sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Atahualpa Yupanqui: artista do essencial

“Como se pode dizer, ele tinha uma cara de índio... Seu cabelo permaneceu negro até o último minuto… Ele tinha olhos penetrantes e você se sentia nua em sua frente... Era muito carinhoso...” Ele nasceu há cem anos em Campo de la Cruz, na província de Buenos Aires. Morreu em 1992, em Paris. Foi o cantor dos mais humildes. Viajante solitário, percorreu os Andes no lombo de uma mula, salvando tesouros musicais ameríndios do esquecimento. Viajou por todo o mundo com seu violão, sendo aclamado por todas as partes onde passava, e coletou cerca de 12 mil canções. Seu nome é Atahualpa Yupanqui. O artista teve uma vida excepcional durante a qual, como diz a frase de Andrea Cohen, viveu três vidas.



Andrea Cohen, que escreveu esse tributo ao seu compatriota famoso, produziu um programa de rádio sobre ele em 2005 para a França Cultura, a estação cultural da Rádio França.

Atahualpa Yupanqui é, sem dúvida alguma, o mais reconhecido e emblemático dos exilados argentinos em Paris. Também o mais enigmático. Deixou a Argentina, mas o país permaneceu dentro dele, penetrando cada um dos seus versos e notas musicais. Ele era a encarnação de tudo o que é andino, até mesmo em seu nome. O homem cujo nascimento há cem anos hoje comemoramos não recebeu o nome de Atahualpa Yupanqui, mas de Héctor Roberto Chavero. Seu pai veio de uma antiga família argentina, sua mãe era basca e ele nasceu na província de Buenos Aires.

A escolha do pseudônimo simbólico, composto pelos nomes de dois imperadores incas, expressa sua reivindicação de uma cultural ancestral no solo da América indígena, onde não há fronteiras entre a Argentina, a Bolívia e o Peru… Foi com essa identidade especial que ele cresceu para se tornar o poeta do universal.

Pode parecer paradoxal para um artista de seu calibre, que deixou seu país por causa de sua afiliação ao Partido Comunista, ter decidido passar o resto de sua vida no exílio. Ele aparentemente precisava de distância, isolamento ou silêncio, para preservar sua arte.

As três vidas de Atahualpa Yupanqui



© Flickr
Atahualpa: um argentino em Paris.


Lendo a biografia de Atahualpa Yupanqui, percebe-se que ele teve várias vidas. Na primeira, escreveu poemas e os transformou em música, viajou pela Argentina, viveu com fazendeiros e colecionou canções populares, adquirindo um repertório que permaneceria como sua principal fonte de inspiração.

Em sua segunda vida, por volta dos anos 40, partiu para a França, viveu em Paris, encontrou-se com poetas e artistas que eram comunistas como ele: Eluard, Aragon, Picasso. Foi durante essa época que seu talento como poeta e músico foi descoberto por Edith Piaf, que o convidou para se apresentar na abertura de seu show no Théâtre de l’Athénée. O público francês foi imediatamente conquistado. Ele então começou a fazer suas primeiras turnês pela Europa Oriental.

Finalmente, na terceira vida de Atahualpa, ele era um cantor, poeta e compositor conhecido e reconhecido pelo mundo afora. Também era idolatrado em sua terra natal, onde alguns de seus versos se tornaram provérbios. Ainda hoje, os argentinos dizem «las penas son de nosotros, las vaquitas son ajenas» (os problemas são nossos, as vacas são dos outros").

Eu não sou nada mais do que o silêncio



©
Sepultura de Atahualpa Yupanqui no cemitério de Cerro Colorado, em Córdoba, Argentina.


Quando fiz meu programa de rádio sobre Atahualpa, eu me encontrei com pessoas que o conheciam e eram seus amigos. O pianista Miguel Angel Estrella (embaixador da Boa Vontade da UNESCO) lembrou-se, durante nossa entrevista, de como seu amigo Atahualpa vinha visitá-lo em seu apartamento em Paris e dizia: “Purifique minha alma, Miguel, toque Bach, toque Bach”.

Em um registro menos pessoal, fui encontrar um de seus fãs franceses, o virtuoso organista Louis Thiry, que conheceu Atahualpa Yupanqui apenas por meio de suas gravações. Ele se declarou “fascinado pela verdade que emana de sua música” e explicou que “a virtude está oculta, a interpretação é simples, sem pretensão ou artifício... Tanto na voz quanto no instrumento, ele vai direto à essência”.

Também falei com Françoise Thanas, uma de suas amigas parisienses de muitos anos, que traduziu seus poemas e escreveu um livro sobre ele. Ela se lembra de Atahualpa como um homem silencioso. "Silêncio, modéstia, essas são palavras que combinam com ele", disse, antes de recitar um trecho de um poema que se parece com um retrato do artista:

“Como lama, sou visto
E eu tenho o céu dentro de mim.
Como pedra, sou sentido
E sou silêncio
Nada mais.”

Angel Parra, outra artista latino-americana exilada, amiga próxima e vizinha de Atahualpa, completa o retrato. “Como se pode dizer, ele tinha uma cara de índio... Seu cabelo permaneceu negro até o último minuto... Ele tinha olhos penetrantes e você se sentia nua em sua frente... Era muito carinhoso...” E acrescenta: “Ele estava no exílio em praticamente todos os lugares”.

Quanto a mim, gostaria de terminar esse tributo citando a letra de uma de minhas músicas favoritas, Los hermanos, que para mim é o melhor resumo da personalidade de Atahualpa Yupanqui: “Yo tengo tantos hermanos que no los puedo nombrar /Y una hermana muy hermosa que se llama libertad.” (“Tenho tantos irmãos que não lhes posso dar nomes/ E uma irmã muito bonita que se chama liberdade”).

Andrea Cohen, pianista e compositora franco-argentina.

Nenhum comentário: