Por Beatriz Bissio
O Magreb do século XIV, que deu ao mundo uma personalidade como o historiador Ibn Khaldun (Túnis, 1332- Cairo, 1406), um dos mais brilhantes exemplos do pensamento islâmico de todas as épocas, não era nem foi nunca o coração dos domínios muçulmanos, e sim uma região periférica. Porém, Ibn Khaldun teve oportunidade de conhecer e morar nos grandes centros de poder, que também eram os pólos de efervescência cultural, notadamente o Cairo, sob controle mameluco, onde exerceu a função de cádi (juiz) e lecionou na Universidade de al-Azhar.
No período compreendido entre os séculos XIII e XIV as fronteiras do mundo muçulmano mudaram substancialmente. Na área oriental, uma dinastia mongol, vinda da Ásia Oriental, conquistou o Irã e o Iraque, e colocou um fim ao califado abássida em Bagdá, em 1258. Convertidos ao Islã, os mongóis foram freados na sua tentativa de marchar para o oeste pelo exército egípcio formado por escravos militares (mamelucos). Oriunda do Cáucaso e da Ásia Central, a elite militar mameluca governou o Egito por mais de dois séculos (1250-1517); também governou a Síria a partir de 1260, e controlou as cidades santas da Península Arábica. Na parte ocidental, o declínio da dinastia almôada deu lugar a vários estados; no Magreb, entre eles, o dos marínidas no Marrocos (1196-1465) e o dos hafsidas, na Tunísia (1228-1574). A maior parte de Al-Andalus, a Península Ibérica muçulmana, de onde provinha a família dos Beni Khaldun, caiu nas mãos dos reinos cristãos do Norte e, em meados do século XIV, do antigo esplendor muçulmano só restava o reino de Granada, no sul.
As guerras e lutas internas que caracterizaram todo o século XIV, provocaram a ruína de muitos centros urbanos e o empobrecimento das finanças públicas no mundo islâmico. Mas, no Magreb nesse século se consolida uma identidade cultural, com características singulares dentro do mundo islâmico. Afastado longos anos da sua terra natal, à qual nunca regressou depois de partir num auto-exílio, Ibn Khaldun cultivou até o fim da vida as raízes magrebinas e, sempre que possível, mostrou orgulho em pertencer ao entorno geopolítico e cultural forjado sob a influência de al-Andalus, terra de seus antepassados.
Abdesselam Cheddadi, responsável pela mais recente e completa tradução comentada da obra do sábio muçulmano para o francês, afirma que Ibn Khaldun foi testemunho de uma época de transição, na qual os países muçulmanos trataram de preservar o conhecimento do período clássico nos planos jurídico e religioso, assim como nos domínios científico, artístico e literário. Nesse momento histórico, o Islã estava mais voltado para o passado do que para o futuro.
Quando Ibn Khaldun assume a tarefa de sistematizar todo seu conhecimento e sua experiência em um livro – missão que se impõe durante quatro anos de reclusão em uma fortaleza do interior da Argélia, como destaca na sua autobiografia – ele busca dar uma resposta radical ao desafio vivido pelo Islã: fazia-se necessária uma nova ciência, que fornecesse leis universais capazes de explicar o funcionamento das sociedades humanas. É essa ciência que ele pretende fundar com sua mais importante obra, a Muqaddimah, pela qual passou à posteridade. O esforço não foi em vão: esse livro – na verdade os Prolegómenos a uma História Universal em vários volumes - é considerado há mais de um século uma obra clássica do pensamento histórico, a primeira tentativa conhecida de criar uma ciência das sociedades independente da teologia e da filosofia. Afastando-se da tradição, Ibn Khaldun chegava aos limites possíveis, na época, da independência de pensamento.
Islã: divisão política, unidade cultural e religiosa
Se o mundo islâmico apresentava no século XIV um cenário convulsionado, com a economia e a política em fase crítica, a instabilidade nesses terrenos não conseguiu destruir a unidade cultural; ao contrário, ela tornava-se mais profunda à medida que novos contingentes humanos se convertiam à fé muçulmana. De fato, a essa altura, seguindo o vale do rio Nilo e a costa oriental africana, a religião islâmica continuava a sua expansão, ao longo das rotas comerciais, levada muitas vezes pelos próprios mercadores e indiferente aos conflitos políticos e militares. O avanço continuou pelo Sahel e pela margem sul do deserto do Saara, chegando ao coração da África.
Ibn Khaldun não observa a conflitiva situação do Magreb e do mundo islâmico com a perspectiva de um progresso linear, mas no contexto de uma evolução cíclica: uma fase negativa que põe fim a um ciclo do poder será seguida necessariamente de uma fase positiva, de reconstrução. Assim, o século XIV se apresentaria como um período de espera de um novo ciclo da civilização (umram) sob a égide de um novo povo – que ele identifica, perto do fim da sua vida, com os turcos. É alicerçado nessa concepção da história que Ibn Khaldun, apesar das dificuldades e desafios desse momento – incluindo os horrores da devastadora peste negra, que vitimou seus pais e seus primeiros mestres e dizimou a população do mundo árabe-islâmico tanto quanto a da Cristandade - não desenvolve uma visão pessimista. Na verdade, ele acredita que a ordem humana, uma vez atingida a maturidade, é essencialmente estável, quase imutável. E, na sua avaliação, essa maturidade tinha sido atingida pela civilização islâmica.
Isso não significa que não houvesse ainda a possibilidade de aperfeiçoamentos. Mas, Ibn Khaldun considera, de um lado, que as ciências e as técnicas, com a herança acumulada dos gregos, dos persas e dos árabes, já atingiram o nível máximo do potencial do espírito humano; pensa, também, que com o Islã a religião chegara ao seu mais alto grau de perfeição. A historiadora tunisiana Hasna Trabelse afirma que Ibn Khaldun teria escrito a Muqaddimah e os livros seguintes convencido da necessidade de deixar para a posteridade um quadro do conjunto da civilização árabe-muçulmana.
Na sua obra, o historiador define a civilização humana como sendo formada por indivíduos livres, autônomos e iguais e constituida por dois pólos em equilíbrio, a civilização rural (umram badawi) e a civilização urbana (umram hadari), sendo ambas complementarias. Para chegar a essa conclusão toma como referência de análise as formas utilizadas pelo homem para assegurar sua subsistência e analisa, ainda, a cidade, acompanhando as suas mudanças ao longo do tempo e as particularidades culturais e regionais no uso e organização do espaço.
