Enquanto na Europa os loucos eram presos em camisas de força, algumas das sociedades primitivas os tratavam com métodos que se assemelham bastante à psicanálise, explica Lévi-Strauss em artigo para o Correio de julho e agosto de 1956, no qual ele traça paralelos entre rituais xamânicos e psicoterapias modernas.
Muitos de nós consideramos a psicanálise como uma descoberta revolucionária da civilização do século XX e a colocamos no mesmo patamar da genética ou da teoria da relatividade. Outros, provavelmente mais conscientes dos abusos da psicanálise do que das verdadeiras lições que ela nos ensina, ainda a enxergam como um dos absurdos do homem moderno. Em ambos os casos, nós subestimamos o fato de que os psicanalistas simplesmente redescobriram e expressaram em novos termos uma abordagem para o sofrimento mental que provavelmente data dos primeiros dias da humanidade e que os assim chamados povos primitivos têm usado desde sempre, com uma habilidade que não raro impressiona nossos melhores profissionais.
Em Janeiro-fevereiro de 1936, Kejara compreendia uma "casa dos homens" e 27 outras casas, muitas das quais habitadas por várias famílias. [...] Apenas um dos nativos, que escapou das missões, falava português fluentemente. Aparentemente houve um tempo no qual ele era capaz de ler e escrever na língua. Quatro ou cinco entendiam-na, mas possuíam um vocabulário de apenas algumas poucas palavras.
Lévi-Strauss, 1936
Veja o link: Índios Bororó
Alguns anos atrás, etnólogos suecos gravaram e publicaram um longo ritual de cura usado entre os índios Cuna, do Panamá, em casos de dificuldades no parto. No ritual, o pajé da tribo se coloca diante da mulher que sofre e começa a recitar um canto, explicando que a sua indisposição é devida à ausência temporária da alma que controla a procriação. Os índios Cuna acreditam na existência de uma pluralidade de almas, cada qual a cargo de uma função específica na vida. Nesse caso particular, a alma fora seqüestrada e levada para um outro mundo por alguns espíritos do mal. O pajé diz à mulher que espera se tornar mãe que ele está realizando uma busca sobrenatural pelo espírito perdido. Com uma rara riqueza de detalhes ele descreve os obstáculos que encontra e os inimigos que tem que enfrentar; como ele os derrota pela força ou por trapaças antes de alcançar a prisões da alma capturada. Ele então liberta a alma e a induz a retomar o controle do corpo que sofre deitado ao seu lado.
Curas de pajés, precursoras da psicanálise
Esta forma de cura (não temos razão para supor que ela não é bem-sucedida, ao menos em certos casos) é interessante por várias razões. Primeiramente, ela é puramente psicológica; não são usados medicamentos nem o corpo do paciente é tocado. O pajé simplesmente recita ou canta, confiando apenas no discurso para efetuar a sua cura. Em segundo lugar, duas pessoas devem participar do tratamento – o médico e o paciente – embora, como veremos em breve, isso não significa que outros membros da comunidade não possam estar presentes.
Das duas pessoas, o pajé, cujos poderes são reconhecidos por toda a tribo, encarna a autoridade social e o poder da ordem, enquanto o outro (o paciente) sofre do que deveria ser chamada uma desordem psicológica, mas que os índios atribuem a uma vantagem adquirida pelo mundo espiritual sobre o mundo humano. Dado que esses dois mundos devem estar normalmente alinhados e o mundo espiritual tem a mesma natureza que o das almas dos indivíduos, o problema, na forma como os índios o vêem, realmente deriva de um distúrbio sociológico causado pela ambição, suscetibilidade a doença ou ressentimento do espírito que se deve a fatores sociais e psicológicos.
Com a descrição das causas do mal-estar e o recontar de suas aventuras no outro mundo, o pajé conjura para os seus ouvintes algumas imagens familiares, tiradas de suas crenças e dos mitos que são da herança comum de toda a tribo. Como as curas são conduzidas em público, os jovens da tribo as testemunham e assim adquirem um conhecimento detalhado das crenças da tribo.
Várias das características descritas lembram estranhamente o tratamento psicanalítico. Aqui também a doença é considerada de origem psicológica e o tratamento aplicado é exclusivamente psicológico. Porque incapaz de controlar os sintomas ou mais simplesmente porque está sofrendo de estresse mental, o paciente se sente alijado da comunidade e chama pelo médico, cuja autoridade é reconhecida pelo grupo, para ajudá-lo a retomar o seu lugar na sociedade. O tratamento busca induzir o paciente a descrever eventos sepultados no seu inconsciente mental, mas que, não obstante o passar do tempo, ainda governam os seus sentimentos e atitudes em relação à vida.
Existem eventos ou histórias que têm sua origem num passado tão distante que a sua verdadeira unidade foi perdida, embora, melhor que eventos mais recentes, eles nos permitam entender a natureza do que está acontecendo nos dias de hoje. Essas histórias são o que os sociólogos chamam de "mitos". Seria muito difícil dar uma melhor definição para a palavra.
Convergências e divergências
A principal diferença entre a medicina tradicional (como no exemplo da mãe grávida acima) e o tratamento por psicanalistas é que no primeiro caso é o médico quem usa a palavra enquanto no segundo caso é o paciente. Um bom psicanalista que conhecemos raramente dirá uma palavra durante a maior parte do tratamento, seu papel é oferecer ao paciente um estímulo (alguém pode até dizer uma provocação) que a presença de uma outra pessoa provê, de modo que o paciente possa destilar todas as suas emoções agressivas sobre essa "outra pessoa" sem nome.
Em ambos os casos, a criação de um mito é parte do tratamento. A diferença é que com os Cuna o mito já é construído. Familiar a todos e perpetuado pela tradição, o pajé apenas o adapta a cada caso individual.
No caso do parto, por exemplo, o pajé traduz o mito em termos que são significativos para a mãe. Isso a permite nomear, então entender e talvez finalmente dominar a ansiedade que até então ela tem sido totalmente incapaz de expressar por qualquer outro modo.
Na psicanálise, todavia, o paciente elabora o seu próprio mito. Quando paramos para pensar sobre isso a diferença não é tão grande, porque a psicanálise reduz a causa das desordens psicológicas a um número muito pequeno de situações possíveis entre as quais o paciente pode escolher, mas não pode fazer muito mais a respeito. Todas elas dizem respeito a experiências anteriores na vida do paciente e sua relação com sua família enquanto criança. Aqui também, um estado de alívio é alcançado quando as ansiedades que o paciente não poderia expressar ou não ousou admitir é ao menos traduzida em termos de um mito que se encaixa em sua história particular.
Para trazer um pouco de conforto aos psicanalistas e seus seguidores, permitam-me deixar claro ao menos que, ao utilizar a palavra "mito", eu não quero dizer que a história em questão é falsa ou inventada. Muitos mitos são baseados em ocorrência real mas, como eu tenho indicado, o que faz um mito depende não apenas de quão precisamente ele reflete a história ou o evento originais mas a sua capacidade de dar significado ao presente.
Portanto, não é uma surpresa descobrir que habilidosos psicanalistas que visitaram sociedades primitivas para fazer pesquisas com os mais atualizados métodos de investigação se encontraram em pé de igualdade com a medicina tradicional, e em alguns casos até mesmo reconheceram a superioridade desta última.
Essa foi a experiência do psicólogo americano Dr. Kilton Stewart, contada em seu livro Pigmeus e Gigantes dos Sonhos [New York, 1954]. Ele tinha partido para o interior das Filipinas para estudar a formação mental das tribos de pigmeus extremamente primitivos, chamados negritos. Seus métodos se pareciam com aqueles utilizados pelos psicanalistas. Os pajés não apenas lhe permitiram fazer como ele queria, como também o aceitaram imediatamente como um deles. Em verdade, considerando-se especialistas com um profundo conhecimento das técnicas utilizadas, eles insistiram em ajudá-lo em seus estudos. O Dr. Stewart considera que, em alguns aspectos, a psicoterapia deles está até mesmo à frente da nossa.
