estendia até a estação de Tóquio, cruzando de leste a oeste a linha do trem. Naquele momento, o asfalto refletia o pôr-do-sol tal qual um cinturão de metal radiante. Contudo, as árvores estavam à contraluz e apenas insinuavam-se suas silhuetas. As sombras pareciam frescas. Os galhos se expandiam para todos os lados, cobertos de folhas. Em ambas as calçadas, havia sólidas mansões de estilo ocidental. Estranhamente, poucas pessoas passavam por ali. Não havia viva alma até bem próximo do fosso do Palácio Imperial. Nem carros havia no asfalto que refletia a luminosidade. Observando de dentro daquele trem lotado, o lugar parecia estar suspenso no entardecer de algum mundo além da imaginação. Havia uma atmosfera estrangeira em tudo.” (p. 63)

MIL TSURUS
Yasunari Kawabata

Tradução de Drik Sada
“O verniz arranhado daquele vaso antigo deixava semi-aparente a assinatura da peça, ‘Soutan’, que também estava presente na caixa onde ele era guardado. Caso fosse autêntica, a cabaça teria cerca de trezentos anos. Kikuji não conhecia as flores usadas na cerimônia do chá, tampouco sua criada o sabia. Apesar disso, aquela bela-da-manhã parecia ideal a uma cerimônia das primeiras horas do dia. Ficou a observar o arranjo por algum tempo. Que fascinante era ver aquele ramo de vida tão efêmera dentro de uma cabaça tão antiga! Aquela singela flor combinaria melhor com o mizusashi de Shino que o ramalhete de estilo ocidental que comprara? Quanto tempo poderia durar num vaso uma bela-da-manhã? Kikuji sentiu certa inquietude ao pensar na sua fugacidade.” (p. 112)

MIL TSURUS
Yasunari Kawabata

Tradução de Drik Sada
“A peça era exatamente como Fumiko havia descrito ao telefone naquela manhã. Seu esmalte branco apresentava um leve toque avermelhado. Observando-o por algum tempo, parecia que aquela tonalidade rubra emergia de dentro do branco. Toda a borda era ligeiramente amarronzada, havendo apenas uma faixa mais escura. Seria ali onde a boca tocava? A bebida bem podia ter-lhe tingido a borda, ou então, seriam os lábios de alguém que a maculara. Aquela suave mancha marrom, à medida que era olhada, começava a parecer rosa. Seria mesmo a marca de batom da viúva impregnada na cerâmica, como Fumiko lhe contara? Kikuji também reparou numa coloração marrom-avermelhada nas trincas naturais da cerâmica. Era um tom parecido com o de um batom desbotado, uma rosa vermelha murcha... Mas quando o associou a uma mancha seca de sangue, sentiu-se enjoado. Tinha a sensação de um embrulho no estômago mesclado a uma certa sedução que o fascinava.” (p. 128-9)

 MIL TSURUS
Yasunari Kawabata

Tradução de Drik Sada
“Ele só havia visto Yukiko duas vezes. A primeira, na cerimônia do chá no templo Engakuji, quando Chikako levara a jovem a fazer uma demonstração, com a função de exibi-la a ele. Durante o preparo do chá, seus gestos eram simples e elegantes. Kikuji ainda trazia fresca na memória a imagem dos ombros e das mangas do quimono de Yukiko, bem como de seus cabelos, iluminados sob a divisória de papel-arroz por onde se projetavam suavemente as sombras das árvores próximas. Só não conseguia recordar-se muito bem de suas feições. Já o fukusa vermelho e o lenço de tsurus brancos que a jovem levava quando se dirigia à sala de chá eram-lhe vivas lembranças.” (p. 144)

MIL TSURUS
Yasunari Kawabata

Tradução de Drik Sada
“Os cedros da aldeia de Kitayama eram todos administrados por pequenos empresários. Contudo, nem toda família era dona de terra. Pelo contrário, poucos o eram. Chieko cogitava se seus pais também teriam sido empregados de alguma família proprietária. A própria Naeko dissera: ‘Estou trabalhando para...’ Tudo havia acontecido vinte anos antes. Chieko teria sido abandonada porque, na época, ter filhos gêmeos era considerado uma vergonha, além do que se acreditava na dificuldade de criá-los com saúde. Era possível que tivessem se preocupado também com os escassos rendimentos da família. Chieko esquecera de perguntar três coisas a Naeko. Por que abandonaram a ela e não a irmã? Quando ocorrera o acidente do pai, sua queda do alto do cedro? Naeko dissera ser ‘recém-nascida’ na época, no entanto... Havia dito também ter nascido na casa do avô materno, um lugar bem mais remoto do que a aldeia dos cedros. Nesse caso, qual seria o nome do lugar?” (140-1)

KYOTO
Yasunari Kawabata

Tradução de Meiko Shimon
“Suas lindas e intensas pupilas negras encerradas em seus grandes olhos eram de rara beleza. Suas sobrancelhas também eram belas. Lembrava uma flor sorrindo. Exatamente: uma flor sorrindo era a melhor definição.” (p. 37)

A DANÇARINA DE IZU
Yasunari Kawabata
“Quando se deitavam em contato com a nudez da jovem mulher, os sentimentos que ressurgiam do fundo do seus âmagos talvez não fossem apenas o medo da morte que se aproximava ou o lamento pela juventude perdida. Talvez houvesse neles também certo arrependimento pelos pecados cometidos, ou pela infelicidade no lar, coisa muito comum nas famílias dos vencedores. Decerto os velhotes não possuíam seu Buda, diante do qual pudessem ajoelhar-se e orar. Por mais que abraçassem fortemente a bela desnuda, derramassem lágrimas frias, se desmanchassem em choro convulsivo ou berrassem, a garota nada ficaria sabendo e jamais acordaria.” (p. 80)
A CASA DAS BELAS ADORMECIDAS
Yasunari Kawabata

Tradução de Meiko Shimon
Poder-se-ia dizer que o mestre sofreu na última partida de go de sua vida com o racionalismo da modernidade, que tornou tudo rigorosamente amarrado em meticulosas regras; com isso, a graça e a elegância dessa arte tornaram-se artigos obsoletos, o respeito e a consideração aos superiores foram esquecidos, e nem ao menos há o mútuo apreço como seres humanos. (p. 67)
              
O MESTRE DE GO
Yasunari Kawabata

Tradução do japonês: Meiko Shimon
Diante do tabuleiro, a tensão entre o mestre e Otake se manifestava de modos opostos: calma contra agitação, indiferença contra nervosismo. Imerso no mundo do go, o mestre não mais deixava o tabuleiro. Para um profissional, basta ver a postura ou a expressão de seu adversário para saber se a situação da partida será favorável ou não; mas dizem que isso não se aplica no caso do mestre Shusai. (p. 56)

O MESTRE DE GO
Yasunari Kawabata

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

• Toda minha vida, tive o sentimento de estar distante de meu verdadeiro lugar. Se a expressão “exílio metafísico” não tivesse nenhum significado, minha existência sozinha forneceria um a ela.

(Emil Cioran)

domingo, 18 de dezembro de 2011

Silêncio, fale comigo

Silêncio fale comigo
E ecoe o timbre da voz
Que já sussurrou promessas
Que se calou tão depressa
E assim se fez tão algoz

Silêncio fale comigo
Venham matear ao meu lado
Desperte esta placidez
Não fique assim tão calado
Fale comigo outra vez.

Cesar Tomazzini Liscano
Caminante, son tus huellas


el camino, y nada más;

caminante, no hay camino,

se hace camino al andar.

Al andar se hace camino,

y al volver la vista atrás

se ve la senda que nunca

se ha de volver a pisar.

Caminante, no hay camino,

sino estelas en la mar.



Português



Caminhante, são teus rastos

o caminho, e nada mais;

caminhante, não há caminho,

faz-se caminho ao andar.

Ao andar faz-se o caminho,

e ao olhar-se para trás

vê-se a senda que jamais

se há-de voltar a pisar.

Caminhante, não há caminho,

somente sulcos no mar.


Antonio Machado

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Dime


Dime por favor donde estás,
en que rincón puedo no verte,
dónde puedo dormir sin recordarte
y dónde recordar sin que me duela.

Dime por favor dónde pueda caminar
sin ver tus huellas,
dónde puedo correr sin recordarte
y dónde descansar con mi tristeza.

Dime por favor cuál es el cielo
que no tiene el calor de tu mirada
y cuál es el sol que tiene luz tan sólo
y no la sensación de que me llamas.

Dime por favor cuál es el rincón
en el que no dejaste tu presencia.
Dime por favor cual es el hueco de mi almohada
que no tiene escondidos tus recuerdos.

Dime por favor cuál es la noche
en que no vendrás para velar mis sueños...
Que no puedo vivir porque te extraño
y no puedo morir porque te quiero.

Jorge Luis Borges

A Traição




quando do cavalo de tróia saiu outro
cavalo de tróia e deste um outro
e destoutro um quarto cavalinho de
tróia tu pensaste que da barriguinha
do último já nada podia sair
e que tudo aquilo era como uma parábola
que algum brejeiro estivesse a contar-te
pois foi quando pegaste nessa espécie
de gato de tróia que do cavalo maior
saiu armada até aos dentes de formidável amor
a guerreira a que já trazia dentro em si
os quatro cavalões do vosso apocalipse.