Referencie-se que Ibn Khaldun coloca o ponto de mutação cultural na história da Humanidade na urbanização, condição necessária, na sua análise — mesmo que não suficiente, por razões que desenvolve ao estudar a decadência dos impérios —, para o desenvolvimento da civilização. A partir daí, o historiador estuda a influência que o espaço físico, social, institucional e econômico tem na história e chega à conclusão que o meio geográfico cria possibilidades importantes para a vida dos grupos sociais, mas não exerce um determinismo rigoroso.
Tendo sido de todos os seus contemporâneos o historiador que foi mais longe na sua independência de pensamento, Ibn Khaldun mergulhou na analise do funcionamento da sociedade humana, no estudo das transformações sociais nos períodos de longa duração e enfatizou a necessidade de definir uma metodologia específica para o estudo dos fatos históricos, incluindo aí um critério de escolha do corpus documental. Nesse sentido, a sua obra foi extremamente original e não fez escola nem deixou seguidores.
Mas, se na sua época e no século imediatamente posterior, a obra de Ibn Khaldun não chegou a ser compreendida na sua singularidade e profundidade, os mesmos motivos pelos quais isso ocorreu foram os que lhe deram a fama e a relevância que hoje lhe são reconhecidas. Ahmed Abdesselem assinala que Ibn Khaldun é certamente um dos pensadores (se não o pensador) dos séculos passados mais estudados do mundo árabe-muçulmano na atualidade.
No Ocidente, a obra de Ibn Khaldun ganhou reconhecimento a partir do trabalho desenvolvido na França, no século XIX, por Antoine Isaac, Baron Silvestre de Sacy (1758-1838), gramático e editor de textos árabes e persas. A partir de então passa a ser conhecida em toda a Europa. O impacto das idéias de Ibn Khaldun nos círculos intelectuais europeus pode ser medido pelo uso que delas fizeram algumas das figuras mais proeminentes do continente, como o filósofo alemão Friedrich Engels, fundador junto com Karl Marx, do socialismo científico.
A obra de Ibn Khaldun, hoje traduzida em numerosos idiomas, foi conservada em vários manuscritos, dispersos pela África, Ásia e Europa, alguns deles produzidos ainda em vida do autor, que se preocupou em autenticar as cópias, encaminhando muitas delas para bibliotecas e madrassas.
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Por Beatriz Bissio , jornalista, socióloga e Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense. Foi fundadora e diretora da revista “Cadernos do Terceiro Mundo”.
sexta-feira, 30 de outubro de 2009
“Os filhos de Adão fazem parte de um corpo
Todos foram criados da mesma essência.
Se uma dor aflige um de seus membros
Os outros também perdem seu bem-estar.
Se, com a dor dos outros, não sofres
És indigno de pertencer a esse corpo.”
Estrofe de Sa’adi (13th century), célebre poeta persa (século XIII), inscrita no frontão da sede das Nações Unidas, em Nova York.
Todos foram criados da mesma essência.
Se uma dor aflige um de seus membros
Os outros também perdem seu bem-estar.
Se, com a dor dos outros, não sofres
És indigno de pertencer a esse corpo.”
Estrofe de Sa’adi (13th century), célebre poeta persa (século XIII), inscrita no frontão da sede das Nações Unidas, em Nova York.
A beleza do cisne
A arte se inspira na perfeição do céu e da terra; a cultura, na perfeição da natureza. Esta idéia constitui o cerne da conferência “Retorno à natureza, retorno às origens” que o calígrafo e poeta chinês Fan Zeng apresentou na UNESCO, no último mês de maio, no âmbito do Festival Internacional da Diversidade Cultural.
Um pintor letrado
Mestre Fan Zeng, recentemente nomeado conselheiro da UNESCO para Diversidade Cultural, segue a tradição da "pintura dos letrados", corrente artística que se desenvolveu na China a partir do século X. Mais
A natureza é mais que generosa para com a humanidade. Além de dotá-la de elementos necessários para sua existência – ar, água e terra –, ela forneceu-lhe reguladores como a alternância do sol e da lua e a passagem benfazeja do vento e da chuva, permitindo, assim, que os seres vivos se desenvolvam indefinidamente desde a aurora dos tempos.
À bondade, a humanidade, impaciente, respondeu com hostilidade. No século passado, um biólogo proferiu uma palavra de ordem terrível: “Em vez de ficarmos na expectativa de seus benefícios, devemos exigi-los da natureza!” Como se fosse um filho malcriado ao levantar a mão contra a mãe benevolente; como se fosse um crocodilo, com as mandíbulas completamente abertas, feroz e selvagem, ao ignorar os limites daquilo que a Terra é capaz de nos prodigalizar.
Há mais de 2.500 anos, o grande filósofo chinês, Lao Zi, classificava os componentes do universo em cinco categorias: em primeiro lugar, o visível, o audível e o tangível; em seguida, o invisível, a existência perfeita chamada dao, uma espécie de Lei Celestial, comparável à Idéia de Platão, ao Espírito de Hegel ou ao Princípio da Finalidade de Kant; e por último, além do dao, a natureza, a “perfeita existência em si, espontaneamente e desde sempre assim”.
No budismo, a noção de “em si” exprime a conformidade absoluta com a razão de ser das coisas, a concordância, a pertinência – outros tantos atributos da natureza. Sinal incorruptível da imensidade do tempo e do espaço, essa existência em si perdura de forma onipresente, ilimitada. Dez bilhões de anos-luz não seriam capazes de circunscrevê-la, dez bilhões de anos não seriam suficientes para dar testemunho de sua duração.
De acordo com Dirac, a mais sofisticada matemática seria a única disciplina com condições de descrevê-la. Há 200 anos, Kant atribuía um lugar de exceção à matemática em seu livro Crítica da razão pura, que antecipava, poderíamos dizer, a inevitável supremacia do sistema digital que, progressivamente, se foi instaurando.
Entretanto, a natureza diferencia-se da racional – e um tanto árida – lógica digital. Ela oferece à humanidade a plenitude do amor e da ternura, inerente à beleza do céu e da terra. Lembremo-nos do ensino de Zhuang Zhou – um pensador ímpar, dotado de uma sabedoria divina, comparável a Palas Atena –, que viveu na China, há 2.300 anos, durante o período designado como “Primaveras e Outonos”. Ele afirmava: “A beleza do céu e da terra é perfeita e silenciosa; as quatro estações alternam segundo um ritmo regular, sem prescrições; os 10 mil seres atingem seu perfeito desenvolvimento em conformidade com a razão de ser das coisas, tacitamente.”
