sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O Ocidente tem muito a aprender com a Ásia

A Europa, ao incorporar a força ainda primitiva da Ásia num sistema econômico mundial preocupado apenas em explorar material prima e mão-de-obra humana, fez nascer uma crise que hoje deve remediar, declara Lévi-Strauss neste artigo de junho de 1952 para o Correio.




Se há uma noção que um europeu tentando entender o problema do sul da Ásia deve tirar de sua mente é a noção do “exótico”. Contrário ao que muitas sugestões na literatura e experiências de viajantes podem deixar a entender, as civilizações do Oriente não são, em sua essência, nenhum pouco diferentes do Ocidente.

Devemos dar uma olhada nos restos que a passagem dos séculos, a areia, as enchentes, o salitre e as invasões arianas deixaram da mais antiga civilização do Oriente – os sítios do vale do rio Indo, Mohenjodajo e Harappa, que têm de 4 mil a 5 mil anos. Que experiência desconcertante! Ruas tão retas quanto a corda de um arco, formando interseções em 90 graus; quarteirões de trabalhadores com casas de desenho invariável e monótono; oficinas industriais para o processamento da farinha, o trabalho dos metais, ou a “produção em massa” de taças baratas cujos restos ainda poluem o solo; celeiros municipais ocupando (para usar a palavra moderna) vários blocos; banhos públicos, cisternas públicas, esgoto público; quarteirões residenciais provendo moradias confortáveis, embora sem graça, e desenhadas mais para que toda a sociedade tenha conforto do que para uma minoria de homens de posse e de poder. Tudo isso dificilmente deixa de sugerir ao visitante o glamour e também as imperfeições de uma grande cidade moderna, mesmo em sua forma mais avançada, como a civilização ocidental a conhece e como é apresentado hoje à Europa, como modelo, pelos Estados Unidos da América.

Ao longo de 4 a 5 mil anos de história, pode-se imaginar que o ciclo estivesse completo – que a civilização de classe média baixa dos vilarejos do vale do rio Indo não fosse basicamente tão diferente (exceto no que se refere ao tamanho) daquela que estava destinada, após sua longa incubação européia, a atingir um desenvolvimento completo do outro lado do Atlântico.

Portanto, mesmo nos seus primeiros dias, as mais antigas civilizações do Velho Mundo estavam gerando os traços do “rosto” do Novo Mundo. Sem dúvida alguma, esse crepúsculo de uma proto-história de caráter uniforme já anunciava a aurora de outras histórias, estas de caráter heterogêneo. Mas essas divergências nunca foram estáveis ou contínuas.

Desde os dias da pré-história até os tempos modernos, o Oriente e o Ocidente têm constantemente tentado estabelecer a unidade que as linhas divergentes do desenvolvimento enfraqueceram. Mas mesmo quando eles pareciam divergir, a natureza sistemática de sua oposição – os lugares vistos desde cada extremo, geograficamente e pode-se dizer até mesmo moralmente, como o mais antigo e o mais recente, a Índia por um lado e os Estados Unidos por outro – forneceriam prova adicional da solidariedade do todo.

Amazônia e Ásia: tão semelhantes, tão diferentes



© Harold Lush
Manuscrito bengali.


Entre esses dois extremos, a Europa ocupa uma posição intermediária – uma posição modesta, não há dúvida –, mas uma posição que ela luta para enobrecer criticando o que ela considera excessos nos dois extremos: o enorme apego, na América, aos bens materiais e a exagerada concentração, no oriente, de elementos espirituais. Riqueza, por um lado, pobreza por outro, situações com as quais a Europa é tentada a lidar por meio de duas conflituosas teorias econômicas envolvendo, como princípio de fé, "gastar" em um dos casos e "economizar" no outro. Quando, após ter passado longos anos nas duas Américas, o escritor recebeu de um mantenedor de manuscritos bengalis sua primeira lição em filosofia asiática, ele pode ter sido levado a uma teoria simplista. O retrato apresentado foi esse: em oposição à região amazônica, pobre e tropical mas pouco povoada (o último fator parcialmente compensando o primeiro), estava o sul da Ásia, também pobre e tropical, mas desta vez uma área super povoada. Da mesma maneira, nas regiões de climas temperados, a América do Norte, com vastos recursos e uma população relativamente pequena, era contraparte da Europa, com recursos comparativamente pequenos mas uma grande população.

Quando, no entanto, esse retrato mudava do plano econômico para o plano moral e psicológico, esses contrastes se tornavam mais complexos. Porque nada parecia mais distante do padrão norte-americano que o estilo de vida deste sábio, cujo orgulho se encontrava em andar descalço e em ter, como suas únicas possessões terrenas, três túnicas de algodão as quais ele mesmo lavava e consertava. Ele pensava ter resolvido o problema social cozinhando sua comida em uma fogueira de folhas secas, coletada e recolhidas com suas próprias mãos.



