sábado, 13 de setembro de 2014

Animal de Silêncios

3
No céu apenas duas
Nuvens ao rés da terra e sem destino
certo, uma extensão do pó, sem medida,
as bisnagas, tão somente cinco plantas
espargidas no monte magro,
uma lebre assombrosa, um veado
talvez, e a tarântula, o escorpião
astuto, as formigas gigantes,
os coiotes, os animais pobres
puxados pelo avanço teimoso
dos homens até o limite
último, a vida, este cobre
deserto na memória, a luz
que, feita metal, delira. Meio-dia
sem fronteira, seco, duro,
um vento e este pó decisivos.
Aí estou eu, feito um torrão
do tempo, com a garganta a punhaladas
ardida. A lua é um coiote
cego. Afundo o arado neste terra
irada. Extraio ervas, minerais
certos. Os fósseis tragados
pelo âmbar, o sangue e sua corrente
de papoula. Aqui faz a morte,
mas nasce o idioma, está aqui
o espanhol, suas consoantes,
a suave voz sussurro, o poema
San Juan, essas cores ávidas
do Greco, todas as letras fricativas,
a lua palatal, o tempo, o sacrifício.
Em cima, nas montanhas, as águas turbulentas,
dominadas. Embaixo está a luz aos borbotões,
dura. Aproxima a hora do panal,
o dia do lavrador, o vaticínio
exato e o vinhedo,
a risonha floração da abelha.
Quando a tarde então se reclina
na nuvem mortal, quando em meu quarto
se estaciona um crepúsculo antigo
e ronda um tigre pela cama opaca
e acossa minha garganta, a memória
trai, descubro-te na minha sombra,
busco teu centro vegetal, noturno,
afundo o arado nesta terra amada.
Quando esse tigre, então, se apresenta
com sua boca tremenda, destruidora,
quando mastiga o corpo magro
do veado, ele, implacável, só,
em metade deste planalto de cobalto,
edifica um pleno dia, sob este sol
salobro, uma imagem noturna
da morte. Talvez então
suas estrelas puras brilhem um pouco mais
com esse sangue. Embaixo está o silêncio,
a estrutura cristal dos objetos.
Porque tudo se agita em uma pressa
de puras carniças. E os diamantes
mesmos, por assim dizer, apodrece
e o ferro se derrete ou grasna.
Apareces então no eco de outro
eco perdido, já em mim recobrado.
Tão ausente teu sorriso, tão longe
tu toda, tão longe. Eu mesmo
o cervo devorado, eu esse tigre
também de luz e de fadiga.
Já não posso dormir. Ergo-me,
frio. Quando a cama, pois,
a cama mesma é um leito de cactos
e se escuta na rua o pavor
de mandíbulas e eu só recordo
aquele sol, sua chaga certa,
quando a cama toda se levanta
comigo, porque o próprio insone
a rebela, quero tocar-te
entre a luz e o pó, como uma abelha
azul, e é impossível.
A luz do ocidente e a tarântula,
as formigas guerreiras que desarmam
os élitros do grilo ou o olho seco
da mosca que vê dez vezes dez
o mesmo objeto, refugiam-se dentro
de suas covas, quando o silêncio
então se retira dentro dos cactos
do deserto, e o tigre dorme
junto à carne seca de sua vítima,
aí, nesse mesmo espaço aberto
pelos ventos, estou também,
enterrando o arado, tocando-te
sensual, furiosamente, mastigando,
uma, mil vezes, mil vezes mil
mil vezes trabalhar e viver,
mil vezes mil mil vezes, mil.

Jaime Labastida / As quatro estações / Animal de Silêncios

trad. Hermenegildo José Bastos


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