Essa existência em si, isenta de qualquer forma de logos, encarna a excelência do céu e da terra que incentiva intensamente a criatividade da alma humana e acolhe generosamente a pluralidade das inteligências e dos talentos humanos. E as sementes dessa beleza perfeita, disseminadas através do planeta, se transformam em virtudes de sinceridade e verdade, assim como em expressões estéticas. Entre os direitos inatos do homem, existe, sem dúvida, o “direito à experiência estética”, mesmo que ele não conste nos textos legislativos (talvez, por ser considerado como implícito). A perfeição do céu e da terra, desde a antiguidade até nossos dias, constituiu a fonte livre e inexaurível da beleza e da diversidade das culturas de nosso mundo.
Superar a natureza: vaidade
No Zhuangzi, Zhuang Zhou descreve um povo chamado Hexu que, na alta antiguidade, vivia displicentemente, comia bastante e perambulava ociosamente, com o ventre empanturrado, na companhia de animais e de plantas. Eis o que é compartilhado pelo nosso imaginário: de Platão a Owen, passando por Tomás Morus, Saint-Simon e Fourier, os homens têm alimentado sempre sonhos maravilhosos; caso contrário, a humanidade seria totalmente diferente do que ela é. Se tivéssemos de renunciar a nossos sonhos, nada sobraria além de esterilidade e tédio; além disso, nossa vida inteira estaria focalizada na morte. Triste sorte.
Vocês não crêem que a UNESCO preconiza a diversidade cultural precisamente para abrir o caminho à inevitável grande concórdia universal? Desta forma, essa cultura, formada por múltiplos aportes fascinantes, poderá conservar sua total beleza durante milhões de anos.
“Retorno às origens” e “retorno à natureza” são duas expressões da mesma idéia. A cultura inspirou-se incessantemente na natureza: por mais que as artes e as letras tenham tentado imitá-la, por mais descobertas que as ciências tenham feito, querer superar a natureza é pura vaidade. Ficamos devendo a uma equação de Maxwell, no século XIX, o progresso tecnológico que vai do simples micro à indústria aeroespacial. No entanto, nada foi inventado por esse cientista: antes dele, antes mesmo da existência da terra, essa equação já estava inscrita, em qualquer parte, no universo.
É costume afirmar que as artes e as letras são dotadas de um poder divino: afinal, não passam de manifestações de artistas à procura de consolo. Na realidade, apesar do recurso ao exagero artístico, a humanidade é incapaz de se aplicar a tarefas que não estejam à altura de suas forças, ao passo que o menor movimento do universo, de uma potência majestosa, é suficiente para abalar o planeta. Os ciclones e os maremotos são apenas um antegosto da força da natureza; e quando a magnificência se transforma em terror, a humanidade fica reduzida a uma ínfima entidade. Kant coloca-nos de sobreaviso: afastem-se um pouco e o terrificante poder da natureza tornar-se-á objeto de prazer estético. Mas, não carecemos forçosamente desse terrificante poder da natureza para experimentar um prazer estético: a prova é este Dia da Diversidade Cultural.
A avidez devora a alma
Em eras mais recuadas, na Antiguidade e nas épocas clássicas, a humanidade vivia principalmente da agricultura e da criação de gado, confiando na natureza e adaptando-se a seus ritmos. O homem dava-lhe testemunho de respeito e de afeição, sem a menor manifestação de arrogância para com ela. A industrialização, porém, exacerbou seus desejos e, na era da pós-industrialização, a avidez está em via de devorar sua alma.
No início do século XX, Toynbee e Spengler, na Inglaterra e na Alemanha, respectivamente, chamaram nossa atenção para os riscos da síndrome do capital que, infelizmente, se confirmaram hoje, do mesmo modo que a perspicácia desses dois eminentes pensadores: no momento em que o progresso das novas tecnologias é acompanhado por um consumo desmesurado, a subsistência de nosso planeta encontra-se sob uma ameaça que não para de se agravar.
Nosso apego às culturas originais tem a ver com sua sabedoria, elegância, autenticidade e simplicidade. Elas são a expressão da pureza de alma de nossos antepassados. Certamente, mais tarde, elas foram salpicadas pelo colorido do sagrado, mas na medida em que a religião cumpre sua missão de conforto da alma humana, ela pode fundamentalmente ser considerada como uma arte.
As culturas não obedecem aos princípios da evolução de um Darwin ou de um Spencer: uma obra recente não é superior a uma obra anterior. As tomadas de consciência e os esforços em favor da confiança e da concórdia, enfatizados pela humanidade inteira neste dia de intercâmbio pluricultural, permanecerão para sempre uma luz emocionante e incentivadora.
“Em qualquer sociedade, seja de animais ou de homens, a violência produziu os tiranos, enquanto a autoridade branda faz os reis: o leão e o tigre, na terra, a águia e o abutre, nos ares, não conseguem reinar a não ser pela guerra, e seu domínio só é obtido pelo abuso da força e pela crueldade. Em vez disso, o cisne reina nas águas por meio de qualidades que são o próprio fundamento de um império da paz: grandeza, majestade, ternura […]” (Buffon, História natural das aves, tomo IX, “O Cisne”)
Rezemos juntos pela paz e pela grande concórdia da humanidade; façamos votos para que a nobre beleza do cisne seja conservada para sempre.
Fan Zeng, poeta e pintor, é um dos mais célebres calígrafos chineses vivos. Ele publicou, em francês, O velho sábio e a criança (2005).
Nomes citados, na ordem de sua aparição:
Lao Zi, filósofo chinês (provavelmente, 604-479 a.C.)
Zhuang Zhou, filósofo taoísta (séc. IV a.C.)
Platão, filósofo grego (séc. V - IV a.C.)
Georg Wilhelm Friedrich Hegel, filósofo alemão (1770-1831)
Emmanuel Kant, filósofo alemão (1724-1804)
Paul Dirac, físico e matemático britânico (1902-1984)
“Primaveras e Outonos”, período da história chinesa, compreendido entre o séc. VIII e V a.C.
