Há mais complicações no Paquistão além dos problemas econômicos, afirma Lévi-Strauss no primeiro artigo que escreveu para o Correio, em maio de 1951. Uma jovem nação fundada sobre uma antiga civilização, o Paquistão sintetiza em seus problemas a totalidade do desenvolvimento humano.
De todos os países que compõem o mundo que habitamos, o Paquistão é um que provavelmente apresenta as mais peculiares características. As leis que definem a sua existência declararam que ele foi fundado como um estado no qual todos os muçulmanos poderiam viver de acordo com os princípios do Islã. Como tal, ele provê uma morada espiritual para todos os membros de uma única comunidade religiosa a despeito de suas origens nacionais. Todavia, o Paquistão permanece uma nação no sentido mais profundo da palavra. Ele agrupa, sob a mesma autoridade unificada, um território que por milhares de anos tem sido habitado pelas mesmas pessoas, muitas das quais têm dividido por séculos os mesmos princípios morais, políticos e religiosos que formam a base do novo estado.
Esse duplo aspecto – uma morada espiritual e uma realidade nacional – caracteriza o Paquistão de hoje. E ele explica também certos paradoxos. Se de um lado o Paquistão almeja reunir muçulmanos de toda a antiga Índia, na verdade 40 milhões de muçulmanos – ou cerca de 30 % do número total – ainda estão espalhados em outras partes do subcontinente.
Como uma nação, o Paquistão definiu fronteiras e algumas características geográficas e sociológicas distintivas. Como morada espiritual, de certa forma ele antecipa sua individualidade nacional. Ele precisa se moldar – com grande zelo criativo – na imagem da grande promessa que pretende ser, não apenas para o seu próprio povo, mas também para todos aqueles que um dia podem ir até lá buscar um modo de vida pautado pela manutenção da fé.
A fibra de ouro
É preciso apenas um breve olhar para um mapa para entender a complexidade de problemas que confrontam esta nação que estabeleceu, para si própria, esses imensos requisitos. Não apenas 1.500 quilômetros do território indiano dividem o Paquistão entre uma porção leste e uma porção oeste; como também diferenças no clima, na geografia física e mesmo na linguagem separam as duas regiões. O Paquistão Oriental tem a maior população, embora seja de longe a menor área; todavia é o Paquistão Ocidental, que é menos fértil, que compensa a escassez de comida na zona oriental. Essa zona (a Bengala Oriental) é quase toda dedicada ao cultivo da juta, que permite ao governo equilibrar o seu orçamento nacional.
O Paquistão acaba por ter praticamente um monopólio mundial em juta não-industrializada. Todavia, o país não apenas é incapaz de converter a fibra por falta de plantas industriais próprias para produtos de juta, como também a inadequação das estruturas portuárias impede até mesmo a sua exportação.
Para remediar essa situação, o governo tem investido numa série de projetos de industrialização para a construção de quatro usinas de juta em Narayanganj, uma hidrelétrica e uma usina de papel no rio Karnafully; além de novas estruturas portuárias em Chittagong, um novo porto no delta do Ganges, estações de energia em Malakand e refinarias de açúcar em Mardan.
Mas os imensos problemas no financiamento desses projetos e na transformação de uma vasta porção dos camponeses analfabetos em trabalhadores técnica e socialmente bem-educados representam formidáveis obstáculos. Aqui, os programas de Assistência Técnica das Nações Unidas e da UNESCO e o programa Ponto IV dos Estados Unidos podem auxiliar na superação de algumas dificuldades.
A separação e a conseqüente independência do Paquistão trouxeram consigo imensa miséria e sofrimento. Desde 1947, oito milhões de refugiados têm vagado pelo Paquistão Ocidental (Sind e Punjab) de todas as partes da Índia, deixando para trás tudo o que valorizam – suas coisas pessoais, suas economias, terras e restos mortais de seus antepassados – a fim de integrar a comunidade espiritual de suas próprias escolhas.