Eu já mencionei que os xamãs fazem o tratamento em público. Assim, todos os membros da comunidade gradualmente adquirem a crença de que quaisquer desordens de que possam eventualmente sofrer podem ser tratadas pelos mesmos métodos que eles vêem serem utilizados com tamanha freqüência. Além disso, já que eles sabem com antecedência todos os estágios do tratamento, eles já ficam prontos e dispostos a participar nele, utilizando palavras de encorajamento, ajudando o paciente a controlar suas memórias e demonstrando um entusiasmo contagiante à medida que o paciente se recupera de sua desordem.
Como o Dr. Stewart observa nessa conexão, isso nos leva para além da psicanálise, para um dos seus mais recentes avanços, a psicoterapia de grupo. Uma de suas formas mais familiares é o psicodrama no qual vários membros do grupo interpretam as características do mito do paciente a fim de ajudá-lo a ver mais claramente e com isso pôr fim à tragédia. Isso só é possível se o mito do paciente tem uma natureza social. Outros indivíduos podem representar um papel nele porque ele também é o mito deles. Ou, de outra maneira, porque as situações críticas nas quais os indivíduos podem se encontrar em nossa sociedade são, de maneira geral, as mesmas para todos.
Nós então vemos o quão enganosa é a idéia de que os eventos esquecidos que os psicanalistas ajudam o paciente a se lembrar são privados e pessoais. Nesse caso, a diferença entre a psicanálise e os tratamentos xamânicos desaparece.
"Como em Paris e em Viena", escreve o Dr Stewart, "os terapeutas negritos estavam ajudando o paciente a entrar em contato com padrões e incidentes de um passado longínquo, incidentes dolorosos enterrados nas camadas iniciais da experiência acumulada, que formou a personalidade".
Transforme a desordem mental em talento criativo
Pelo menos em um aspecto o sistema primitivo parece ser mais audacioso e mais eficaz que o nosso. O Dr Stewart descreve uma experiência que ele poderia ter tido em qualquer parte do mundo, entre quaisquer dos povos que gostamos de chamar de primitivos. Quando ele estava prestes a acordar um paciente de um sonho no qual ele estava contando incidentes de sua vida passada – um conflito com seu pai, transposto em forma de mito de uma visita ao país dos mortos – seus colegas negritos o impediram. Eles diziam que, para que fosse realmente curado, o espírito da doença deveria dar um presente à sua vítima sob a forma de um toque de tambor, uma dança ou uma canção. De acordo com a teoria tribal, não é suficiente remover a inferioridade social atribuída à doença: ela deve ser transformada em uma vantagem positiva, uma superioridade social comparável àquela que vemos no espírito criativo.
“Na verdade, impulsos e emoções não explicam nada. Eles são sempre o resultado seja do poder do corpo ou da impotência da mente. Conseqüentemente, em ambos os casos, eles nunca são as causas. Essas causas não podem ser localizadas no organismo, o que só a biologia pode fazer, ou no intelecto, que representa o único caminho aberto à psicologia e à etnologia."
Claude Lévi-Strauss, "O Totemismo Hoje", 1962.
Essa conexão entre o equilíbrio psicológico anormal e a arte criativa não é desconhecida por nossas próprias teorias. Temos tratado muitos gênios, tais como Gerard de Nerval, van Gogh e outros, como psicóticos. Na melhor das hipóteses, estamos às vezes preparados para perdoar algumas loucuras porque elas são cometidas por um grande artista. Mas até mesmo os negritos pobres das selvas de Bataan estão muito à frente de nós nesse respeito, uma vez que eles perceberam que um meio de remediar uma desordem mental, prejudicial tanto ao indivíduo que sofre dela quanto à comunidade que necessita da cooperação saudável de todos, é transformá-la em uma obra de arte. Esse é um método pouco utilizado entre nós, embora seja a ele que devemos o trabalho de artistas tais como Utrillo.
Portanto, temos muito a aprender da psiquiatria primitiva. Ainda à frente da nossa própria psiquiatria em muitos aspectos, quão à frente teria estado ela há não muito tempo (as tradições custam morrer conosco), quando não conhecíamos outro meio de tratar pacientes mentais senão constrangendo-os e deixando-os morrer de fome!
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