Palas Atena, deusa grega da sabedoria
Gwilym Ellis Lane Owen, filósofo britânico (1922-1982)
Tomas Morus, jurista, historiador, filósofo, teólogo e político inglês (1478-1535)
Claude-Henri de Rouvroy, conde de Saint-Simon, economista e filósofo francês (1760-1825)
Charles Fourier, filósofo e economista francês, inspirador dos falanstérios (1772-1837)
James Clerk Maxwell, físico e matemático escocês (1831-1879)
Arnold Joseph Toynbee, historiador britânico (1889-1975)
Oswald Spengler, filósofo alemão (1880-1936)
Charles Robert Darwin, naturalista inglês (1809-1882)
Herbert Spencer, filósofo e sociólogo inglês (1820-1903)
Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon, naturalista francês (1707-1788)
Um pintor letrado
Mestre Fan Zeng, recentemente nomeado conselheiro da UNESCO para Diversidade Cultural, segue a tradição da "pintura dos letrados", corrente artística que se desenvolveu na China a partir do século X. Mais
A natureza é mais que generosa para com a humanidade. Além de dotá-la de elementos necessários para sua existência – ar, água e terra –, ela forneceu-lhe reguladores como a alternância do sol e da lua e a passagem benfazeja do vento e da chuva, permitindo, assim, que os seres vivos se desenvolvam indefinidamente desde a aurora dos tempos.
À bondade, a humanidade, impaciente, respondeu com hostilidade. No século passado, um biólogo proferiu uma palavra de ordem terrível: “Em vez de ficarmos na expectativa de seus benefícios, devemos exigi-los da natureza!” Como se fosse um filho malcriado ao levantar a mão contra a mãe benevolente; como se fosse um crocodilo, com as mandíbulas completamente abertas, feroz e selvagem, ao ignorar os limites daquilo que a Terra é capaz de nos prodigalizar.
Há mais de 2.500 anos, o grande filósofo chinês, Lao Zi, classificava os componentes do universo em cinco categorias: em primeiro lugar, o visível, o audível e o tangível; em seguida, o invisível, a existência perfeita chamada dao, uma espécie de Lei Celestial, comparável à Idéia de Platão, ao Espírito de Hegel ou ao Princípio da Finalidade de Kant; e por último, além do dao, a natureza, a “perfeita existência em si, espontaneamente e desde sempre assim”.
No budismo, a noção de “em si” exprime a conformidade absoluta com a razão de ser das coisas, a concordância, a pertinência – outros tantos atributos da natureza. Sinal incorruptível da imensidade do tempo e do espaço, essa existência em si perdura de forma onipresente, ilimitada. Dez bilhões de anos-luz não seriam capazes de circunscrevê-la, dez bilhões de anos não seriam suficientes para dar testemunho de sua duração.
De acordo com Dirac, a mais sofisticada matemática seria a única disciplina com condições de descrevê-la. Há 200 anos, Kant atribuía um lugar de exceção à matemática em seu livro Crítica da razão pura, que antecipava, poderíamos dizer, a inevitável supremacia do sistema digital que, progressivamente, se foi instaurando.
Entretanto, a natureza diferencia-se da racional – e um tanto árida – lógica digital. Ela oferece à humanidade a plenitude do amor e da ternura, inerente à beleza do céu e da terra. Lembremo-nos do ensino de Zhuang Zhou – um pensador ímpar, dotado de uma sabedoria divina, comparável a Palas Atena –, que viveu na China, há 2.300 anos, durante o período designado como “Primaveras e Outonos”. Ele afirmava: “A beleza do céu e da terra é perfeita e silenciosa; as quatro estações alternam segundo um ritmo regular, sem prescrições; os 10 mil seres atingem seu perfeito desenvolvimento em conformidade com a razão de ser das coisas, tacitamente.”
Essa existência em si, isenta de qualquer forma de logos, encarna a excelência do céu e da terra que incentiva intensamente a criatividade da alma humana e acolhe generosamente a pluralidade das inteligências e dos talentos humanos. E as sementes dessa beleza perfeita, disseminadas através do planeta, se transformam em virtudes de sinceridade e verdade, assim como em expressões estéticas. Entre os direitos inatos do homem, existe, sem dúvida, o “direito à experiência estética”, mesmo que ele não conste nos textos legislativos (talvez, por ser considerado como implícito). A perfeição do céu e da terra, desde a antiguidade até nossos dias, constituiu a fonte livre e inexaurível da beleza e da diversidade das culturas de nosso mundo.
Superar a natureza: vaidade
No Zhuangzi, Zhuang Zhou descreve um povo chamado Hexu que, na alta antiguidade, vivia displicentemente, comia bastante e perambulava ociosamente, com o ventre empanturrado, na companhia de animais e de plantas. Eis o que é compartilhado pelo nosso imaginário: de Platão a Owen, passando por Tomás Morus, Saint-Simon e Fourier, os homens têm alimentado sempre sonhos maravilhosos; caso contrário, a humanidade seria totalmente diferente do que ela é. Se tivéssemos de renunciar a nossos sonhos, nada sobraria além de esterilidade e tédio; além disso, nossa vida inteira estaria focalizada na morte. Triste sorte.
Vocês não crêem que a UNESCO preconiza a diversidade cultural precisamente para abrir o caminho à inevitável grande concórdia universal? Desta forma, essa cultura, formada por múltiplos aportes fascinantes, poderá conservar sua total beleza durante milhões de anos.
“Retorno às origens” e “retorno à natureza” são duas expressões da mesma idéia. A cultura inspirou-se incessantemente na natureza: por mais que as artes e as letras tenham tentado imitá-la, por mais descobertas que as ciências tenham feito, querer superar a natureza é pura vaidade. Ficamos devendo a uma equação de Maxwell, no século XIX, o progresso tecnológico que vai do simples micro à indústria aeroespacial. No entanto, nada foi inventado por esse cientista: antes dele, antes mesmo da existência da terra, essa equação já estava inscrita, em qualquer parte, no universo.
É costume afirmar que as artes e as letras são dotadas de um poder divino: afinal, não passam de manifestações de artistas à procura de consolo. Na realidade, apesar do recurso ao exagero artístico, a humanidade é incapaz de se aplicar a tarefas que não estejam à altura de suas forças, ao passo que o menor movimento do universo, de uma potência majestosa, é suficiente para abalar o planeta. Os ciclones e os maremotos são apenas um antegosto da força da natureza; e quando a magnificência se transforma em terror, a humanidade fica reduzida a uma ínfima entidade. Kant coloca-nos de sobreaviso: afastem-se um pouco e o terrificante poder da natureza tornar-se-á objeto de prazer estético. Mas, não carecemos forçosamente desse terrificante poder da natureza para experimentar um prazer estético: a prova é este Dia da Diversidade Cultural.
