Por Beatriz Bissio
O Magreb do século XIV, que deu ao mundo uma personalidade como o historiador Ibn Khaldun (Túnis, 1332- Cairo, 1406), um dos mais brilhantes exemplos do pensamento islâmico de todas as épocas, não era nem foi nunca o coração dos domínios muçulmanos, e sim uma região periférica. Porém, Ibn Khaldun teve oportunidade de conhecer e morar nos grandes centros de poder, que também eram os pólos de efervescência cultural, notadamente o Cairo, sob controle mameluco, onde exerceu a função de cádi (juiz) e lecionou na Universidade de al-Azhar.
No período compreendido entre os séculos XIII e XIV as fronteiras do mundo muçulmano mudaram substancialmente. Na área oriental, uma dinastia mongol, vinda da Ásia Oriental, conquistou o Irã e o Iraque, e colocou um fim ao califado abássida em Bagdá, em 1258. Convertidos ao Islã, os mongóis foram freados na sua tentativa de marchar para o oeste pelo exército egípcio formado por escravos militares (mamelucos). Oriunda do Cáucaso e da Ásia Central, a elite militar mameluca governou o Egito por mais de dois séculos (1250-1517); também governou a Síria a partir de 1260, e controlou as cidades santas da Península Arábica. Na parte ocidental, o declínio da dinastia almôada deu lugar a vários estados; no Magreb, entre eles, o dos marínidas no Marrocos (1196-1465) e o dos hafsidas, na Tunísia (1228-1574). A maior parte de Al-Andalus, a Península Ibérica muçulmana, de onde provinha a família dos Beni Khaldun, caiu nas mãos dos reinos cristãos do Norte e, em meados do século XIV, do antigo esplendor muçulmano só restava o reino de Granada, no sul.
As guerras e lutas internas que caracterizaram todo o século XIV, provocaram a ruína de muitos centros urbanos e o empobrecimento das finanças públicas no mundo islâmico. Mas, no Magreb nesse século se consolida uma identidade cultural, com características singulares dentro do mundo islâmico. Afastado longos anos da sua terra natal, à qual nunca regressou depois de partir num auto-exílio, Ibn Khaldun cultivou até o fim da vida as raízes magrebinas e, sempre que possível, mostrou orgulho em pertencer ao entorno geopolítico e cultural forjado sob a influência de al-Andalus, terra de seus antepassados.
Abdesselam Cheddadi, responsável pela mais recente e completa tradução comentada da obra do sábio muçulmano para o francês, afirma que Ibn Khaldun foi testemunho de uma época de transição, na qual os países muçulmanos trataram de preservar o conhecimento do período clássico nos planos jurídico e religioso, assim como nos domínios científico, artístico e literário. Nesse momento histórico, o Islã estava mais voltado para o passado do que para o futuro.
Quando Ibn Khaldun assume a tarefa de sistematizar todo seu conhecimento e sua experiência em um livro – missão que se impõe durante quatro anos de reclusão em uma fortaleza do interior da Argélia, como destaca na sua autobiografia – ele busca dar uma resposta radical ao desafio vivido pelo Islã: fazia-se necessária uma nova ciência, que fornecesse leis universais capazes de explicar o funcionamento das sociedades humanas. É essa ciência que ele pretende fundar com sua mais importante obra, a Muqaddimah, pela qual passou à posteridade. O esforço não foi em vão: esse livro – na verdade os Prolegómenos a uma História Universal em vários volumes - é considerado há mais de um século uma obra clássica do pensamento histórico, a primeira tentativa conhecida de criar uma ciência das sociedades independente da teologia e da filosofia. Afastando-se da tradição, Ibn Khaldun chegava aos limites possíveis, na época, da independência de pensamento.
Islã: divisão política, unidade cultural e religiosa
Se o mundo islâmico apresentava no século XIV um cenário convulsionado, com a economia e a política em fase crítica, a instabilidade nesses terrenos não conseguiu destruir a unidade cultural; ao contrário, ela tornava-se mais profunda à medida que novos contingentes humanos se convertiam à fé muçulmana. De fato, a essa altura, seguindo o vale do rio Nilo e a costa oriental africana, a religião islâmica continuava a sua expansão, ao longo das rotas comerciais, levada muitas vezes pelos próprios mercadores e indiferente aos conflitos políticos e militares. O avanço continuou pelo Sahel e pela margem sul do deserto do Saara, chegando ao coração da África.