Alexandre O’Neill

sábado, 26 de novembro de 2011

Um olhar sobre as raízes da narrativa Latino-Americana

Livros e fotos emolduradas com escritores como Julio Cortázar (1914- 1984) disputam cada metro quadrado da parede do escritório no Departamento de Literatura, habitado pelo “segundo melhor crítico” da Universidade de Yale. O epíteto foi conferido pelo amigo e colega Harold Bloom. Será necessário dizer que Bloom, jamais acusado pelo crime de modéstia, reservou para si a vaga do primeiro lugar? Roberto González Echevarría sorri curioso com a presença da repórter, como se o reconhecimento de um livro de crítica literária com cinco edições em inglês, em 20 anos, ainda provocasse surpresa. Mesmo depois de ter recebido, em março, do presidente Barack Obama, a Medalha Nacional de Artes e Humanidades, em companhia de Philip Roth e Joyce Carol Oates. Ele se confessa feliz com a longevidade de Mito y Archivo – Una Teoría de la Narrativa Latinoamericana. Acaba de escrever Modern Latin American Literature: A Very Short Introduction (Literatura Latino-Americana Moderna: Uma Introdução Muito Curta), que será lançado em 2012. Echevarría começa o novo livro afirmando que se guiou pela “avaliação severa” de qualidade. “Avaliação é a menos admitida e uma das mais predominantes práticas em critica literária”, escreve. Para ele, o colombiano Fernando Vallejo e o chileno Roberto Bolaño (1953-2003) são dois romancistas que aproximaram a literatura latino-americana recente do lugar de proeminência que ocupou durante o boom dos anos 60. E aposta: “Sempre teremos a linguagem e as histórias, não importa o estilo da narrativa”.

O senhor ainda sustenta a tese de que o arquivo é uma fonte mais importante para a ficção latino-americana do que a origem tradicional do romance em outros continentes?

Sim. Comecei realmente a pensar na relação entre a lei e a origem da ficção ao escrever sobre o picaresco na Espanha no século 16. Ao mesmo tempo, estava refletindo sobre as crônicas da descoberta do Novo Mundo, porque eu ensinava e ainda dou cursos, tanto sobre a Idade de Ouro da literatura espanhola como sobre a literatura latino-americana colonial e moderna. Foi essa confluência fortuita que me levou a escrever o livro. E me ocorreu que La Vida de Lazarillo de Tormes y de Sus Fortunas y Adversidades, o romance anônimo de 1554, é um depoimento que um criminoso faz diante do juiz. Aquela primeira pessoa é muito parecida com a primeira pessoa em Hernán Cortés, quando ele escreve as suas Cartas de Relación. Foi quando me veio a ideia. Depois, comecei a estudar as origens de nova legislação na Espanha no século 16. Era difícil, especialmente para nós, latino-americanos, pensar na Espanha como um país moderno. Mas a Espanha teve a primeira monarquia moderna com os reis católicos, foi o primeiro Estado moderno e os monarcas reformaram a lei espanhola. A lei se tornou presente na Espanha do século 16. E os herdeiros reais criaram o primeiro grande arquivo do Estado em Simancas, perto Salamanca, num belíssimo castelo que havia se tornado uma prisão – e acabou como arquivo. Para mim, não há símbolo melhor da origem da ficção: castelo-prisão-arquivo. Daquela antiga prisão saiu Pícaro, o criminoso. Assim, os testemunhos de criminosos e dos conquistadores são as primeiras narrativas da América Latina. Elas foras escritas para o Arquivo. Claro que fui influenciado por teóricos como Michel Foucault, havia lido Vigiar e Punir. O fato é que não sou simplesmente um seguidor de teorias literárias, tento formular a minha própria. Reconheço que aprendi muito com Foucault, Derrida e outros, mas espero que esta seja minha contribuição para a teoria quando se trata de América Latina. E aprendi muito também com Jorge Luis Borges e Alejo Carpentier.

O senhor não prefere se ver como um fruto da influência da narrativa da ficção mais do que da teoria literária?

Sim, acho que quaisquer ideias que formulo vêm da leitura de ficção – Alejo Carpentier, por exemplo, que foi um dos meus professores, e acabei por escrever um livro sobre ele, The Pilgrim at Home: Alejo Carpentier. Lendo Los Pasos Perdidos, de Carpentier, tive ideias que se tornaram relevantes para escrever Mito y Archivo. Quando eu fazia pós-graduação em Yale, li O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar. Ali estava: a forma de um arquivo, capítulos que podiam ser rearranjados, textos que usam recortes de jornal como fonte. E, é claro, em Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, o arquivo é uma fundação do romance. O impacto de Cem Anos foi o mais importante para a elaboração de Mito y Archivo.

Pouco antes de Mito y Archivo ser concluído, O General em Seu Labirinto, de Márquez, foi lançado. Qual a importância disso?

Muito importante. Representou para mim mais um sinal de que estava no caminho certo. Porque ali está a figura do General Bolívar e a narrativa permitida por um arquivo de milhares de cartas.

O senhor se lembra quando primeiro usou a palavra arquivo como síntese da ideia do livro?

Não tenho certeza, mas gostaria de acreditar que fui inspirado pela etimologia da palavra – arch-ivo – mistério, origem. Architectura, construção que contém coisas. Desconfio que minha mente seja mais poética do que teórica.

Fale um pouco sobre a cumplicidade entre literatura e reportagem científica na América Latina, no século 19.


É o segundo momento, que veio depois do período da Lei, que estabeleceu mecanismos de narrativa. No século 19, tivemos a escrita produzida pelos exploradores científicos. Ela usava métodos que refletiam a emergência das ciências sociais, em conexão com as ciências naturais que deram origem à antropologia. Os Sertões, de Euclides da Cunha, é um livro que representa a quintessência desse fenômeno. Euclides viaja e descreve a paisagem; que livro fenomenal! E fiquei tão contente quando vi que Os Sertões inspirou Mario Vargas Llosa a escrever a Guerra do Fim do Mundo, que considero seu melhor romance.

O senhor afirma que, apesar de Euclides ter a intenção de se apoiar na tradição científica que se formava na época, ele perde o controle da própria perspectiva em Os Sertões.

Sim e acho que isso confere ao livro um molde profundamente literário. É um livro que dramatiza seu próprio fracasso ao tentar explicar Canudos. Isso, para mim, é a mais importante revelação e torna Os Sertões uma grande obra literária, além do que, suponho, o próprio Euclides imaginava. Só Guimarães Rosa descobriu a poética do sertão nesse nível. Mas Os Sertões é insuperável, umas das obras-primas da literatura.

E como o senhor vê Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, no contexto que chama de literatura da tradição antropológica?

É antropologia na medida em que mergulha na linguagem e nos mitos do sertão. Sempre me emociono com o fato de que Guimarães Rosa era um médico e aceitava que os pacientes pobres lhes contassem histórias como pagamento. Pode haver história mais bonita? Ele estava reunindo toda essa narrativa que forma Grande Sertão como um antropólogo. E a antropologia é o terceiro momento, depois da Lei e da exploração científica. O romance latino-americano moderno é essencialmente um projeto antropológico, com toda a poesia que existe na antropologia, como agora descobrimos com a antropologia pós-moderna.

Muitos consideram a prosa de Rosa, em sua invenção regionalista, à altura de Joyce.

Eu concordo plenamente com o argumento. O regionalismo, é claro, pode se tornar universal. Como dizia Miguel Unamuno, “lo universal en lo local”. O regionalismo de García Márquez não está preso a uma região específica, abraça toda a América Latina. E a comparação é justa: Rosa é um romancista tão bom quanto James Joyce, mas o português não tem a difusão literária do inglês. Ulisses é um romance regionalista e universal.

O senhor acha que sempre vamos ter a separação entre a literatura brasileira e a de língua espanhola?

A literatura brasileira é a mais rica do continente, depois da norte-americana, que é tremenda. Machado de Assis é o melhor escritor da América Latina no século 19. Mas, apesar da diferença de língua que nos separa, houve a fecundação cruzada. Nós somos quase os mesmos. Eu era muito amigo do Haroldo de Campos, que ensinava aqui, em Yale, quando eu fazia pós-graduação. Ele usou em um de seus poemas uma frase que eu tinha dito para o Severo Sarduy, também meu grande amigo. Estava na Flórida, uma vez, conversando com uma cubana exilada que havia pertencido à alta burguesia e agora tinha de trabalhar. Perguntei: “Senhora, é duro trabalhar?” Ela respondeu, “Ai, meu filho, trabalhar é a morte vestida de verde-jade”. Ela parecia ter escapado de um romance do Severo Sarduy! Mandei para o Severo, que usou como título de um capítulo de Colibri. Quando o Haroldo leu, adorou e escreveu o poema A Morte Vestida de Verde-Jade.

O que o senhor acha do argumento de que realismo mágico é uma vertente esgotada?

É o que grupos como McCondo e La Nueva Onda acreditam. E compreendo que a literatura precisa se renovar, o jovem deve matar o velho e tudo isso. Mas quando se fazem esses pronunciamentos esperamos que eles sejam seguidos por grandes obras literárias. E isso ainda não aconteceu. Você pode fazer gozação e dizer que a América Latina não é como Macondo, é globalizada, etc. Mas cadê o novo Cem Anos de Solidão? Macondo existe como a Londres de Charles Dickens ou a Paris de Proust.

Ao final do livro o senhor pergunta: Há narrativa além do arquivo?

Tenho pensado sobre isso (suspira). O mito do arquivo em romances como Cem Anos de Solidão se repetiu em outras ficções – menores, devo dizer. E a tentativa de fugir disso não me parece bem-sucedida na América Latina. As únicas exceções que me ocorrem citar são Fernando Vallejo e Roberto Bolaño. Noturno de Chile, do Bolaño é um romance maravilhoso.