A avidez devora a alma
Em eras mais recuadas, na Antiguidade e nas épocas clássicas, a humanidade vivia principalmente da agricultura e da criação de gado, confiando na natureza e adaptando-se a seus ritmos. O homem dava-lhe testemunho de respeito e de afeição, sem a menor manifestação de arrogância para com ela. A industrialização, porém, exacerbou seus desejos e, na era da pós-industrialização, a avidez está em via de devorar sua alma.
No início do século XX, Toynbee e Spengler, na Inglaterra e na Alemanha, respectivamente, chamaram nossa atenção para os riscos da síndrome do capital que, infelizmente, se confirmaram hoje, do mesmo modo que a perspicácia desses dois eminentes pensadores: no momento em que o progresso das novas tecnologias é acompanhado por um consumo desmesurado, a subsistência de nosso planeta encontra-se sob uma ameaça que não para de se agravar.
Nosso apego às culturas originais tem a ver com sua sabedoria, elegância, autenticidade e simplicidade. Elas são a expressão da pureza de alma de nossos antepassados. Certamente, mais tarde, elas foram salpicadas pelo colorido do sagrado, mas na medida em que a religião cumpre sua missão de conforto da alma humana, ela pode fundamentalmente ser considerada como uma arte.
As culturas não obedecem aos princípios da evolução de um Darwin ou de um Spencer: uma obra recente não é superior a uma obra anterior. As tomadas de consciência e os esforços em favor da confiança e da concórdia, enfatizados pela humanidade inteira neste dia de intercâmbio pluricultural, permanecerão para sempre uma luz emocionante e incentivadora.
“Em qualquer sociedade, seja de animais ou de homens, a violência produziu os tiranos, enquanto a autoridade branda faz os reis: o leão e o tigre, na terra, a águia e o abutre, nos ares, não conseguem reinar a não ser pela guerra, e seu domínio só é obtido pelo abuso da força e pela crueldade. Em vez disso, o cisne reina nas águas por meio de qualidades que são o próprio fundamento de um império da paz: grandeza, majestade, ternura […]” (Buffon, História natural das aves, tomo IX, “O Cisne”)
Rezemos juntos pela paz e pela grande concórdia da humanidade; façamos votos para que a nobre beleza do cisne seja conservada para sempre.
Fan Zeng, poeta e pintor, é um dos mais célebres calígrafos chineses vivos. Ele publicou, em francês, O velho sábio e a criança (2005).
Nomes citados, na ordem de sua aparição:
Lao Zi, filósofo chinês (provavelmente, 604-479 a.C.)
Zhuang Zhou, filósofo taoísta (séc. IV a.C.)
Platão, filósofo grego (séc. V - IV a.C.)
Georg Wilhelm Friedrich Hegel, filósofo alemão (1770-1831)
Emmanuel Kant, filósofo alemão (1724-1804)
Paul Dirac, físico e matemático britânico (1902-1984)
“Primaveras e Outonos”, período da história chinesa, compreendido entre o séc. VIII e V a.C.
Palas Atena, deusa grega da sabedoria
Gwilym Ellis Lane Owen, filósofo britânico (1922-1982)
Tomas Morus, jurista, historiador, filósofo, teólogo e político inglês (1478-1535)
Claude-Henri de Rouvroy, conde de Saint-Simon, economista e filósofo francês (1760-1825)
Charles Fourier, filósofo e economista francês, inspirador dos falanstérios (1772-1837)
James Clerk Maxwell, físico e matemático escocês (1831-1879)
Arnold Joseph Toynbee, historiador britânico (1889-1975)
Oswald Spengler, filósofo alemão (1880-1936)
Charles Robert Darwin, naturalista inglês (1809-1882)
Herbert Spencer, filósofo e sociólogo inglês (1820-1903)
Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon, naturalista francês (1707-1788)
Escrito en las trincheras de Madrid
Cuando os di mi adiós dije : "Tened fe y esperad, que yo volveré" y sin embargo, si hoy pudiera volveros a ver, solamente diría : - Tened fe y esperad. Toda la realidad de la vida que nos rodea es para nosotros como una ficción. Nada es cierto aquí, ni el hoy ni el mañana. Todo puede acabarse en cada segundo que comienza. Tan solo de cierto tenemos esta muerte que danza incansable frente a nosotros noche y día. ¡Que triste es vivir así!...
Cómo me asalta el temor de que al final, tan desesperadamente anhelado de esta lucha cruel; cuando todos vuelvan felices a reír y a llorar entre los brazos de sus seres amados, en los cálidos hogares de la paz, yo, he de ser tan infeliz que, después de anhelarle desesperadamente, no tendré para mí esa inefable ventura. Estoy entre las tinieblas y mis pensamientos no pueden tener la alegría de la esperanza, porque ésta es solamente luz. Estas paredes de tierra que son nuestras trincheras, estrujan mi corazón y mis esperanzas. Han sido la tumba ya de muchos de mis compañeros, nosotros en ellas, perdimos ya la noción de la vida. Muchas veces preciso de la palabra de un amigo para sentirme con vida. Mañana, estos campos han de quedar solitarios... ¿A quiénes de nosotros le estará reservada la ventura de recoger las lágrimas de su madre; a quiénes de nosotros le deparará su destino cubrirse con esta humilde y cariñosa tierra para que nadie profane su último y desventurado sueño?...
Cuando el día de la paz deje mudos los cañones, las madres, las esposas, los hijos y las novias cubrirán todos los caminos de la patria para salir a recibir sus esperanzas. Muchos brazos quedarán tendidos sin tener a quien recibir.
Quizá mientras vosotros me esperáis, después de toda la hecatombe, mi alma en unión de aquellas que siguieron su suerte, continúe en las noches la guerra, saltando y saltando trincheras, atacando eternamente a un enemigo incierto, vestido de sombras como nosotros mismos...
