sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Sinfonia de sabores

Você sabia que para certos povos comer é um ato indecente? Eles ingerem comida numa condição de confinamento solitário. Neste artigo para o Correio de abril de 1957, Lévi-Strauss trata não apenas dos aspectos sociais da comida, mas também da aventura humana na busca por sabores.




Se, como se tem dito, a arte de cozinhar é combinar os sabores de diferentes alimentos de modo a misturar ou revelar os seus contrastes, o processo soa simples demais para ter sido descoberto por qualquer dos povos do mundo. Todavia esse não é o caso. Não é possível combinar diferentes ingredientes a menos que eles possam ser manejados de modo fácil e simultâneo, nem os seus sabores podem ser combinados e harmonizados sem um conhecimento de cozinhar, o que vai além de meramente aquecer a comida.


A cozinha de uma sociedade é a linguagem pela qual ela traduz inconscientemente a sua estrutura, a menos que ela renuncie, ainda inconscientemente, a revelar nela as suas contradições.

C. Lévi-Strauss, "O Triângulo Culinário", L’Arc n°26, 1965.
Nem mesmo o método de ferver a comida numa panela de barro é universalmente empregado. Alguns povos que não têm artefatos de cerâmica levam a comida à fervura colocando-a em potes feitos de madeira ou casca de árvore cheios d’água e então nele depositam pedras quentes. Para outros povos a fervura é completamente desconhecida; eles cavam fornos no chão e os abastecem com pedras quentes, a comida vai sendo cozida lentamente entre camadas de folhas verdes que fornecem umidade. Um outro método, ainda, consiste em usar a comida como seu próprio recipiente, recheando-se o corpo de um animal com uma mistura que cozinha enquanto essa cobertura externa é grelhada ou assada.

Comida quente? Que horror!


Todos esses métodos representam descobertas que a raça humana alcançou apenas gradualmente. Até agora, certas tribos primitivas, como os Nambiquara do Brasil Central, apenas jogam a comida que matam ou colhem (pequenos animais e tuberosas selvagens) indiscriminadamente em brasa quente. Essa forma primitiva de cozinhar é fatal para o senso gustativo, de modo que o paladar dos Nambiquara não pode enfrentar nenhum estímulo mais forte; eles têm horror de sal e até mesmo de comida quente; quando os ofereci uma comida cozida – cozida e fervente – eles a encheram de água quente antes de comer. Verdade que essa atitude arcaica é excepcional. Muitos povos, entretanto, sofrem não porque não desfrutam de habilidade para cozinhar, mas por causa de uma carência ainda mais séria – a dos meios de produção. Como resultado, eles raramente podem utilizar mais de um tipo de comida ao mesmo tempo.


Saciando a fome



Etnólogos como E.E. Evans-Pritchard e Audrey Richards descreveram como, em certas partes da África, o panorama da saúde física e mental das populações nativas é afetado pela periodicidade dos ingredientes culinários. Muitas comunidades têm o suficiente para comer durante apenas uma parte do ano, quando a mandioca, o milho ou o arroz estão disponíveis. Depois desses "meses gordos" vêm os "meses magros", quando as pessoas têm apenas o que podem aleatoriamente pegar. O cardápio diário encolhe de tamanho e, ainda mais importante, uma dieta rica em carboidratos é repentinamente substituída por outra que consiste quase inteiramente de vegetais, tais como polpas e melões.

Nós, com o nosso bem assegurado suprimento de comida, raramente podemos imaginar a intensidade das sensações resultantes dessa substituição. O sentimento de saciedade de repente dá lugar para cólicas de fome. Uma violenta diarréia sucede o desconforto oposto da flatulência e da fermentação intestinal.

A população nativa então descobre que tanto os seus corpos quanto os seus espíritos são radicalmente afetados por mudanças na dieta. Como Audrey Richards tem dito com tanta argúcia, não é de surpreender que tantas comunidades considerem a comida como algo perigoso, carregado de toda sorte de influência mágica. Eles assim associam as sensações disparadas pela comida com sentimentos aos quais atribuímos uma origem diferente; a vermelhidão causada pelo álcool é para eles um sinal de fúria, enquanto o jejum é conectado com as mais elevadas emoções do espírito. "Sinto-me como uma jovem menina novamente, estou tão leve e cheia de vida!" exclamou uma velha senhora africana, no dia em que por acaso saciou a sua fome.

"Nossos cozinheiros, diferentemente dos cozinheiros tribais, se esqueceram do que foi antes um rito essencial: o rito de honrar os animais que estão prestes a serem comidos, de modos que sua espécie não se extinga da Terra."
Na história da raça humana houve um dia memorável, embora ainda desconhecido: a data em que o homem descobriu como manter duas diferentes fontes de nutrientes à sua disposição durante o ano inteiro e, ao combiná-los, superar os dois grandes perigos à sua nutrição – a escassez de comida e a sua insipidez.