Em outra pergunta o senhor especula se os sistemas de comunicação estão se tornando a nova fonte de narrativa.

Acho que sim e acredito até na transformação da leitura como uma experiência digital. O boliviano Edmundo Paz Soldán, que leciona em Cornell, escreveu, por exemplo, sobre hackers. A questão é, se além de tema, os novos sistemas estão afetando a forma da literatura. É bom lembrar que a mídia é uma outra forma de arquivo, inclusiva e onipresente. O Paz Soldán é um dos mais interessantes entre estes autores jovens. Um outro efeito dos sistemas de comunicação é que se lê menos. Os meus alunos em Yale, que estão entre os melhores do país, leram muito menos do que as gerações anteriores. Mas, no fim das contas, acho que a narrativa é como um fênix, sempre acaba por se erguer das cinzas. Por isso, fico tão feliz quando descubro um Roberto Bolaño. A literatura sempre se renova. Sempre teremos a linguagem e as histórias, não importa o estilo da narrativa.

Fonte : O Estado de S.Paulo. 26/11/2011

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Os cogumelos do Paraíso

Minha loucura

não tem complexo

nem de Édipo, nem de Electra,

nem de qualquer puro amor

que saia das artérias.



Vivo no paraíso dos cogumelos

dias tristes, dias alegres,

mas tudo é ilusão passageira,

só não passa nesta vida

a casca estrangeira.



O doce e o amargo

do sabor da tua língua

ficou no Caribe

lá nos Portos cheios de gozo

e de prostituição.



Os cogumelos do paraíso

são adubados com a maresia

e os marujos já não são mais fêmeas,

pois as fêmeas são eternos machos

depois da ceia que consome seus rabos.



Nós não temos nada,

se temos a vida

ela ainda nos deve a morte,

portanto tudo é ilusão

dias de trabalho, outros de ócio

dias de amor, outros de ódio,

e os cogumelos são adubados

para fabricar desejos,

e onde não há alucinação

não germina gente,

nem se fabrica coração.

Cristiane Neder

terça-feira, 22 de novembro de 2011

YO NUNCA ESTUVE EN CRETA

EU NUNCA ESTIVE EM CRETA




Mas quando despertei

tinha os pés molhados

de uma luz

que atravessa

a persiana

________zarpa

e, a estas horas banha

teu rosto que flutua

- esqueceste do Nivea -

sobre as listras verdes

do Egeu



Carmen Camacho/ tradução Ricardo Pozzo



YO NUNCA ESTUVE EN CRETA



Pero cuando desperté

tenía los pies mojados

de una luz

que atraviesa

la persiana

________zarpa

y a estas horas baña

tu cara que flota

—olvidaste la Nivea—

sobre el verde a vetas

del Egeu



Carmen Camacho

sábado, 19 de novembro de 2011

Divórcio

A gente se abraçava o tempo inteiro também porque precisava conservar a pele. Abraçava meus amigos e minha pele se prendia ao resto do corpo



por Ricardo Lísias

Dor e solidão são muito diferentes. Para me sentir realmente sozinho, preciso estar longe do meu país e não compreender nem uma palavra do que dizem. Nas poucas vezes em que senti uma dor muito intensa, estava perto das pessoas com quem convivo. A solidão pode não ser ruim. Uma vez, em uma ruazinha de Bonn, me senti muito sozinho, mas a vontade de chorar veio, estranhamente, da sensação de vitalidade que me invadiu. Estou longe de todos, não entendo nada do que dizem, mas daqui a alguns dias volto para casa. Sinto-me vivo e protegido.

Na última vez em que senti dor, fui descarnado. Se fosse uma tortura física, teria sido mais fácil. Minha pele se separou do resto do corpo. Eu andava lentamente em uma avenida bastante movimentada de São Paulo e estava sem pele. Também compreendia todas as palavras. Ninguém tentou conversar comigo, outra característica da dor violenta. Entrei no metrô e, em um vagão quase cheio, comecei a chorar. Tinha perdido a pele. Todo mundo ali, no vagão do metrô em que entrei descarnado, falava português. Ninguém me olhou, outra característica da dor profunda.

Também me senti sozinho na Polônia e aniquilado quando recebi uma ligação avisando que meu grande amigo André tinha se enforcado. Mas dessa vez a dor não me descarnou porque todos nós conversamos. A gente se abraçou muito no enterro do André.

Agora, nessa dor sem fim, ninguém me olha. Também não posso pedir ajuda porque a dor é tão grande que meus amigos e minha mãe não suportariam. Só poderei abraçá-los quando a dor for menor e tiver recuperado ao menos uma parte da minha pele.

Estou chorando em um vagão quase cheio do metrô de São Paulo e ninguém me olha. Não estou sozinho: fui abandonado. Minha ex-mulher roubou-me a pele depois de um mês de casamento, cheia de indiferença pelo resto do meu corpo e orgulhosa por falar um pouco de francês.

Descobri a crueldade onde eu esperava o amor.



Em Bonn me senti sozinho. Mas aqui está outra diferença da solidão para a dor: eu sabia que, de um jeito ou de outro, encontraria o caminho de volta. Agora, sem pele no metrô quase cheio de São Paulo (devem ser quatro da tarde), estou certo de que vou morrer.

Da Alemanha, arranjei uma passagem para Paris. Comprei um jornal local, sentei no trem e tive vontade de rir. Não sei nada de alemão, o que vou fazer com esse jornal? No entanto, rir de verdade, gargalhar feito um louco foi o que fiz em Paris.

Entrei no Louvre e fui direto à sala da Monalisa. Olhei aquele quadrinho e achei a mulher feia. Fiquei com vontade de rir. Mas quando vi que três ou quatro pessoas filmavam o quadro, aquela gente filmava a Monalisa, eles estavam parados e perplexos filmando um quadro!, morri de rir. Cruzei os corredores do Louvre gargalhando sem controle. Logo eu que não gosto quando as pessoas se descontrolam. Piores são os tipos bem-sucedidos que viajam para o exterior para ir a todos os museus de Paris, Nova York e Londres. Pessoas que viajam para aprender nunca vão saber nada.

Mas isso não é transcendência. Nem museu em Paris é arte. A fila na frente da Notre Dame muito menos. O esplendor não é um clichê. Transcendência é o que o Dusão, um cara que detesto, fez no funeral do meu amigo André.



Quando meu amigo se enforcou, senti de tudo. Dor, solidão, medo, culpa e arrependimento. Três dias antes bati o telefone para não ouvir mais as loucuras dele. Nessas situações, começam a voltar aqueles filminhos das coisas que fizemos juntos. Estou falando de amor.

Foi um funeral com gente nova. Muitos de nós estávamos no primeiro emprego. A gente sabia que a vida tinha acabado de mudar e, por isso, não parávamos de nos abraçar.

A gente se abraçava o tempo inteiro também porque precisava conservar a pele. Abraçava meus amigos e minha pele se prendia ao resto do corpo.

Agora, não. Estou descarnado no metrô, ninguém me abraça e a dor é grande. Queria muito estar sozinho em Bonn, ou em uma pracinha na Cracóvia, olhando o letreiro de um ônibus naquele alfabeto estranho e me perguntando: Onde estou?

Aceito ficar sozinho, mas quero minha pele de volta. Solidão é um sentimento que suporto, mas não posso ser descarnado.

Eu e os amigos do André nos abraçávamos para manter a pele. A 1 metro da gente o corpo enforcado do André parecia me dizer: a sua pele está aí. Já não lembro se o abracei, mas até hoje sinto o momento em que segurei, no funeral, as mãos mornas do meu grande amigo enforcado.

Um pouco depois, o Dusão transcendeu. A gente estava se abraçando, ele olhou para o alto e começou a berrar: Senhor Papa, senhor Deus, senhor Buda e todos vocês, Senhores Sagrados, o André se enforcou sim, ele se matou mesmo, mas ele vai para o Céu. O André se matou, mas ele vai para o Céu.

Todos concordamos.

Não me sinto sozinho. A minha pele me abandonou. Perdi o controle da minha vida. Por isso, gosto quando estou comedido: o mundo se fecha e a minha pele não foge. A verdadeira arte é silenciosa, como a literatura. Não há nada de artístico no que estou fazendo no vagão quase cheio do metrô de São Paulo. Estou descontrolado, chorando sem parar.

Pessoas controladas gostam de se fechar em um quarto. Depois que se trancam, a pele perde a tensão. Eu a abraço. Aos poucos vamos nos soltando. Demora, mas contemplo quem me controla. Nós dois nos olhamos e aos poucos o controle diminui. Então por fim a pele explode e nos descontrolamos. Ejaculo.

Agora, porém, estou na rua chorando com o corpo inteiramente descarnado.



Tenho que sair do metrô. Não estou sozinho: minha ex-mulher me descarnou. Nada disso tem ligação com o André. Tem sim: se estivesse vivo, eu telefonaria e, depois de duas frases, meu amigo me interromperia: Ricardo, fica onde você está, vou pegar um táxi para te encontrar. O meu amigo André nunca me abandonou, mas o deixei sozinho no pior momento da vida dele.

Na rua, procurando minha pele e sem ninguém para olhar para mim, começo a me lembrar do André. A lembrança mais forte é a de como ele era bonito. O André era um homem lindo. Eu não me importava de andar ao lado dele: tinha orgulho. Ele é meu grande amigo. As meninas olhavam doidas para ele. Esse cara é meu amigão.