Ibn Khaldun não observa a conflitiva situação do Magreb e do mundo islâmico com a perspectiva de um progresso linear, mas no contexto de uma evolução cíclica: uma fase negativa que põe fim a um ciclo do poder será seguida necessariamente de uma fase positiva, de reconstrução. Assim, o século XIV se apresentaria como um período de espera de um novo ciclo da civilização (umram) sob a égide de um novo povo – que ele identifica, perto do fim da sua vida, com os turcos. É alicerçado nessa concepção da história que Ibn Khaldun, apesar das dificuldades e desafios desse momento – incluindo os horrores da devastadora peste negra, que vitimou seus pais e seus primeiros mestres e dizimou a população do mundo árabe-islâmico tanto quanto a da Cristandade - não desenvolve uma visão pessimista. Na verdade, ele acredita que a ordem humana, uma vez atingida a maturidade, é essencialmente estável, quase imutável. E, na sua avaliação, essa maturidade tinha sido atingida pela civilização islâmica.
Isso não significa que não houvesse ainda a possibilidade de aperfeiçoamentos. Mas, Ibn Khaldun considera, de um lado, que as ciências e as técnicas, com a herança acumulada dos gregos, dos persas e dos árabes, já atingiram o nível máximo do potencial do espírito humano; pensa, também, que com o Islã a religião chegara ao seu mais alto grau de perfeição. A historiadora tunisiana Hasna Trabelse afirma que Ibn Khaldun teria escrito a Muqaddimah e os livros seguintes convencido da necessidade de deixar para a posteridade um quadro do conjunto da civilização árabe-muçulmana.
Na sua obra, o historiador define a civilização humana como sendo formada por indivíduos livres, autônomos e iguais e constituida por dois pólos em equilíbrio, a civilização rural (umram badawi) e a civilização urbana (umram hadari), sendo ambas complementarias. Para chegar a essa conclusão toma como referência de análise as formas utilizadas pelo homem para assegurar sua subsistência e analisa, ainda, a cidade, acompanhando as suas mudanças ao longo do tempo e as particularidades culturais e regionais no uso e organização do espaço.
Referencie-se que Ibn Khaldun coloca o ponto de mutação cultural na história da Humanidade na urbanização, condição necessária, na sua análise — mesmo que não suficiente, por razões que desenvolve ao estudar a decadência dos impérios —, para o desenvolvimento da civilização. A partir daí, o historiador estuda a influência que o espaço físico, social, institucional e econômico tem na história e chega à conclusão que o meio geográfico cria possibilidades importantes para a vida dos grupos sociais, mas não exerce um determinismo rigoroso.
Tendo sido de todos os seus contemporâneos o historiador que foi mais longe na sua independência de pensamento, Ibn Khaldun mergulhou na analise do funcionamento da sociedade humana, no estudo das transformações sociais nos períodos de longa duração e enfatizou a necessidade de definir uma metodologia específica para o estudo dos fatos históricos, incluindo aí um critério de escolha do corpus documental. Nesse sentido, a sua obra foi extremamente original e não fez escola nem deixou seguidores.
Mas, se na sua época e no século imediatamente posterior, a obra de Ibn Khaldun não chegou a ser compreendida na sua singularidade e profundidade, os mesmos motivos pelos quais isso ocorreu foram os que lhe deram a fama e a relevância que hoje lhe são reconhecidas. Ahmed Abdesselem assinala que Ibn Khaldun é certamente um dos pensadores (se não o pensador) dos séculos passados mais estudados do mundo árabe-muçulmano na atualidade.
No Ocidente, a obra de Ibn Khaldun ganhou reconhecimento a partir do trabalho desenvolvido na França, no século XIX, por Antoine Isaac, Baron Silvestre de Sacy (1758-1838), gramático e editor de textos árabes e persas. A partir de então passa a ser conhecida em toda a Europa. O impacto das idéias de Ibn Khaldun nos círculos intelectuais europeus pode ser medido pelo uso que delas fizeram algumas das figuras mais proeminentes do continente, como o filósofo alemão Friedrich Engels, fundador junto com Karl Marx, do socialismo científico.
A obra de Ibn Khaldun, hoje traduzida em numerosos idiomas, foi conservada em vários manuscritos, dispersos pela África, Ásia e Europa, alguns deles produzidos ainda em vida do autor, que se preocupou em autenticar as cópias, encaminhando muitas delas para bibliotecas e madrassas.
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Por Beatriz Bissio , jornalista, socióloga e Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense. Foi fundadora e diretora da revista “Cadernos do Terceiro Mundo”.
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