Porque não basta comer o suficiente. Como diz o provérbio francês, não se deve perder o gosto pelo pão. Toda a história da culinária é a história da busca pelos meios para tornar o pão saboroso, para criar e aumentar o apetite por itens alimentares básicos – pão, arroz, milhete, milho ou mandioca, de acordo com a região – que fornecem energia mas têm pouco sabor. A carne veio depois; por muito tempo ela foi, e em muitas partes do mundo ainda é, um luxo reservado aos privilegiados. A base real da culinária em todo o mundo são os carboidratos temperados com algum condimento. Pão e cebolas, o "chapati" com "chutney", arroz e molho feito com peixe fermentado; milhete, milho ou mandioca com pimentões – todos esses são simplesmente variações de um tema universal, sobre o qual a arte de cozinhar tem construído incontáveis melodias.

As especiarias tranformaram o mundo



As dificuldades nessa busca por sabores é ilustrada pelas grandes viagens marítimas do século XVI, realizadas pelo que hoje parecem ser motivos triviais. Apenas há 400 anos, a Europa estava organizando tremendas expedições com o principal objetivo de obter especiarias.

Isso marca o nascimento da culinária na Europa e talvez também em outras partes, uma vez que nenhum estilo culinário parece ser capaz de ficar sem certos produtos de origem americana desconhecidos em outras partes do mundo antes da descoberta do Novo Mundo, como batatas, tomates, amendoim, chocolate, baunilha e pimentão. Na realidade, um capítulo inteiro da etnologia ainda está por ser escrito. Ele consistiria em descrever o caráter e a distribuição geográfica das regras – algumas muito simples, outras extraordinariamente complexas – de obtenção, tratamento, associação e mistura de vários itens alimentares básicos. Isso revelaria que os polinésios são os inventores da agricultura sem solo, uma vez que alguns desses insulares tiveram sucesso em cultivar hortas no meio de arrecifes de corais. Isso também mostraria que certas tribos, embora extremamente primitiva em outros aspectos, têm realizado o feito extraordinário de produzir itens alimentares básicos a partir de plantas venenosas tais como a mandioca e a bolota.

Também mostraria que certos povos primitivos desenvolveram uma culinária que é cheia de sutilezas. Em um de seus livros sobre os Kwakiutl, habitantes do Alasca, o distinto etnólogo americano Boas dá não menos de 156 receitas para o preparo de vários tipos de peixe, frutas e raízes selvagens. Uma delas, escolhida aleatoriamente, consiste em bater a neve até que ela tenha a consistência de creme e depois misturá-la com óleo de peixe, moluscos e frutas vermelhas frescas.

Sob o sugestivo título Zuni Breadstuffs, um livro de outro etnólogo, Cushing, conta a fascinante história da produção e preparo de comida na tribo indígena Pueblo, do Novo México. Um banquete consistia em 14 pratos – pãezinhos e biscoitos de milho em seis cores diferentes, vários tipos de carne, tripas, salsichas e morcelas de carneiro. Todos são comidos com uma escova dura que se chupa e se molha, sucessivamente, nos pratos correspondentes.

Peixes "ofendidos" não voltam


O consumo da comida é uma questão social distinta. Há poucos povos, como os Paressi do centro-oeste do Brasil, que consomem suas refeições em "confinamento solitário", de modo a esconder o ato "indecente" de comer. Escrevendo sobre os Kwakiutl, Boas descreve a etiqueta ceremonial do banquete: os preparativos culinários, o arranjo das variadas formas de recipientes e forros de mesa, o envio de mensageiros com os convites (que devem ser recusados várias vezes antes da aceitação final), as músicas em honra aos convidados e a entrega de uma porção cuidadosamente selecionada que deve ser adequada aos status de cada um.

Nada disso nos deve surpreender; a etiqueta dos Kwakiutl não é tão diferente de nossos jantares formais. Nós também honramos nossos convidados com belas peças de tecido, prataria e refeições especialmente escolhidas. Mas nossos cozinheiros, ao contrário dos tribais, esqueceram o que era um rito essencial – o de prestar honra aos animais prestes a serem comidos, de modo que as suas espécies não desapareçam da terra. Por isso é que às vezes nos deparamos com algumas instruções desconcertantes em receitas nativas, como a que descrevo a seguir, originária dos índios Tsimshian do noroeste da costa do Pacífico, e que ofereço às donas de casa como conclusão desta breve introdução à etnologia culinária.

Quando a gordura está preste a ser extraída de um olachen, o peixe deve ser primeiro desidratado ao ar livre. Então, deve ser cozido em potes cheios de água no qual se atiram pedras aquecidas no fogo, retirando-se a gordura que sobe até a superfície. O que restar do peixe deve ser depois espalhado num escorredor colocado sobre um recipiente, o qual uma velha senhora deve pressionar contra o seu peito nu o mais forte que puder, de modo a retirar o restante da gordura (homens são estritamente proibidos de realizar essa operação de retirada da gordura).

Os bolos de peixe são então empilhados no canto, onde permanecem se decompondo até que se mostrem cheios de larva. Embora o cheiro pareça insuportável, eles não podem ser jogados fora. Além disso, nenhum dos “cozinheiros” envolvidos está autorizado a se limpar; todos devem permanecer cobertos com a sujeira até o final dos procedimentos, os quais podem durar até duas ou três semanas. De outra maneira, os peixes ficariam "ofendidos" e nunca mais retornariam.

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