Livros e fotos emolduradas com escritores como Julio Cortázar (1914- 1984) disputam cada metro quadrado da parede do escritório no Departamento de Literatura, habitado pelo “segundo melhor crítico” da Universidade de Yale. O epíteto foi conferido pelo amigo e colega Harold Bloom. Será necessário dizer que Bloom, jamais acusado pelo crime de modéstia, reservou para si a vaga do primeiro lugar? Roberto González Echevarría sorri curioso com a presença da repórter, como se o reconhecimento de um livro de crítica literária com cinco edições em inglês, em 20 anos, ainda provocasse surpresa. Mesmo depois de ter recebido, em março, do presidente Barack Obama, a Medalha Nacional de Artes e Humanidades, em companhia de Philip Roth e Joyce Carol Oates. Ele se confessa feliz com a longevidade de Mito y Archivo – Una Teoría de la Narrativa Latinoamericana. Acaba de escrever Modern Latin American Literature: A Very Short Introduction (Literatura Latino-Americana Moderna: Uma Introdução Muito Curta), que será lançado em 2012. Echevarría começa o novo livro afirmando que se guiou pela “avaliação severa” de qualidade. “Avaliação é a menos admitida e uma das mais predominantes práticas em critica literária”, escreve. Para ele, o colombiano Fernando Vallejo e o chileno Roberto Bolaño (1953-2003) são dois romancistas que aproximaram a literatura latino-americana recente do lugar de proeminência que ocupou durante o boom dos anos 60. E aposta: “Sempre teremos a linguagem e as histórias, não importa o estilo da narrativa”.
O senhor ainda sustenta a tese de que o arquivo é uma fonte mais importante para a ficção latino-americana do que a origem tradicional do romance em outros continentes?
Sim. Comecei realmente a pensar na relação entre a lei e a origem da ficção ao escrever sobre o picaresco na Espanha no século 16. Ao mesmo tempo, estava refletindo sobre as crônicas da descoberta do Novo Mundo, porque eu ensinava e ainda dou cursos, tanto sobre a Idade de Ouro da literatura espanhola como sobre a literatura latino-americana colonial e moderna. Foi essa confluência fortuita que me levou a escrever o livro. E me ocorreu que La Vida de Lazarillo de Tormes y de Sus Fortunas y Adversidades, o romance anônimo de 1554, é um depoimento que um criminoso faz diante do juiz. Aquela primeira pessoa é muito parecida com a primeira pessoa em Hernán Cortés, quando ele escreve as suas Cartas de Relación. Foi quando me veio a ideia. Depois, comecei a estudar as origens de nova legislação na Espanha no século 16. Era difícil, especialmente para nós, latino-americanos, pensar na Espanha como um país moderno. Mas a Espanha teve a primeira monarquia moderna com os reis católicos, foi o primeiro Estado moderno e os monarcas reformaram a lei espanhola. A lei se tornou presente na Espanha do século 16. E os herdeiros reais criaram o primeiro grande arquivo do Estado em Simancas, perto Salamanca, num belíssimo castelo que havia se tornado uma prisão – e acabou como arquivo. Para mim, não há símbolo melhor da origem da ficção: castelo-prisão-arquivo. Daquela antiga prisão saiu Pícaro, o criminoso. Assim, os testemunhos de criminosos e dos conquistadores são as primeiras narrativas da América Latina. Elas foras escritas para o Arquivo. Claro que fui influenciado por teóricos como Michel Foucault, havia lido Vigiar e Punir. O fato é que não sou simplesmente um seguidor de teorias literárias, tento formular a minha própria. Reconheço que aprendi muito com Foucault, Derrida e outros, mas espero que esta seja minha contribuição para a teoria quando se trata de América Latina. E aprendi muito também com Jorge Luis Borges e Alejo Carpentier.
O senhor não prefere se ver como um fruto da influência da narrativa da ficção mais do que da teoria literária?
Sim, acho que quaisquer ideias que formulo vêm da leitura de ficção – Alejo Carpentier, por exemplo, que foi um dos meus professores, e acabei por escrever um livro sobre ele, The Pilgrim at Home: Alejo Carpentier. Lendo Los Pasos Perdidos, de Carpentier, tive ideias que se tornaram relevantes para escrever Mito y Archivo. Quando eu fazia pós-graduação em Yale, li O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar. Ali estava: a forma de um arquivo, capítulos que podiam ser rearranjados, textos que usam recortes de jornal como fonte. E, é claro, em Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, o arquivo é uma fundação do romance. O impacto de Cem Anos foi o mais importante para a elaboração de Mito y Archivo.
Pouco antes de Mito y Archivo ser concluído, O General em Seu Labirinto, de Márquez, foi lançado. Qual a importância disso?
Muito importante. Representou para mim mais um sinal de que estava no caminho certo. Porque ali está a figura do General Bolívar e a narrativa permitida por um arquivo de milhares de cartas.
O senhor se lembra quando primeiro usou a palavra arquivo como síntese da ideia do livro?
Não tenho certeza, mas gostaria de acreditar que fui inspirado pela etimologia da palavra – arch-ivo – mistério, origem. Architectura, construção que contém coisas. Desconfio que minha mente seja mais poética do que teórica.
Fale um pouco sobre a cumplicidade entre literatura e reportagem científica na América Latina, no século 19.