Apesar dos esforços do governo central, centenas de milhares desses refugiados ainda vivem em condições que são difíceis de descrever. Sem dúvida, a ajuda material deve ser oferecida primeiro aos adultos, mas o problema da readaptação e da reabilitação de crianças não é menos importante do que o de outras crianças durante e após a última guerra mundial, quando psicólogos, sociólogos, psiquiatras e educadores de todas as partes do mundo se reuniram para encontrar uma solução.
A crise dos botões de pérola
"Quem melhor que a UNESCO pode chamar a atenção dos cientistas e técnicos para o fato (que eles tendem a subestimar com tanta freqüência) de que os propósitos da ciência não são apenas os de resolver problemas científicos, mas também de encontrar respostas aos problemas sociais?"
Problemas semelhantes – e outros ainda mais específicos – também confrontam a Bengala Oriental. Para solucioná-los será necessário um grau de imaginação e de colaboração internacional que não é menor. Até o mais intensivo cultivo de juta será incapaz de absorver a mão-de-obra ociosa ou assegurar a sobrevivência da população cuja densidade demográfica excede mil habitantes por quilômetro quadrado. De fato, por séculos as pessoas têm buscado uma fonte suplementar de renda na indústria do algodão, como a manufatura de roupas muçulmanas que fez Dacca famosa. Mas até essas formas rurais de artesanato são condicionados por circunstâncias únicas. Eles dependem de mercados internacionais não apenas como fonte de matéria-prima, mas também para as vendas e o escoamento dos produtos finais.
Para tomar um caso específico, na Bengala Oriental visitei recentemente um grande número de vilas de incrível pobreza na região de Langalbund, não tão distante de Dacca. Lá, cerca de 50 mil pessoas vivem apenas da manufatura de botões de madre-pérola. Botões desse tipo, de grande uso em camisetas e roupas íntimas de baixo custo, são produzidos em grande quantidade por ferramentas manuais que poderiam muito bem haver pertencido à alta Idade Média.
As matérias-prima necessitadas para a sua produção, tal como químicos, papelão e chapas de decoração usados para montar os botões no papelão, deixaram de vir do estrangeiro desde que o Paquistão se tornou independente. Seguindo uma retração mundial da demanda, a produção de botões de pérola em vilas caiu de 60 mil grosas por semana para menos de 50 mil por mês enquanto o preço pago aos artesãos das vilas caiu 75 %.
Esse é apenas um exemplo dos aflitivos problemas que confrontam o Paquistão hoje. Seria um erro, todavia, vê-los simplesmente como problemas econômicos. Sem dúvida a chave para o dilema está antes de tudo nos técnicos.
Por exemplo, as condições materiais dos camponeses bengalis poderiam ser incrivelmente melhoradas pela introdução de pequenas máquinas operadas manualmente e especialmente fabricadas. Estas simplificariam os diferentes estágios de trabalho na indústria de botões. Mas quem melhor que a UNESCO pode chamar a atenção dos cientistas e técnicos para o fato (que eles tendem a subestimar com tanta freqüência) de que os propósitos da ciência não são apenas de resolver problemas científicos, mas também de encontrar respostas aos problemas sociais? Os esforços da ciência deveriam não apenas permitir à humanidade superar a si mesma; eles também devem ajudar aqueles que estão mais atrasados a tirar o atraso.
Uma jovem nação fundada na antiga civilização, o Paquistão, como outras nações da Ásia e da América, sintetiza os problemas de todo o desenvolvimento humano. Em um único momento ele sofre e vive na nossa Idade Média, perpetuada por suas vilas; nos nossos séculos XVIII e XIX reproduzidos por suas primeiras tentativas de industrialização; em nosso século XX, cujas vantagens está determinado a assegurar. Talvez ao prover o Paquistão com alguns dos meios para preencher essas lacunas e superar essas contradições, as nações mais desenvolvidas podem em troca aprender como a humanidade pode ser vencedora em atingir o seu pleno desenvolvimento individual sem negar nenhuma parte de sua herança e do seu passado.
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