O lado contrário


Quando se sobrevoa os vastos territórios do sul da Ásia, de Karachi a Saigon, cruzando o deserto de Thar, essa terra dividida até as menores propriedades e cultivada até o último hectare parece, à primeira vista, familiar ao europeu. No entanto, quando se olha mais de perto, uma diferença emerge. Esses fracos e lavados tons de rosa e verde, essa formação irregular de campos e lavouras de arroz constantemente aparece em diferentes formas, com fronteiras pouco definidas como em um tapete de retalhos. O tapete, como um todo, é o mesmo, mas como a forma e a cor são menos claros, menos definidos do que nas paisagens da Europa, tem-se a impressão de se estar olhando para o seu lado avesso. Isso é, claramente, uma mera imagem. Mas reflete, muito bem, as diferentes posições da Europa e da Ásia em relação a sua civilização comum. Do ponto de vista material, pelo menos uma delas parece ser o "avesso" da outra; uma sempre foi vencedora, a outra a perdedora, como se em um dado negócio (que começou, como já dizemos, conjuntamente) uma obteve todas as vantagens e a outra todos os prejuízos.

Em um dos casos (mas por quanto tempo ainda?) a expansão populacional abriu caminho para o progresso agrícola e industrial, de modo que os recursos cresceram mais rapidamente que o número de pessoas que os consumiam. No outro caso, o mesmo fenômeno tem, desde o início do século XVIII, assumido a forma de uma constante redução do montante retirado por cada indivíduo de um total comum que tem ficado mais ou menos estacionário.

É ao nascimento e desenvolvimento da vida urbana que a Europa tem atribuído os mais elevados valores materiais e espirituais? Mas a incrivelmente rápida taxa de desenvolvimento urbano do Oriente (ex: em Calcutá, a população cresceu de 2 a 5 milhões de habitantes em um período de poucos anos) tem tido o efeito de concentrar, nas áreas mais pobres, miséria e tragédias que nunca apareceram na Europa, exceto como contrapartes a avanços feitos em outras direções. Pois a vida urbana no Oriente não significa nada senão promiscuidade, a mais elementar falta de higiene e conforto, epidemias, subnutrição, insegurança e corrupção física e moral resultantes de uma existência coletiva e super concentrada. Tudo o que parece ser no Ocidente um acidente meramente patológico, resultante de um processo normal de crescimento, é o estado normal das coisas no Oriente, que joga o mesmo jogo, mas está condenado a ficar com as piores cartas.
[…]
Nunca é demais dizer que foi a Europa que, ao forçosamente incorporar a ainda primitiva Ásia a um sistema econômico mundial exclusivamente interessado em explorar suas matérias primas, mão de obra e possibilidade de novos mercados, criou uma crise (sem dúvida involuntária, e não menos pelos benefícios do que pelos abusos do processo). É sua, hoje, a responsabilidade de remediar essa crise.

Comparando-se com a América, a Europa reconhece sua posição menos favorável no que concerne a riquezas naturais, pressão populacional, produção individual e nível médio de consumo. Certo ou errado, por outro lado, a Europa se orgulha de prestar mais atenção aos valores espirituais. Deve-se admitir que a Ásia poderia pensar de maneira semelhante em relação à Europa, cuja modesta prosperidade representa para ela um luxo sem justificativas. De uma certa forma, a Europa é a "América" da Ásia. Essa "Ásia" tem menos ricos e maior população, é carente do capital necessário e dos técnicos para sua industrialização e está vendo seu rebanho e seu solo se deteriorando a cada dia enquanto sua população cresce a uma taxa sem precedentes. Essa mesma Ásia está constantemente inclinada a lembrar a Europa da origem comum dos dois continentes e de sua situação desigual quanto à exploração de seu patrimônio comum.

A Europa deve se reconciliar com o fato de que a Ásia tem sobre ela as mesmas demandas morais e materiais que ela, Europa, tem sobre os Estados Unidos. Se a Europa considera ter direitos perante o Novo Mundo, cuja civilização descende dela, então ela nunca deveria se esquecer de que esses direitos podem ser apenas baseados em fundamentos históricos e morais que criam para ela, em retorno, pesadas obrigações diante de um mundo do qual ela mesma nasceu.

No entanto, o Ocidente não deve temer que, nesse acerto de contas com o Oriente, este último seja o único beneficiário. Preocupado por muito tempo com o aspecto econômico das relações entre os dois mundos, o Ocidente provavelmente negligenciou várias lições que ele pode aprender com a Ásia. Não é tarde demais para começar agora.

Corpo e espírito


Apesar do interesse demonstrado por acadêmicos e do remarcado trabalho feito por orientalistas dos séculos XIX e XX, a mente ocidental não tem, como um todo, sido muito aberta às mensagens do pensamento asiático. Parecia difícil compreender quando foram feitas tentativas para introduzir esse pensamento a grupos de povos que não tinham a experiência básica que lhe era essencial.

Toda a civilização ocidental tem uma tendência a separar tanto quanto possível as atividades corpóreas das espirituais, ou ainda tratá-las como dois mundo incomunicáveis. Isso está refletido em suas idéias filosóficas, morais e religiosas e nas formas assumidas por suas técnicas e pela vida cotidiana. Foi apenas recentemente, com o desenvolvimento da psiquiatria, da análise e da medicina psicossomática, que o Ocidente realmente começou a entender a inseparabilidade dos dois mundos. Esse segredo, que lhe é novo e que o Ocidente maneja de forma tão desajeitada, é conhecido pela Ásia já há muito tempo. É verdade que ela o utiliza para finalidades que não seria exatamente os mesmos. Isso porque o Ocidente, que por três séculos tem se concentrado no desenvolvimento de processos mecânicos, esqueceu (ou nunca tentou desenvolver) aqueles processos do corpo que podem produzir naquele instrumento – o único que é natural e que está mais universalmente à disposição do homem – efeitos cuja diversidade e precisão são, em geral, desconhecidos.

Essa redescoberta do corpo humano, na qual a Ásia poderia ser um guia para a humanidade, também representaria uma redescoberta da mente humana, uma vez que iluminaria (assim como a Yoga e outros sistemas semelhantes) uma rede de ações e símbolos, experimentos mentais e processos físicos que, a menos que sejam conhecidos, poderiam provavelmente prevenir uma abordagem psicológica e filosófica do Oriente como nada mais do que uma fórmula vazia.

Encontrado na Ásia, esse sentimento de interdependência entre os aspectos da vida, que em qualquer outro lugar se tentou isolar, e de compatibilidade de valores às vezes considerados incompatíveis, também é encontrado na esfera do pensamento político e social. A primeira ilustração disso pode ser constatada no campo da religião. Do budismo ao islã, precedidos pelas várias formas do hinduísmo, as religiões do sul da Ásia têm mostrado sua supremacia na arte de viver, com compreensão, com formas muito diferentes de crença.



Quando os muçulmanos controlavam os mercados de porcos...


Em Bengala Oriental (hoje Bangladesh), não muito longe da fronteira com Burma, vê-se, lado a lado, mesquitas vazias de imagens, templos hindus onde os ídolos se agrupam em famílias, cada um deles sendo o receptáculo de um deus, e pagodes budistas repletas de imagens (objetos simples para contemplação) de um único sábio superior a deuses e aos homens. Essas formas irreconciliáveis e ao mesmo tempo complementares de fé humana puderam coexistir pacificamente, a ponto de as autoridades muçulmanas supervisionarem mercados nos quais a única carne vendida era de porco (a principal comida dos camponeses mongóis no interior de Chittagong). Além disso, jovens budistas, sob o olhar de seus monges, entusiasmadamente ajudavam a puxar a carruagem da deusa Kali para o rio, por ocasião do festival hindu.

Seria fácil contrastar essa imagem idílica aos massacres e incêndios que marcaram a separação do Paquistão da Índia. Mas no caso dessas seqüelas universais do veneno nacionalista, não é o Ocidente que tem a principal responsabilidade? As únicas tentativas de unificação política feitas pelo sul da Ásia – antes que a Europa nos compelisse em pensar em unificação nos moldes europeus – foram desenvolvidas em uma atmosfera bem diferente. Dos tempos de Asoka – de quem o Diretor Geral da UNESCO, em seu discurso para a Comissão Nacional Indiana, disse que ele “chegou ao conceito de um comitê universal que buscasse o bem de todas as criaturas” – a Gandhi, o ideal buscado sempre foi o da fraternidade pacífica. Esse ideal é particularmente evidente nos feitos políticos e estéticos do Imperador Akbar, cujos palácios em ruínas – uma combinação de estilos persas, hindus e europeus, lado a lado – afirmam a vontade e a possibilidade de que diferentes raças, crenças e civilizações vivam juntas em harmonia.

Essa é uma versão abreviada do artigo publicado no Boletim Internacional de Ciências Sociais, Vol. III, No. 4, periódico trimestral publicado pela UNESCO.

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