Minha pele está mais perto. Penso em como o André era bonito e finalmente sinto algum calor. Antes de ficar medonho por causa dos remédios, o André era um homem lindo. Minha pele talvez volte.

A gente às vezes ia a uma casa de massagem. O André sempre escolhia a mesma garota. Aline, digamos assim. Para respeitá-lo, nunca quis que ela me massageasse. Minha pele está voltando.

Na terceira ou quarta vez, quando chegamos, a moça da portaria, mal conseguindo disfarçar, pegou o interfone e avisou: Meninas, aquele cara voltou. Aquele cara era o meu amigo André. Acho que elas se ouriçaram. Quem será que o homem lindo vai escolher? Ele escolheu a Aline.

Estou imaginando onde deve estar hoje essa Aline, cinco anos depois, quando perdi a minha pele e o André morreu.



Na rua, sinto-me um pouco melhor. O metrô de São Paulo é limpo, mas nivela todo mundo. Museus fazem isso com a arte. Eu amei o metrô de Paris. Estava apaixonado. Estou sem pele.

Se encontrasse a Aline do André, talvez ela pudesse me falar dele. Faz cinco anos, mas ele era bonito o suficiente para que uma mulher jamais o esquecesse. Qualquer mulher. Concentro-me para segurar os soluços e lembrar o endereço da casa de massagens. Meia década apaga muita coisa, mas não tudo. Tenho medo de que nem uma vida apague tudo.

Na recepção, pergunto se a Aline ainda trabalha aqui. Temos uma Aline. Meu coração dispara. Vou para o quarto e, como ela demora, pego essa folha para escrever. Estou sem chorar há quase uma hora.

A porta se abriu. A Aline me olha através do espelho. Escrevendo aqui? Tenho medo de responder. Como todas, ela aparece com uma roupinha vulgar, mas tem um sorriso ingênuo. Está se aproximando aos poucos. Não me viro e sinto seus dedos e os seios arranhando levemente minhas costas. Como estou sem pele, dói um pouco. Ela percebe e para.

Você trabalha aqui há muito tempo? Uns seis meses, responde. Então não é a Aline do André… Fico com vontade de chorar. Paguei, posso fazer tudo com você? Nem tudo. Ela se deita e me olha. Deito-me ao lado e ela curva o corpo, deixando as costas para mim. Abraço-a e ela ensaia um movimento erótico que, na mesma hora, interrompo.

Fica em silêncio e tenta dormir, peço. Ela me olha espantada através do espelho, e fecha os olhos. Cubro-a com um lençol que tinham deixado ali. Não estou chorando, minha pele não voltou, mas sinto afeto por uma mulher de novo. É uma puta. A mortalha está bem colocada, mas protejo um pouco mais o pescoço da Aline. Ela sorri como minha ex-mulher fazia. Fico olhando-a fingir o sono.


Fonte: Revista Píaui

Emma Zunz

EMMA ZUNZ


JORGE LUIS BORGES (1899-1986 )

No dia 14 de janeiro de 1922, Emma Zunz, ao voltar da fábrica de tecidos Tarbuch e Loewenthal, encontrou no fundo do vestíbulo uma carta, datada do Brasil, pela qual soube que seu pai tinha morrido. Enganaram-na, à primeira vista, o selo e o envelope; depois, inquietou-a a letra desconhecida. Nove ou dez linhas mal traçadas quase enchiam a folha; Emma leu que o senhor Maier tinha ingerido por engano uma forte dose de Veronal e tinha falecido a 3 do corrente no hospital de Bagé. Um companheiro de pensão de seu pai assinava a notícia, um tal Fein ou Fain, de Rio Grande, que não podia saber que se dirigia à filha do morto.

Emma deixou cair o papel. A primeira sensação foi de mal-estar no ventre e nos joelhos; depois, de cega culpa, de irrealidade, de frio, de temor; depois, quis já estar no dia seguinte. Imediatamente, compreendeu que essa vontade era inútil, porque a morte de seu pai era a única coisa que tinha sucedido no mundo e que continuaria sucedendo para sempre. Pegou o papel e foi para o quarto. Furtivamente, guardou-o na gaveta, como se, de alguma forma, já conhecesse os fatos ulteriores. Talvez já começasse a vislumbrá-los; já era a que seria.

Na crescente escuridão, Emma chorou até o fim daquele dia o suicídio de Manuel Maier, que nos velhos dias felizes fora Emanuel Zunz. Recordou veraneios numa chácara, perto de Gualeguay, recordou (procurou recordar) sua mãe, recordou a casinha de Lanus que lhes arremataram, recordou os amarelos losangos de uma janela, recordou o auto de prisão, o opróbrio, recordou as cartas anônimas com o comentário sobre “o desfalque do caixa”, recordou (mas isso ela nunca esquecia) que seu pai, na última noite, jurara que o ladrão era Loewenthal. Loewenthal, Aaron Loewenthal, antes gerente da fábrica e agora um dos donos. Emma, desde 1916, guardava o segredo. A ninguém o revelara, nem sequer a sua melhor amiga, Eisa Urstein. Talvez evitasse a profana incredulidade; talvez acredi¬tasse que o segredo fosse um vínculo entre ela e o ausente. Loewenthal não sabia que ela sabia; Emma Zunz tirava desse fato ínfimo um sentimento de poder.

Não dormiu aquela noite, e, quando a primeira luz definiu o retângulo da janela, já estava perfeito seu plano. Procurou fazer com que esse dia, que lhe pareceu interminável, fosse como os outros. Havia na fábrica rumores de greve; Emma, como sempre, declarou-¬se contra qualquer violência. Às seis, concluído o trabalho, foi com Eisa a um clube para mulheres, com ginásio e piscina. Inscreveram-se; teve de repetir e soletrar seu nome e sobrenome, teve de achar graça das brincadeiras vulgares com que é comentado o exame médico. Com Eisa e com a mais moça das Kronfuss discutiu a que cinema iriam no domin¬go à tarde. Depois, falou-se de namorados e ninguém esperou que Emma falasse. Comple¬taria dezenove anos em abril, mas os homens lhe inspiravam ainda um temor quase patológico… Na volta, preparou uma sopa de tapioca e uns legumes, comeu cedo, deitou-¬se e obrigou-se a dormir. Assim, laboriosa e trivial, passou a sexta-feira, dia 15, a véspera.

No sábado, a impaciência despertou-a. A impaciência, não a inquietude, e o singu¬lar alívio de estar finalmente naquele dia. Já não tinha que tramar e imaginar; dentro de algumas horas, atingiria a simplicidade dos fatos. Leu em La Prensa que o navio Nordstjarnan, de Malmo, zarparia nessa noite do cais 3; telefonou para Loewenthal, insinuou que dese¬java comunicar, sem que as outras soubessem, algo sobre a greve e prometeu passar pelo escritório, ao anoitecer. Tremia-lhe a voz; o tremor convinha a uma delatora. Nenhum outro fato memorável ocorreu nessa manhã. Emma trabalhou até as doze e marcou com Eisa e com Perla Kronfuss os pormenores do passeio de domingo. Deitou-se depois de almoçar e recapitulou, de olhos fechados, o plano que tramara. Pensou que a etapa final seria menos horrível que a primeira e que lhe proporcionaria, sem dúvida, o sabor da vitória e da justiça. De repente, alarmada, levantou-se e correu à gaveta da cômoda. Abriu-a; debaixo do retrato de Milton Sills, onde a deixara na noite anterior, estava a carta de Fain. Ninguém podia tê-la visto; começou a ler e rasgou-a.

Narrar com alguma realidade os fatos dessa tarde seria difícil e talvez improceden¬te. Um atributo do infernal é a irrealidade, um atributo que parece diminuir seus terrores e que talvez os agrave. Como tornar verossímil uma ação na qual quase não acreditou quem a executava, como recuperar esse breve caos que hoje a memória de Emma repudia e confunde? Emma vivia em Almagro, na rua Liniers; consta-nos que nessa tarde foi ao porto. Talvez no infame Paseo de Julio se tenha visto multiplicada em espelhos, anunciada por luzes e despida pelos olhos famintos, porém mais razoável é conjeturar que a princípio errou, inadvertida, pela indiferente galeria… Entrou em dois ou três bares, viu a rotina ou os modos de outras mulheres. Por fim, deu com homens do Nordstjéirnan. Temeu que um deles, muito jovem, lhe inspirasse alguma ternura e optou por outro, talvez mais baixo que ela e grosseiro, a fim de que a pureza do horror não fosse diminuída. O homem conduziu-¬a a uma porta e depois a um turvo saguão e depois a uma escada tortuosa e depois a um vestíbulo (em que havia uma vidraça com losangos idênticos aos da casa em Lanus) e depois a um corredor e depois a uma porta que se fechou. Os fatos graves estão fora do tempo, seja porque neles o passado imediato fica como que separado do futuro, seja porque não parecem consecutivas as partes que os formam.

Naquele tempo fora do tempo, naquela desordem caótica de sensações inconexas e atrozes, Emma Zunz pensou uma única vez no morto que motivava o sacrifício? Tenho para mim que pensou uma vez e que nesse momento correu perigo seu desesperado propósito. Pensou (não pôde deixar de pensar) que seu pai tinha feito à sua mãe a coisa horrível que lhe faziam agora. Pensou com débil assombro e se refugiou, em seguida, na vertigem. O homem, sueco ou finlandês, não falava espanhol; foi um instrumento para Emma como esta o foi para ele, mas ela serviu para o gozo e ele para a justiça.