É o segundo momento, que veio depois do período da Lei, que estabeleceu mecanismos de narrativa. No século 19, tivemos a escrita produzida pelos exploradores científicos. Ela usava métodos que refletiam a emergência das ciências sociais, em conexão com as ciências naturais que deram origem à antropologia. Os Sertões, de Euclides da Cunha, é um livro que representa a quintessência desse fenômeno. Euclides viaja e descreve a paisagem; que livro fenomenal! E fiquei tão contente quando vi que Os Sertões inspirou Mario Vargas Llosa a escrever a Guerra do Fim do Mundo, que considero seu melhor romance.
O senhor afirma que, apesar de Euclides ter a intenção de se apoiar na tradição científica que se formava na época, ele perde o controle da própria perspectiva em Os Sertões.
Sim e acho que isso confere ao livro um molde profundamente literário. É um livro que dramatiza seu próprio fracasso ao tentar explicar Canudos. Isso, para mim, é a mais importante revelação e torna Os Sertões uma grande obra literária, além do que, suponho, o próprio Euclides imaginava. Só Guimarães Rosa descobriu a poética do sertão nesse nível. Mas Os Sertões é insuperável, umas das obras-primas da literatura.
E como o senhor vê Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, no contexto que chama de literatura da tradição antropológica?
É antropologia na medida em que mergulha na linguagem e nos mitos do sertão. Sempre me emociono com o fato de que Guimarães Rosa era um médico e aceitava que os pacientes pobres lhes contassem histórias como pagamento. Pode haver história mais bonita? Ele estava reunindo toda essa narrativa que forma Grande Sertão como um antropólogo. E a antropologia é o terceiro momento, depois da Lei e da exploração científica. O romance latino-americano moderno é essencialmente um projeto antropológico, com toda a poesia que existe na antropologia, como agora descobrimos com a antropologia pós-moderna.
Muitos consideram a prosa de Rosa, em sua invenção regionalista, à altura de Joyce.
Eu concordo plenamente com o argumento. O regionalismo, é claro, pode se tornar universal. Como dizia Miguel Unamuno, “lo universal en lo local”. O regionalismo de García Márquez não está preso a uma região específica, abraça toda a América Latina. E a comparação é justa: Rosa é um romancista tão bom quanto James Joyce, mas o português não tem a difusão literária do inglês. Ulisses é um romance regionalista e universal.
O senhor acha que sempre vamos ter a separação entre a literatura brasileira e a de língua espanhola?
A literatura brasileira é a mais rica do continente, depois da norte-americana, que é tremenda. Machado de Assis é o melhor escritor da América Latina no século 19. Mas, apesar da diferença de língua que nos separa, houve a fecundação cruzada. Nós somos quase os mesmos. Eu era muito amigo do Haroldo de Campos, que ensinava aqui, em Yale, quando eu fazia pós-graduação. Ele usou em um de seus poemas uma frase que eu tinha dito para o Severo Sarduy, também meu grande amigo. Estava na Flórida, uma vez, conversando com uma cubana exilada que havia pertencido à alta burguesia e agora tinha de trabalhar. Perguntei: “Senhora, é duro trabalhar?” Ela respondeu, “Ai, meu filho, trabalhar é a morte vestida de verde-jade”. Ela parecia ter escapado de um romance do Severo Sarduy! Mandei para o Severo, que usou como título de um capítulo de Colibri. Quando o Haroldo leu, adorou e escreveu o poema A Morte Vestida de Verde-Jade.
O que o senhor acha do argumento de que realismo mágico é uma vertente esgotada?
É o que grupos como McCondo e La Nueva Onda acreditam. E compreendo que a literatura precisa se renovar, o jovem deve matar o velho e tudo isso. Mas quando se fazem esses pronunciamentos esperamos que eles sejam seguidos por grandes obras literárias. E isso ainda não aconteceu. Você pode fazer gozação e dizer que a América Latina não é como Macondo, é globalizada, etc. Mas cadê o novo Cem Anos de Solidão? Macondo existe como a Londres de Charles Dickens ou a Paris de Proust.
Ao final do livro o senhor pergunta: Há narrativa além do arquivo?
Tenho pensado sobre isso (suspira). O mito do arquivo em romances como Cem Anos de Solidão se repetiu em outras ficções – menores, devo dizer. E a tentativa de fugir disso não me parece bem-sucedida na América Latina. As únicas exceções que me ocorrem citar são Fernando Vallejo e Roberto Bolaño. Noturno de Chile, do Bolaño é um romance maravilhoso.
Em outra pergunta o senhor especula se os sistemas de comunicação estão se tornando a nova fonte de narrativa.
Acho que sim e acredito até na transformação da leitura como uma experiência digital. O boliviano Edmundo Paz Soldán, que leciona em Cornell, escreveu, por exemplo, sobre hackers. A questão é, se além de tema, os novos sistemas estão afetando a forma da literatura. É bom lembrar que a mídia é uma outra forma de arquivo, inclusiva e onipresente. O Paz Soldán é um dos mais interessantes entre estes autores jovens. Um outro efeito dos sistemas de comunicação é que se lê menos. Os meus alunos em Yale, que estão entre os melhores do país, leram muito menos do que as gerações anteriores. Mas, no fim das contas, acho que a narrativa é como um fênix, sempre acaba por se erguer das cinzas. Por isso, fico tão feliz quando descubro um Roberto Bolaño. A literatura sempre se renova. Sempre teremos a linguagem e as histórias, não importa o estilo da narrativa.
Fonte : O Estado de S.Paulo. 26/11/2011
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