Escrito en las trincheras de Madrid
El Pardo 15 de enero de 1938
Angel LEMOS
Nacido el 1-3-1918, Angel Lemos de los Reyes era teniente del Ejercito de la Republica Española durante la guerra civil. Este hecho le costó 5 penas de muerte más un largo y duro exilio para este amante de su tierra. 83 años hoy, Angel es un artista marginado que vive en Galicia, contando solo con una pensión no contributiva. "Angel sigue siendo un joven valiente y decidido, fiel a sus principios", nos escribe su mujer en un reciente correo electronico.
http://site.voila.fr/espana36
Cómo me asalta el temor de que al final, tan desesperadamente anhelado de esta lucha cruel; cuando todos vuelvan felices a reír y a llorar entre los brazos de sus seres amados, en los cálidos hogares de la paz, yo, he de ser tan infeliz que, después de anhelarle desesperadamente, no tendré para mí esa inefable ventura. Estoy entre las tinieblas y mis pensamientos no pueden tener la alegría de la esperanza, porque ésta es solamente luz. Estas paredes de tierra que son nuestras trincheras, estrujan mi corazón y mis esperanzas. Han sido la tumba ya de muchos de mis compañeros, nosotros en ellas, perdimos ya la noción de la vida. Muchas veces preciso de la palabra de un amigo para sentirme con vida. Mañana, estos campos han de quedar solitarios... ¿A quiénes de nosotros le estará reservada la ventura de recoger las lágrimas de su madre; a quiénes de nosotros le deparará su destino cubrirse con esta humilde y cariñosa tierra para que nadie profane su último y desventurado sueño?...
Cuando el día de la paz deje mudos los cañones, las madres, las esposas, los hijos y las novias cubrirán todos los caminos de la patria para salir a recibir sus esperanzas. Muchos brazos quedarán tendidos sin tener a quien recibir.
Quizá mientras vosotros me esperáis, después de toda la hecatombe, mi alma en unión de aquellas que siguieron su suerte, continúe en las noches la guerra, saltando y saltando trincheras, atacando eternamente a un enemigo incierto, vestido de sombras como nosotros mismos...
Escrito en las trincheras de Madrid
El Pardo 15 de enero de 1938
Angel LEMOS
Nacido el 1-3-1918, Angel Lemos de los Reyes era teniente del Ejercito de la Republica Española durante la guerra civil. Este hecho le costó 5 penas de muerte más un largo y duro exilio para este amante de su tierra. 83 años hoy, Angel es un artista marginado que vive en Galicia, contando solo con una pensión no contributiva. "Angel sigue siendo un joven valiente y decidido, fiel a sus principios", nos escribe su mujer en un reciente correo electronico.
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Atahualpa Yupanqui: artista do essencial
“Como se pode dizer, ele tinha uma cara de índio... Seu cabelo permaneceu negro até o último minuto… Ele tinha olhos penetrantes e você se sentia nua em sua frente... Era muito carinhoso...” Ele nasceu há cem anos em Campo de la Cruz, na província de Buenos Aires. Morreu em 1992, em Paris. Foi o cantor dos mais humildes. Viajante solitário, percorreu os Andes no lombo de uma mula, salvando tesouros musicais ameríndios do esquecimento. Viajou por todo o mundo com seu violão, sendo aclamado por todas as partes onde passava, e coletou cerca de 12 mil canções. Seu nome é Atahualpa Yupanqui. O artista teve uma vida excepcional durante a qual, como diz a frase de Andrea Cohen, viveu três vidas.
Andrea Cohen, que escreveu esse tributo ao seu compatriota famoso, produziu um programa de rádio sobre ele em 2005 para a França Cultura, a estação cultural da Rádio França.
Atahualpa Yupanqui é, sem dúvida alguma, o mais reconhecido e emblemático dos exilados argentinos em Paris. Também o mais enigmático. Deixou a Argentina, mas o país permaneceu dentro dele, penetrando cada um dos seus versos e notas musicais. Ele era a encarnação de tudo o que é andino, até mesmo em seu nome. O homem cujo nascimento há cem anos hoje comemoramos não recebeu o nome de Atahualpa Yupanqui, mas de Héctor Roberto Chavero. Seu pai veio de uma antiga família argentina, sua mãe era basca e ele nasceu na província de Buenos Aires.
A escolha do pseudônimo simbólico, composto pelos nomes de dois imperadores incas, expressa sua reivindicação de uma cultural ancestral no solo da América indígena, onde não há fronteiras entre a Argentina, a Bolívia e o Peru… Foi com essa identidade especial que ele cresceu para se tornar o poeta do universal.
Pode parecer paradoxal para um artista de seu calibre, que deixou seu país por causa de sua afiliação ao Partido Comunista, ter decidido passar o resto de sua vida no exílio. Ele aparentemente precisava de distância, isolamento ou silêncio, para preservar sua arte.
As três vidas de Atahualpa Yupanqui
© Flickr
Atahualpa: um argentino em Paris.
Lendo a biografia de Atahualpa Yupanqui, percebe-se que ele teve várias vidas. Na primeira, escreveu poemas e os transformou em música, viajou pela Argentina, viveu com fazendeiros e colecionou canções populares, adquirindo um repertório que permaneceria como sua principal fonte de inspiração.
Em sua segunda vida, por volta dos anos 40, partiu para a França, viveu em Paris, encontrou-se com poetas e artistas que eram comunistas como ele: Eluard, Aragon, Picasso. Foi durante essa época que seu talento como poeta e músico foi descoberto por Edith Piaf, que o convidou para se apresentar na abertura de seu show no Théâtre de l’Athénée. O público francês foi imediatamente conquistado. Ele então começou a fazer suas primeiras turnês pela Europa Oriental.
Finalmente, na terceira vida de Atahualpa, ele era um cantor, poeta e compositor conhecido e reconhecido pelo mundo afora. Também era idolatrado em sua terra natal, onde alguns de seus versos se tornaram provérbios. Ainda hoje, os argentinos dizem «las penas son de nosotros, las vaquitas son ajenas» (os problemas são nossos, as vacas são dos outros").
Eu não sou nada mais do que o silêncio
©
Sepultura de Atahualpa Yupanqui no cemitério de Cerro Colorado, em Córdoba, Argentina.
Quando fiz meu programa de rádio sobre Atahualpa, eu me encontrei com pessoas que o conheciam e eram seus amigos. O pianista Miguel Angel Estrella (embaixador da Boa Vontade da UNESCO) lembrou-se, durante nossa entrevista, de como seu amigo Atahualpa vinha visitá-lo em seu apartamento em Paris e dizia: “Purifique minha alma, Miguel, toque Bach, toque Bach”.