Quando ficou sozinha, Emma não abriu em seguida os olhos. Na mesa de cabecei¬ra estava o dinheiro deixado pelo homem. Emma sentou-se e o rasgou como antes rasga¬ra a carta. Rasgar dinheiro é uma impiedade, como jogar fora o pão; Emma arrependeu¬-se, tão logo o fez. Um ato de soberba, e naquele dia… O medo perdeu-se na tristeza de seu corpo, no asco. O asco e a tristeza prendiam-na, mas Emma lentamente se levantou e começou a vestir-se. No quarto não restavam cores vivas; o último crepúsculo se adensava. Ela pôde sair sem que a percebessem; na esquina, pegou um Lacroze que ia para o oeste. Escolheu, conforme seu plano, o banco mais da frente para que não lhe vissem o rosto. Talvez a tenha consolado verificar, no insípido movimento das ruas, que o acontecido não contaminara as coisas. Passou por bairros decrescentes e opacos, vendo-os e esquecen¬do-os no ato, e desceu numa das esquinas de Warnes. Paradoxalmente, seu cansaço vinha a ser uma força, pois a obrigava a concentrar-se nos pormenores da aventura e lhe ocultava o fundo e o fim.

Aaron Loewenthal era, para todos, um homem sério; para seus poucos íntimos, um avarento. Vivia nos altos da fábrica, sozinho. Estabelecido no desmantelado arrabalde, temia os ladrões; no pátio da fábrica havia um grande cachorro e na gaveta do escritório, ninguém o ignorava, um revólver. Chorara com decoro, no ano anterior, a inesperada morte da mulher – uma Gauss, que lhe trouxe um bom dote! –, mas o dinheiro era sua verdadeira paixão. Com íntima vergonha, sabia ser menos apto para ganhá-lo que para conservá-lo. Era muito religioso; acreditava ter com o Senhor um pacto secreto, que o eximia de agir bem a troco de orações e devoções. Calvo, corpulento, enlutado, de óculos escuros e barba ruiva, esperava de pé, junto à janela, a informação confidencial da operá¬ria Zunz.

Viu-a empurrar a grade (que ele deixara entreaberta, de propósito) e cruzar o pátio sombrio. Viu-a dar uma pequena volta quando o cachorro amarrado latiu. Os lábios de Ernma se atarefavam como os de quem reza em voz baixa; cansados, repetiam a sentença que o senhor Loewenthal ouviria antes de morrer.

As coisas não ocorreram como previra Emma Zunz. Desde a madrugada anterior, sonhara, muitas vezes, apontando o firme revólver, forçando o miserável a confessar a miserável culpa e expondo o corajoso estratagema que permitiria à Justiça de Deus triun¬far sobre a justiça humana. (Não por medo, mas por ser um instrumento da justiça, ela não queria ser castigada.) Depois, um só balaço no meio do peito rubricaria a sorte de Loewenthal. Mas as coisas não ocorreram assim.

Diante de Aaron Loewenthal, mais que a urgência de vingar o pai, Emma sentiu a de castigar o ultraje sofrido por isso. Não podia deixar de matá-lo, depois dessa minuciosa desonra. Tampouco tinha tempo a perder com teatralidades. Sentada, tímida, pediu des¬culpas a Loewenthal, invocou (à maneira de delatora) as obrigações da lealdade, pronun¬ciou alguns nomes, deu a entender outros e calou-se como se o medo a vencesse. Conse¬guiu que Loewenthal saísse para buscar um copo d’água. Quando ele, incrédulo de tal agitação, mas indulgente, voltou da sala de jantar, Emma já tinha tirado da gaveta o pesado revólver. Apertou o gatilho duas vezes. O considerável corpo caiu como se os es¬tampidos e a fumaça o tivessem rompido, o copo se partiu, o rosto olhou-a com assombro e cólera, a boca injuriou-a em espanhol e em iídiche. Os palavrões não cessavam; Emma teve de fazer fogo outra vez. No pátio, o cachorro acorrentado pôs-se a ladrar, e uma efusão de sangue repentino brotou dos lábios obscenos e manchou a barba e a roupa. Emma iniciou a acusação que tinha preparada (”Vinguei meu pai e não me poderão castigar…”), mas não a concluiu, porque o senhor Loewenthal já estava morto. Não soube nunca se ele chegou a compreender.

Os tensos latidos lembraram que ela não podia, ainda, descansar. Desordenou o divã, desabotoou o paletó do cadáver, tirou-lhe os óculos salpicados e deixou-os sobre o fichário. Em seguida, pegou o telefone e repetiu o que tantas vezes repetiria, com essas e com outras palavras: “Aconteceu uma coisa inacreditável. O senhor Loewenthal me fez vir com o pretexto da greve… Abusou de mim, eu o matei”

A história era inacreditável, de fato, mas se impôs a todos, pois substancialmente era certa. Verdadeiro era o tom de Emma Zunz, verdadeiro o pudor, verdadeiro o ódio. Verdadeiro também era o ultraje que padecera; só eram falsas as circunstâncias, a hora e um ou dois nomes próprios.





Tradução de Flávio José Cardozo

ESTADO DE ACEPCIÓN Gaza.

(de origen y fin incierto).





uno. femenino.

Nudo en llanto, desatado

en el extremo. Obligado a doblarse,

a des-ser, mordaza en sangre.

Sirve para enganchar o ceñir

el cebo de Occidente,

una carnada de rabia,

la espada de Israel



y suspenderlas luego desde ninguna parte.





dos. femenino.

Circundar el alambre,

abrirse las manos, caminar

el polvo hasta alcanzar

el templo o despacho



o como se llame

el lugar donde el Hombre del Lobby

aventa cenizas

de la Zarza Ardiente.

Enmarcar el albarán de su misil.





tres. femenino.

Pájaro negro que al surcar

la Franja esta noche

y me despierta

y me dice su graznido



que ha llovido metralla,

que a tanto el kilo de paloma blanca,

que mi silencio mata.





Quise llegar hasta tu puerta, Palestina.

A devolverte mi calma vengo.



Carmen Camacho

sábado, 22 de outubro de 2011

Amanheço

O sol visto da janela do meu quarto. Esplêndido. Mesmo na condição patética dos primeiros dias, pude admirar a luminosidade indescritível das tardes de verão. A cidade parece tomada por uma onda de calmaria e as pessoas se esforçam para que eu sinta vontade de ficar; de ser. A cidade se abre para mim, macia. Receptiva. Coberta por um véu de suave devoção. Sento no café. Venço a minha impaciência com o barulho e as pessoas. As pessoas que fazem menos barulho para ouvir o piano. O piano. Lamento não saber tocar nenhum instrumento. Adormeço no colo da música. Viva. Consigo olhar esse Deus sátiro nos olhos. Aqui, sou mais cínica diante de tudo aquilo que é falho; da vida. Termino de comer. E sou atingida por um raio. Meu passo se atrasa e se apressa. Um calafrio que atravessa o meu corpo e traz inquietude para cada músculo. É o abismo da felicidade. É o amor cavalgando o meu dorso. Um quê de divindade nas nossas entranhas. Tu és um Deus e nunca houve nada mais divino. Amor fati. A fortuna da minha existência está nas fatalidades. A mulher que olha dentro dos meus olhos e promete o melhor café que já fez. Dia perfeito em que tudo amadurece. Um raio. Eu, como você, morri. Eu, como você, estou viva. E envelheço nas minhas decisões. Envelheço tentando domar cada elemento vital do meu corpo. Renasço. Danço. Trago o encantamento e a felicidade, que deixaram o berço dilacerado pela dor. Tu te tornas obra de arte. Tu dizes sim ao mundo. E a cidade se alegra por estarmos aqui. E a cidade se alegra por suportarmos tanta verdade sem sucumbir.

Por Daniela Lima
Fonte : Cronópios

Amo estes gregos pagãos

Amo estes gregos pagãos

que amavam a vida

a partir de um céu azul

e um mar violeta.

Amo estas montanhas cabritas

onde Safo e companhia

a de belos tornozelos

galgavam o dia.

Eliane Pantoja Vaidya

“Les tentations, ou Eros, Plutus et la gloire”,

par Charles Baudelaire



Deux superbes Satans et une Diablesse, non moins extraordinaire, ont la nuit dernière monté l’escalier mystérieux par où l’Enfer donne assaut à la faiblesse de l’homme qui dort, et communique en secret avec lui. Et ils sont venus se poser glorieusement devant moi, debout comme sur une estrade. Une splendeur sulfureuse émanait de ces trois personnages, qui se détachaient ainsi du fond opaque de la nuit. Ils avaient l’air si fier et si plein de domination, que je les pris d’abord tous les trois pour de vrais Dieux.

Le visage du premier Satan était d’un sexe ambigu, et il avait aussi, dans les lignes de son corps, la mollesse des anciens Bacchus. Ses beaux yeux languissants, d’une couleur ténébreuse et indécise, ressemblaient à des violettes chargées encore des lourds pleurs de l’orage, et ses lèvres entr’ouvertes à des cassolettes chaudes, d’où s’exhalait la bonne odeur d’une parfumerie ; et à chaque fois qu’il soupirait, des insectes musqués s’illuminaient, en voletant, aux ardeurs de son souffle.

Autour de sa tunique de pourpre était roulé, en manière de ceinture, un serpent chatoyant qui, la tête relevée, tournait langoureusement vers lui ses yeux de braise. A cette ceinture vivante étaient suspendus, alternant avec des fioles pleines de liqueurs sinistres, de brillants couteaux et des instruments de chirurgie. Dans sa main droite il tenait une autre fiole dont le contenu était d’un rouge lumineux, et qui portait pour étiquette ces mots bizarres : « Buvez, ceci est mon sang, un parfait cordial… » dans la gauche, un violon qui lui servait sans doute à chanter ses plaisirs et ses douleurs, et à répandre la contagion de sa folie dans les nuits de sabbat.

A ses chevilles délicates traînaient quelques anneaux d’une chaîne d’or rompue, et quand la gêne qui en résultait le forçait à baisser les yeux vers la terre, il contemplait vaniteusement les ongles de ses pieds, brillants et polis comme des pierres bien travaillées.

Il me regarda avec ses yeux inconsolablement navrés, d’où s’écoulait une insidieuse ivresse, et il me dit d’une voix chantante : « Si tu veux, si tu veux, je te ferai le seigneur des âmes, et tu seras le maître de la matière vivante, plus encore que le sculpteur peut l’être de l’argile ; et tu connaîtras le plaisir, sans cesse renaissant, de sortir de toi-même pour t’oublier dans autrui, et d’attirer les autres âmes jusqu’à les confondre avec la tienne. »

Et je lui répondis : « Grand merci ! je n’ai que faire de cette pacotille d’êtres qui, sans doute, ne valent pas mieux que mon pauvre moi. Bien que j’aie quelque honte à me souvenir, je ne veux rien oublier ; et quand même je ne connaîtrais pas, vieux monstre, ta mystérieuse coutellerie, tes fioles équivoques, les chaînes dont tes pieds sont empêtrés, sont des symboles qui expliquent assez clairement les inconvénients de ton amitié. Garde tes présents. »

Le second Satan n’avait ni cet air à la fois tragique et souriant, ni ces belles manières insinuantes, ni cette beauté délicate et parfumée. C’était un homme vaste, à gros visage sans yeux, dont la lourde bedaine surplombait les cuisses, et dont toute la peau était dorée et illustrée, comme d’un tatouage, d’une foule de petites figures mouvantes représentant les formes nombreuses de la misère universelle. Il y avait de petits hommes efflanqués qui se suspendaient volontairement à un clou ; il y avait de petits gnomes difformes, maigres, dont les yeux suppliants réclamaient l’aumône mieux encore que leurs mains tremblantes ; et puis de vieilles mères portant des avortons accrochés à leurs mamelles exténuées. Il y en avait encore bien d’autres.

Le gros Satan tapait avec son poing sur son immense ventre, d’où sortait alors un long et retentissant cliquetis de métal qui se terminait en un vague gémissement fait de nombreuses voix humaines. Et il riait, en montrant impudemment ses dents gâtées, d’un énorme rire imbécile, comme certains hommes de tous les pays quand ils ont trop bien dîné.

Et celui-là me dit : « Je puis te donner ce qui obtient tout, ce qui vaut tout, ce qui remplace tout ! » Et il tapa sur son ventre monstrueux, dont l’écho sonore fit le commentaire de sa grossière parole.

Je me détournai avec dégoût, et je répondis : « Je n’ai besoin, pour ma jouissance, de la misère de personne ; et je ne veux pas d’une richesse attristée, comme un papier de tenture, de tous les malheurs représentés sur ta peau. »

Quant à la Diablesse, je mentirais si je n’avouais pas qu’à première vue je lui trouvai un bizarre charme. Pour définir ce charme, je ne saurais le comparer à rien de mieux qu’à celui des très-belles femmes sur le retour, qui cependant ne vieillissent plus, et dont la beauté garde la magie pénétrante des ruines. Elle avait l’air à la fois impérieux et dégingandé, et ses yeux, quoique battus, contenaient une force fascinatrice. Ce qui me frappa le plus, ce fut le mystère de sa voix, dans laquelle je retrouvais le souvenir des contralti les plus délicieux et aussi un peu de l’enrouement des gosiers incessamment lavés par l’eau-de-vie.

« Veux-tu connaître ma puissance ? » dit la fausse déesse avec sa voix charmante et paradoxale. « Ecoute. »

Et elle emboucha alors une gigantesque trompette, enrubannée, comme un mirliton, des titres de tous les journaux de l’univers, et à travers cette trompette elle cria mon nom, qui roula ainsi à travers l’espace avec le bruit de cent mille tonnerres, et me revint répercuté par l’écho de la plus lointaine planète.

« Diable ! » fis-je, à moitié subjugué, « voilà qui est précieux ! » Mais en examinant plus attentivement la séduisante virago, il me sembla vaguement que je la reconnaissais pour l’avoir vue trinquant avec quelques drôles de ma connaissance ; et le son rauque du cuivre apporta à mes oreilles je ne sais quel souvenir d’une trompette prostituée.

Aussi je répondis, avec tout mon dédain : « Va-t’en ! Je ne suis pas fait pour épouser la maîtresse de certains que je ne veux pas nommer. »

Certes, d’une si courageuse abnégation j’avais le droit d’être fier Mais malheureusement je me réveillai, et toute ma force m’abandonna. « En vérité, me dis-je, il fallait que je fusse bien lourdement assoupi pour montrer de tels scrupules. Ah ! s’ils pouvaient revenir pendant que je suis éveillé, je ne ferais pas tant le délicat ! »

Et je les invoquai à haute voix, les suppliant de me pardonner, leur offrant de me déshonorer aussi souvent qu’il le faudrait pour mériter leurs faveurs ; mais je les avais sans doute fortement offensés, car ils ne sont jamais revenus

Alguém…

Alguém desfecha a flecha do vôo:

reflexo no vidro onde a chuva

penteia os cabelos.

Cantiva de muitas lágrimas

dos suspiros do vento

nesta casa pousada na montanha

aguardo criança flor anjo ou passaro.

Pensamentos alígeros – andorinhas

nos aguaceiros de verão

traçam oblíquas, desaparecem

no céu que escurece.

Abraçada à minha alma

não sinto o tempo latejar por perto.

O incerto longe é a minha vocação.

O longe do longe onde talvez

estás sempre em despedida

do invólucro que não te retém. E eu

sempre atrás do aceno teu

do aroma que te esquece e se esvai.

Se um lenço de fino linho

se desprendesse de teus dedos (sonho meu)

o caçaria como a um pássaro

que longe vivia

e me pertencia.

Dora Ferreira da Silva

sábado, 15 de outubro de 2011

POEMA AO NORDESTE

Quase tudo no nordeste é seco:



Os rios, os açudes, as vidas...



São secas também as árvores.



E as mesas dos que produzem o pão.



E como é seca a vontade dos governantes!



Até as cercas são feitas de madeira seca.



Mas, nem tudo é totalmente seco, como:



O bolso e as mesas dos donos das cercas.



Mesmo o grito seco na garganta do sertanejo,



Traz algo que não é seco:



A esperança de vencer as cercas e dominar a seca.



- Será que o Nordeste é seco?



Ou quantos foram os que o secaram?



João Freire Rodrigues
Apodi - RN

sábado, 8 de outubro de 2011

1. Tsunami

Wave after wave, wave upon wave.

The dead are not seen and their screams not heard.



Listen! Don’t listen! Listening without end.

No one can hear what the dead shriek.

Only the dead are able to hear their own screams.



.. .. .. ..



Come on! Come on! Run!

The earth is stuffed with its own ruin

And mankind is in need of a sanctuary.



2. Description of death



There is no one left on Earth who says:

“Oh you black poets!

You thrive by mocking hope and manufacturing despair all around you.”

No one remains who says:

“How can one describe death?”



.. .. .. ..



Must the scream of despair cause pain to the stone and the pillars of the temple to tremble

Before philosophers and scientists acknowledge the sound

Of one who suffers?



3. The Lord’s “six days”



The wicked say:

“The errors of the clever are always the worst.”

Maybe they are right.



.. .. ..



God forbid

I question the Lord’s intelligence

Or His good intentions

But I think Him somewhat careless,

Somewhat confused,

Romantic, reckless, incessantly emotional

And, of course, like all his poet friends,

Both highly inspired and incapable of self-belief.



.. .. .. ..



It seems to me that six days were not enough to build a dream.

A million years, a million ages, a million judgement days . . .

And He has altered nothing.

It is as if God is still endlessly

Practising on the product of His labour.

The Earth is still not suitable for life to this day

And nor are its people.



When will that momentous day come when God will stand and say:

“At last, We have found a solution

And humanity can

Begin living”?



4. Prayer to the god of the 21st century



Take the herd.

Take the herders.

Take the philosophers, militias and army leaders.

But don’t lay your hand on a child.



Take the fortresses, the monasteries, the brothels and the pillars of the temple.

Take everything on Earth.

Take everything which devalues the Earth.

Take the Earth.

And let the children dream.



If they go up into the mountains

Don’t send earthquakes beneath them.

If they go into the valleys

Don’t let floods loose upon them.

The children are our children and Yours:

Give them solid ground.







Poet's Note: Read by Asad Jaber at the Poetry International Festival, Rotterdam, June 2011



© 2011, Nazih Abou Afach

From: Chaos & Order

Publisher: Poetry International, Rotterdam, 2011


1. Tsunami




Onda após onda, onda após onda.

Os mortos não são vistos e seus gritos não ouviu.



Ouça! Não dê ouvidos! Ouvindo sem fim.

Ninguém pode ouvir o grito dos mortos.