Em um registro menos pessoal, fui encontrar um de seus fãs franceses, o virtuoso organista Louis Thiry, que conheceu Atahualpa Yupanqui apenas por meio de suas gravações. Ele se declarou “fascinado pela verdade que emana de sua música” e explicou que “a virtude está oculta, a interpretação é simples, sem pretensão ou artifício... Tanto na voz quanto no instrumento, ele vai direto à essência”.
Também falei com Françoise Thanas, uma de suas amigas parisienses de muitos anos, que traduziu seus poemas e escreveu um livro sobre ele. Ela se lembra de Atahualpa como um homem silencioso. "Silêncio, modéstia, essas são palavras que combinam com ele", disse, antes de recitar um trecho de um poema que se parece com um retrato do artista:
“Como lama, sou visto
E eu tenho o céu dentro de mim.
Como pedra, sou sentido
E sou silêncio
Nada mais.”
Angel Parra, outra artista latino-americana exilada, amiga próxima e vizinha de Atahualpa, completa o retrato. “Como se pode dizer, ele tinha uma cara de índio... Seu cabelo permaneceu negro até o último minuto... Ele tinha olhos penetrantes e você se sentia nua em sua frente... Era muito carinhoso...” E acrescenta: “Ele estava no exílio em praticamente todos os lugares”.
Quanto a mim, gostaria de terminar esse tributo citando a letra de uma de minhas músicas favoritas, Los hermanos, que para mim é o melhor resumo da personalidade de Atahualpa Yupanqui: “Yo tengo tantos hermanos que no los puedo nombrar /Y una hermana muy hermosa que se llama libertad.” (“Tenho tantos irmãos que não lhes posso dar nomes/ E uma irmã muito bonita que se chama liberdade”).
Andrea Cohen, pianista e compositora franco-argentina.
Andrea Cohen, que escreveu esse tributo ao seu compatriota famoso, produziu um programa de rádio sobre ele em 2005 para a França Cultura, a estação cultural da Rádio França.
Atahualpa Yupanqui é, sem dúvida alguma, o mais reconhecido e emblemático dos exilados argentinos em Paris. Também o mais enigmático. Deixou a Argentina, mas o país permaneceu dentro dele, penetrando cada um dos seus versos e notas musicais. Ele era a encarnação de tudo o que é andino, até mesmo em seu nome. O homem cujo nascimento há cem anos hoje comemoramos não recebeu o nome de Atahualpa Yupanqui, mas de Héctor Roberto Chavero. Seu pai veio de uma antiga família argentina, sua mãe era basca e ele nasceu na província de Buenos Aires.
A escolha do pseudônimo simbólico, composto pelos nomes de dois imperadores incas, expressa sua reivindicação de uma cultural ancestral no solo da América indígena, onde não há fronteiras entre a Argentina, a Bolívia e o Peru… Foi com essa identidade especial que ele cresceu para se tornar o poeta do universal.
Pode parecer paradoxal para um artista de seu calibre, que deixou seu país por causa de sua afiliação ao Partido Comunista, ter decidido passar o resto de sua vida no exílio. Ele aparentemente precisava de distância, isolamento ou silêncio, para preservar sua arte.
As três vidas de Atahualpa Yupanqui
© Flickr
Atahualpa: um argentino em Paris.
Lendo a biografia de Atahualpa Yupanqui, percebe-se que ele teve várias vidas. Na primeira, escreveu poemas e os transformou em música, viajou pela Argentina, viveu com fazendeiros e colecionou canções populares, adquirindo um repertório que permaneceria como sua principal fonte de inspiração.
Em sua segunda vida, por volta dos anos 40, partiu para a França, viveu em Paris, encontrou-se com poetas e artistas que eram comunistas como ele: Eluard, Aragon, Picasso. Foi durante essa época que seu talento como poeta e músico foi descoberto por Edith Piaf, que o convidou para se apresentar na abertura de seu show no Théâtre de l’Athénée. O público francês foi imediatamente conquistado. Ele então começou a fazer suas primeiras turnês pela Europa Oriental.
Finalmente, na terceira vida de Atahualpa, ele era um cantor, poeta e compositor conhecido e reconhecido pelo mundo afora. Também era idolatrado em sua terra natal, onde alguns de seus versos se tornaram provérbios. Ainda hoje, os argentinos dizem «las penas son de nosotros, las vaquitas son ajenas» (os problemas são nossos, as vacas são dos outros").
Eu não sou nada mais do que o silêncio
©
Sepultura de Atahualpa Yupanqui no cemitério de Cerro Colorado, em Córdoba, Argentina.
Quando fiz meu programa de rádio sobre Atahualpa, eu me encontrei com pessoas que o conheciam e eram seus amigos. O pianista Miguel Angel Estrella (embaixador da Boa Vontade da UNESCO) lembrou-se, durante nossa entrevista, de como seu amigo Atahualpa vinha visitá-lo em seu apartamento em Paris e dizia: “Purifique minha alma, Miguel, toque Bach, toque Bach”.
Em um registro menos pessoal, fui encontrar um de seus fãs franceses, o virtuoso organista Louis Thiry, que conheceu Atahualpa Yupanqui apenas por meio de suas gravações. Ele se declarou “fascinado pela verdade que emana de sua música” e explicou que “a virtude está oculta, a interpretação é simples, sem pretensão ou artifício... Tanto na voz quanto no instrumento, ele vai direto à essência”.
Também falei com Françoise Thanas, uma de suas amigas parisienses de muitos anos, que traduziu seus poemas e escreveu um livro sobre ele. Ela se lembra de Atahualpa como um homem silencioso. "Silêncio, modéstia, essas são palavras que combinam com ele", disse, antes de recitar um trecho de um poema que se parece com um retrato do artista:
“Como lama, sou visto
E eu tenho o céu dentro de mim.
Como pedra, sou sentido
E sou silêncio
Nada mais.”
Angel Parra, outra artista latino-americana exilada, amiga próxima e vizinha de Atahualpa, completa o retrato. “Como se pode dizer, ele tinha uma cara de índio... Seu cabelo permaneceu negro até o último minuto... Ele tinha olhos penetrantes e você se sentia nua em sua frente... Era muito carinhoso...” E acrescenta: “Ele estava no exílio em praticamente todos os lugares”.