Só os mortos são capazes de ouvir seus próprios gritos.



.. .. .. ..



Vamos lá! Vamos lá! Corra!

A terra é recheado com a sua própria ruína

E a humanidade está precisando de um santuário.



2. Descrição da morte



Não há ninguém à esquerda na Terra que diz:

"Oh, você poetas negros!

Você prosperar pela esperança e desespero zombando fabricação de todos ao seu redor. "

Ninguém permanece que diz:

"Como se pode descrever a morte?"



.. .. .. ..



Deve ser o grito de dor causar desespero para a pedra e os pilares do templo a tremer

Antes de filósofos e cientistas reconhecem o som

De alguém que sofre?



3. Do Senhor "seis dias"



Os ímpios dizem:

"Os erros dos inteligentes são sempre o pior."

Talvez tenham razão.



.. .. ..



Deus nos livre

Eu questiono a inteligência do Senhor

Suas boas intenções ou

Mas eu acho que ele um pouco descuidado,

Um pouco confuso,

Romântico, imprudente, incessantemente emocional

E, claro, como todos os seus amigos de poeta,

Ambos altamente inspirada e incapaz de auto-crença.



.. .. .. ..



Parece-me que seis dias não foram suficientes para construir um sonho.

Um milhão de anos, um milhão de idades, um milhão de dias julgamento. . .

E Ele alterou nada.

É como se Deus ainda é infinitamente

Praticar sobre o produto do seu trabalho.

A Terra ainda não é adequado para a vida até hoje

E nem são as pessoas.



Quando será esse dia memorável vir quando Deus vai levantar e dizer:

"Enfim, Nós temos encontrado uma solução

E a humanidade pode

Começar a viver "?



4. Oração ao deus do século 21



Leve o rebanho.

Pegue os pastores.

Pegue os filósofos, as milícias e os líderes do exército.

Mas não estendas a tua mão sobre a criança.



Tomar as fortalezas, mosteiros, os bordéis e os pilares do templo.

Leve tudo na Terra.

Pegue tudo o que desvaloriza a Terra.

Levar a Terra.

E deixar que o sonho das crianças.



Se eles vão para as montanhas

Não envie terremotos abaixo deles.

Se eles vão para os vales

Não deixe solto inundações sobre eles.

As crianças são nossos filhos e Yours:

Dar-lhes um terreno sólido.



© 2011, Nazih Abou Afach.
Síria

De: Caos & Ordem

Editora: Poesia Internacional, Rotterdam, 2011

SVENSKA HUS ENSLIGT BELÄGNA

Ett virrvarr av svarta granar

och rykande månstrålar.

Här ligger torpet sänkt

och det tycks utan liv.



Tills morgondaggen sorlar

och en åldring öppnar

– med darrande hand –

fönstret och släpper ut en uv.



Och i ett annat väderstreck

står nybygget och ångar

med lakanstvättens fjäril

fladdrande vid knuten



mitt i en döende skog

där förmultningen läser

genom glasögon av sav

barkborrarnas protokoll.



Sommar med linhåriga regn

eller ett enda åskmoln

över en hund som skäller.

Fröet sparkar i jorden.



Upprörda röster, ansikten

flyger i telefontrådarna

på förkrympta snabba vingar

över myrmarkernas mil.



Huset på en ö i älven

ruvande sina grundstenar.

En ständig rök – man bränner

skogens hemliga papper.



Regnet vänder i himlen.

Ljuset slingrar i älven.

Hus på branten övervakar

vattenfallets vita oxar.



Höst med en liga av starar

som håller gryningen i schack.

Människorna rör sig stelt

på lampskenets teater.



Låt dem känna utan ängslan

de kamouflerade vingarna

och Guds energi

hoprullad i mörkret.


SOLITARY SWEDISH HOUSES

A mix-max of black spruce

and smoking moonbeams.

Here’s the croft lying low

and not a sign of life.



Till the morning dew murmurs

and an old man opens

– with a shaky hand – his window

and lets out an owl.



Further off, the new building

stands steaming

with the laundry butterfly

fluttering at the corner



in the middle of a dying wood

where the mouldering reads

through spectacles of sap

the proceedings of the bark-drillers.



Summer with flaxen-haired rain

or one solitary thunder-cloud

above a barking dog.

The seed is kicking inside the earth.



Agitated voices, faces

fly in the telephone wires

on stunted rapid wings

across the moorland miles.



The house on an island in the river

brooding on its stony foundations.

Perpetual smoke – they’re burning

the forest’s secret papers.



The rain wheels in the sky.

The light coils in the river.

Houses on the slope supervise

the waterfall’s white oxen.



Autumn with a gang of starlings

holding dawn in check.

The people move stiffly

in the lamplight’s theatre.



Let them feel without alarm

the camouflaged wings

and God’s energy

coiled up in the dark.



© 1995, Tomas Tranströmer

From: Samlade dikter 1954-1996

Publisher: Albert Bonniers Förlag, Stockholm, 2001







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© Translation: 2002, Robin Fulton

nattboksblad

Jag landsteg en majnatt

i ett kyligt månsken

där gräs och blommor var grå

men doften grön.



Jag gled uppför sluttningen

i den färgblinda natten

medan vita stenar

signalerade till månen.



En tidrymd

några minuter lång

femtioåtta år bred.



Och bakom mig

bortom de blyskimrande vattnen

fanns den andra kusten

och de som härskade.



Människor med framtid

i stället för ansikten.



a page of the night-book

I stepped ashore one May night

in the cool moonshine

where grass and flowers were grey

but the scent green.



I glided up the slope

in the colour-blind night

while white stones

signalled to the moon.



A period of time

a few minutes long

fifty-eight years wide.



And behind me

beyond the lead-shimmering waters

was the other shore

and those who ruled.



People with a future

instead of a face.



© Tomas Tranströmer

From: Samlade dikter 1954-1996

Publisher: Albert Bonniers Förlag, Stockholm, 2001







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© Translation: 2002, Robin Fulton

Grafschrift

Ik heb een liefde die zo oud is als ikzelf.

Zij kan niet dood zolang ik zelf geen dode ben.



Zij gaat zo graag gebukt onder mijn naam.

Zij publiceert mijn vlees en bloed tot alles op is.



Zij leurt met heel oud nieuws van mij de wereld rond

En blind sorteert zij regels die ik nooit verstond.



Ik heb een liefde, zij is altijd in gevaar

En kan pas weg als ik hier zelf de weg niet ken.



De weg die wij nu gaan, wij rollen hem langzaam op

Tot een steen. Die leggen wij straks op ons graf.



EPITAPH

I have a love who’s as old as my self.

She cannot die as long as I’m not dead.



She so likes being burdened by my name.

She publishes my flesh and blood till it’s all gone.



She hawks outdated news of me around the world

And blindly sorts the lines I never understood.



I have a love, she’s always in danger

And can only leave when I don’t know the way.



The road that we are on, we roll it slowly up

Into a stone. We’ll lay it one day on our grave.



© 1999, Leonard Nolens

From: Laat alle deuren op een kier. Verzamelde gedichten

Publisher: Querido, Amsterdam, 2004







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© Translation: 2005, Paul Vincent

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Poemas Haikai

Os fios elétricos

estendidos por onde o frio reina

Ao norte de toda música.



O sol branco

treina correndo solitário para

a montanha azul da morte.



Temos que viver

com a relva pequena

e o riso dos porões



Agora o sol se deita.

sombras se levantam gigantescas.

Logo logo tudo é sombra.



As orquídeas.

Petroleiros passam deslizando.

É lua cheia.



Fortalezas medievais,

cidades desconhecidas, esfinges frias,

arenas vazias.



As folhas cochicham:

Um javali está tocando órgão.

E os sinos batem.



E a noite se desloca

de leste para oeste

na velocidade da lua.



Duas libélulas

agarradas uma na outra

passam e se vão



Presença de Deus.

No túnel do canto do pássaro

uma porta fechada se abre.



Carvalhos e a lua.

Luz e imagem de estrelas salientes.

O mar gelado.



Tomas Tranströmer

domingo, 2 de outubro de 2011

a Desadolescência

por REGINALDO DIAS*


Homens de minha geração, nascidos no início da década de 1960 e que estão na fronteira dos cinqüenta anos, um pouco para lá, um pouco para cá, vivem o que poderia ser chamado de desadolescência.

Grosso modo, a adolescência é aquela fase em que nós temos que aprender a domar as rápidas mudanças operadas em nosso corpo. Descobrimos que não somos mais crianças e sabemos que não nos tornamos adultos. Na desadolescência, por razões inversas, somos novamente instados a aprender a conviver com as rápidas mudanças operadas em nosso corpo. Não somos mais jovens e ainda não nos tornamos velhos.



Diferentemente do outro ciclo, as mudanças são operadas para pior, pelo menos no plano físico. Inevitavelmente, mais para uns, menos para outros, surgem limitações no consumo de alimentos, de bebidas e de atividades físicas. Nem falo da virilidade, pois esse é um problema que só atinge pessoas que não conhecemos. Dia desses, naquelas conversas descontraídas que sucedem o futebol de veteranos, um amigo pontificou: “Você sabe que a idade está chegando quando o trabalho dá prazer e o prazer dá trabalho”. Como ninguém ali vivia situações semelhantes, todos riram à farta.



Se vivêssemos em outra época histórica, estaríamos próximos da velhice. Alguns dos livros clássicos de reflexão sobre a velhice foram escritos por homens que haviam acabado de ultrapassar os sessenta anos. Exemplo: Cícero escreveu “De senectute” aos 62 anos. Hoje, graças aos ganhos civilizatórios, a estimativa de vida se elevou e a velhice passou a ser sinônimo de idade mais avançada. O filósofo contemporâneo Norberto Bobbio escreveu o seu texto “De senectute”, veiculado pelo livro “O tempo da memória”, já octogenário.



Qualquer que seja o parâmetro, são perturbadoras as linhas que Bobbio escreveu sobre o caminho sem volta: “A descida em direção a lugar nenhum é longa, mais longa do que eu imaginara, e lenta. A descida é contínua e, o que é pior, irreversível: você desce um pequeno degrau de cada vez, mas ao colocar o pé no degrau mais baixo sabe que nunca mais vai retornar ao degrau mais alto. Quantos ainda existem eu não sei. Mas de uma coisa não tenho dúvida: restam cada vez menos”.



Quem já se convenceu de que é velho é motivado a desenvolver a proverbial sabedoria diante da inevitabilidade do passar do tempo. Situação mais complexa é vivida pelos que se encontram na desadolescência. Minha geração nasceu e cresceu na década de 1960, famosa pelo culto à juventude.



Pode não ter entendido na época, mas ouviu Beatles, Rolling Stones e The Who. Naquele período repleto de maniqueísmos, eram divulgadas máximas como: “Não confie em ninguém com mais de 30”; “Melhor morrer do que ficar velho” etc. Mesmo a ingênua versão brasileira da beatlemania era chamada de “jovem guarda”, com acento no primeiro termo.



Passado o choque da descoberta da desadolescência, a ultrapassagem do que se convencionou chamar de meia idade expõe, de um lado, que é um privilégio não ter ficado pelo caminho e, de outro, que a estrada segue muito além dos 64 anos cantados pelos Beatles no álbum “Sergeant Peppers”. Se, como diz Bobbio, só restam degraus para baixo, melhor que não sejam poucos e que saibamos ultrapassar cada um com resignação, dignidade e prazer, ainda que isso dê algum trabalho.








* REGINALDO DIAS é professor do Departamento de História, Universidade Estadual de Maringá (DHI/UEM) e Doutor em História Social pela UNESP. Publicado em O Diário do Norte do Paraná, 28.09.2011. Email: diasreginaldo@hotmail.com

sábado, 24 de setembro de 2011

Pilippe Jaroussky & Friends Je m'voyais de'ja', Charles Aznavour

Je m’voyais déjà

A dix huit ans j’ai quitte ma province

Bien décide a empoigne la vie

Le coeur léger et le bagage mince

J’étais certain de conquérir Paris



Chez le tailleur le plus chic j’ai fait faire

Ce complet bleu qu’était du dernier cri

Les photos, les chansons et les orchestrations

Ont eu raison de mes économies



Je me voyais déjà en haut de l’affiche

En dix fois plus gros que n’importe qui mon nom s’étalait

Je me voyais déjà adule et riche

Signant mes photos aux admirateurs qui se bousculaient

J’étais le plus grand des grands fantaisistes

Faisant un succès si grand que les gens m’acclamaient debout

Je me voyais déjà cherchant dans ma liste

Celle qui le soir pourrait par faveur se pendre a mon cou



Mes traits ont vieilli sous mon maquillage

Mais la voix est la, le geste est précis et j’ai du ressort

Mon coeur s’est aigri un peu, en prenant de l’âge

Mais j’ai des idées, je connais mon métier et j’y crois encore



Rien que sous mes pieds, de sentir la scène

De voir devant moi un public assis, j’ai le coeur battant

On m’a pas aide, je n’ai pas eu de veine

Mais au fond de moi, je suis sur au moins que j’ai du talent



Mon complet bleu, il y a trente ans que je le porte

Et mes chansons ne font rire que moi

Je cours le cachet, je fais du porte a porte

Pour subsister, je fais n’importe quoi



Je n’ai connu que des succès faciles

Des trains de nuit et des filles a soldats

Les minables cachets, les valises a porter

Les petits meubles et les maigres repas



Je me voyais déjà en photographie

Au bras d’une star, l’hiver dans la neige, l’été au soleil

Je me voyais déjà racontant ma vie

L’air desabuse a des débutants friands de conseils

J’ouvrais calmement les soirs de première

Mille télégrammes de ce tout paris qui nous fait si peur

Et mourant de trac devant ce parterre

Entrer sur la scène sous les ovations et les projecteurs



J’ai tout essaye pourtant pour sortir du nombre

J’ai chante l’amour, j’ai fait du comique et de la fantaisie

Si tout a rate pour moi, si je suis dans l’ombre

Ce n’est pas de ma faute, mais celle du public qui n’a rien compris



On ne m’a jamais accorde ma chance

D’autres ont réussi avec peu de voix et beaucoup d’argent

Moi j’étais trop pur ou trop en avance

Mais un jour viendra je leur montrerai que j’ai du talent!



 Charles Aznavour

The ballad of the lonely masturbator

The end of the affair is always death.

She’s my workshop. Slippery eye,

out of the tribe of myself my breath

finds you gone. I horrify

those who stand by. I am fed.

At night, alone, I marry the bed.



Finger to finger, now she’s mine.

She’s not too far. She’s my encounter.

I beat her like a bell. I recline

in the bower where you used to mount her.

You borrowed me on the flowered spread.

At night, alone, I marry the bed.



Take for instance this night, my love,

that every single couple puts together

with a joint overturning, beneath, above,

the abundant two on sponge and feather,

kneeling and pushing, head to head.

At night alone, I marry the bed.



I break out of my body this way,

an annoying miracle. Could I

put the dream market on display?

I am spread out. I crucify.

My little plum is what you said.

At night, alone, I marry the bed.



Then my black-eyed rival came.

The lady of water, rising on the beach,

a piano at her fingertips, shame

on her lips and a flute’s speech.

And I was the knock-kneed broom instead.

At night, alone, I marry the bed.



She took you the way a woman takes

a bargain dress off the rack

and I broke the way a stone breaks.

I give back your books and fishing tack.

Today’s paper says that you are wed.

At night, alone, I marry the bed.



The boys and girls are one tonight.

They unbutton blouses. They unzip flies.

They take off shoes. They turn off the light.

The glimmering creatures are full of lies.

They are eating each other. They are overfed.

At night, alone, I marry the bed.



BALADA DA MASTURBADORA SOLITÁRIA

O final de um caso é sempre a morte.

Ela é a minha oficina. Olho escorregadio,

fora da tribo de mim mesma o meu fôlego

encontra-te ausente. Escandalizo

os que estão presentes. Estou saciada.

De noite, só, caso-me com a cama.



Dedo a dedo, agora é minha.

Ela não está demasiado longe. Ela é o meu encontro.

Toco-a como um sino. Reclino-me

no caramanchão onde costumavas montá-la.

Possuíste-me na colcha florida.

À noite, só, caso-me com a cama.



Toma por exemplo esta noite, meu amor,

em que cada casal mistura

com uma reviravolta conjunta, para baixo, para cima,

o dois abundante sobre esponja e pena,

ajoelhando-se e empurrando, cabeça contra cabeça.

De noite, só, caso-me com a cama.



Desta forma escapo do meu corpo,

um milagre irritante. Podia eu

colocar o mercado dos sonhos em exibição?

Espalho-me. Crucifico.

Minha pequena ameixa, dizias tu.

Á noite, só, caso-me com a cama.



Então chegou a minha rival de olhos escuros.

A dama de água, erguendo-se na praia,

um piano nas pontas dos dedos, vergonha

nos seus lábios e uma voz de flauta.

Entretanto, passei a ser a vassoura usada.

Á noite, só, caso-me com a cama.



Ela agarrou-te como uma mulher agarra

um vestido de saldo de uma estante

e eu parti da mesma forma que uma pedra parte.

Devolvo-te os teus livros e a tua cana de pesca.

No jornal de hoje dizem que és casado.

Á noite, só, caso-me com a cama.



Rapazes e raparigas são um esta noite.

Desabotoam blusas. Abrem fechos.

Descalçam sapatos. Apagam a luz.

As criaturas bruxuleantes estão cheias de mentiras.

Comem-se uns aos outros. Estão repletos.

Á noite, só, caso-me com a cama

Anne Sexton.

Quando o homem entra na mulher

Quando o homem

entra na mulher,

como a rebentação

batendo na costa,

uma e outra vez,

e a mulher abre a boca de prazer

e os seus dentes brilham

como o alfabeto,

Logos aparece ordenhando uma estrela,

e o homem

dentro da mulher

ata um nó,

de modo que nunca mais

possam voltar a separar-se

e a mulher

trepa a uma flor

e engole o seu pecíolo

e Logos aparece

e solta os seus rios.



Este homem,

esta mulher

com o seu duplo desejo

tentaram atravessar

a cortina de Deus

e conseguiram-no por um instante,

embora Deus

na Sua perversidade

desate o nó.



WHEN MAN ENTERS WOMAN

When man

enters woman,

like the surf biting the shore,

again and again,

and the woman opens her mouth in pleasure

and her teeth gleam

like the alphabet,

Logos appears milking a star,

and the man

inside of woman

ties a knot

so that they will

never again be separate

and the woman

climbs into a flower

and swallows its stem

and Logos appears

and unleashed their rivers.



This man,

this woman

with their double hunger,

have tried to reach through

the curtain of God

and briefly they have,

though God

in His perversity

unties the knot.

Anne Sexton