Quanto a mim, gostaria de terminar esse tributo citando a letra de uma de minhas músicas favoritas, Los hermanos, que para mim é o melhor resumo da personalidade de Atahualpa Yupanqui: “Yo tengo tantos hermanos que no los puedo nombrar /Y una hermana muy hermosa que se llama libertad.” (“Tenho tantos irmãos que não lhes posso dar nomes/ E uma irmã muito bonita que se chama liberdade”).
Andrea Cohen, pianista e compositora franco-argentina.
O pais do rei com a língua pendurada
A cidade real de Gondar foi fundada pelo negus etíope Fasilides no século XVII. Vários de seus sucessores construíram seus palácios na mesma corte, formando um complexo de rara beleza. Esse sítio foi inscrito na Lista do Patrimônio Mundial da UNESCO, em 1979. Não muito longe dali, as ruínas de um castelo mais antigo deixado na solidão têm outra história para contar.
Uma figura alongada aparece no horizonte. Um homem caminha descalço. Ele se pareceria com uma escultura de Giacometti se não fosse pelo fato de carregar uma árvore sobre seus ombros. Mortos e bifurcados, os galhos da árvore estão retorcidos, como se sentissem dor. Seu tronco branco se contrasta com a pele escura do homem. Ele não pára para recuperar o fôlego e se move tão rápido que é preciso correr para acompanhá-lo. Onde ele está indo com tanta pressa, com uma árvore maior do que ele?
Estamos no planalto de Dankez no nordeste da Etiópia, não muito longe de Gondar, a bonita cidade imperial fundada pelo rei Fasilides, em 1632.
Dankez está a três horas de Gondar. De carro, são mais de 40 quilômetros de asfalto, depois 30 km de estrada de chão, seguidos de mais ou menos 8 km de pedras amarelas. Nesse ponto o veículo só consegue se mover devagar até que finalmente pára perto de uma árvore no meio do nada. Isso marca o começo de uma longa escalada a pé, primeiramente passando no meio de uma vila com algumas casas espalhadas (uma das quais certamente pertence ao homem que caminhava) e finalmente através de um vasto terreno baldio que culmina em uma colina. Aqui, a uma altitude de 2.700 metros, os contornos de duas ruínas se destacam sobre uma planície coberta de verdor, cercada por uma infinita cadeia de montanhas.
A curiosidade faz com que apertemos o passo. Em frente ao que já foi um exuberante palácio real, um agricultor trabalha sua terra. O arado, puxado por dois bois, se move para frente e para trás. Três períodos da história se conectam em um instante.
Esse era o castelo de Susenyos, um negus etíope que tomou o trono em 1607 e que, 20 anos depois, se arrependeu disso amargamente. “Ele acabou com a língua pendurada até os seus pés”, conta Aseged Tesfaye, um jovem formado em turismo e conhecedor das histórias oficiais e não-oficiais da região. “Deus o puniu por ter abandonado sua fé, uma vez que por 1.300 anos os reis da etiópia haviam sido ortodoxos”.
Auxiliado em sua subida ao poder pelo astuto Pedro Paez, chefe da missão jesuíta fundada na Etiópia, 40 anos antes, Susenyos se converteu ao catolicismo para ganhar o apoio de Portugal na luta contra os muçulmanos. Um século havia se passado desde que Ahmad al Ghazi, sultão de Harare, ao sudeste, havia iniciado uma guerra santa. O espírito do sultão, chamado de Ahmad Gragne (o canhoto) ainda assombra centenas de ruínas no país.
De acordo com “Uma História Geral da África” (volume V, UNESCO, 1999), porém, revoltas se proliferaram contra a nova igreja. O amado rei, que havia levado paz ao país, agora teve que submeter seus súditos a guerras sangrentas. Ele foi finalmente forçado a abdicar do poder em favor de seu filho, Fasilides.
Uma cidade que comece com "go"
“Após o ultimo massacre, em 1632, a igreja católica que ficava próxima ao castelo, onde 60 etíopes estudavam teologia, foi abandonada. Logo depois, Fasilides se estabeleceu em Gondar”, explica Aseged. O castelo e a igreja do rei com a língua pendurada caíram no esquecimento. Grama, mato e árvores crescem onde ele reinou um dia.
Por que Fasilides escolheu Gondar? Porque um dia, quando o rei Galawadewos estava bravamente resistindo às tropas de Ahmad, o Canhoto, um monge disse a ele: “Encontre uma cidade cujo nome comece com ‘go’. Quando a encontrar, você a proclamará capital de seu reino”. Após Gojam, Gouzara e Gorgora, vinha Gondar. E Dankez? “Dankez é também chamada de Gomenge,” declara Aseged, com um sorriso triunfante.
Quando Fasilides construiu seu palácio nessa cidade protegida por uma elevada cadeia de montanhas, provavelmente não suspeitou que oito dos seus sucessores residiriam no mesmo complexo por 100 anos. Cada um adicionou seu próprio palácio, competindo com os demais em beleza. “É isso que torna o complexo de sete hectares único no mundo”, diz Getnet, especialista do sítio inscrito na Lista do Patrimônio Mundial, em 1979.
Após apontar a influência portuguesa e indiana na arquitetura do palácio de Fasilides, Getnet explica como o palácio foi prejudicado pelo terremoto de 1704, saqueado pelos derviches do Mahdi sudanês, no século XIX, e bombardeado pelos britânicos, em 1941, em função da presença no local dos mais elevados oficiais da tropa de Mussolini. “Mas os maus reparos feitos pelos italianos durante a ocupação causaram tanto estrago quanto os bombardeios. Tivemos que fechá-lo ao público por 11 anos durante a restauração feita pela UNESCO. Ele foi reaberto há pouco mais de três anos. Você pode imaginar o estado deplorável em que estava o teto quando você vê o palácio Bacaffa, hoje”, diz Getnet, antes de mostrar o lar do último rei que governou nessa citadela, de 1721 a 1730.
O palácio da bela Rainha
Chamado de “O sem piedade”, Bacaffa parece, no entanto, um bon vivant em função do espaço que ele dedicou a festividades: seu salão de recepções é tão grande quanto o resto do palácio. Bacaffa é lembrado principalmente por ter se apaixonado por uma plebéia, uma jovem que ele supostamente conheceu enquanto passeava incógnito por seu reino. Como rainha Mentaweb (“como você é bonita”), a mulher governou o país com punho de ferro quando seu marido morreu. Sua beleza excepcional pode ser admirada em um mural encontrado no meio do Lago Tana, o maior da Etiópia (veja “Os tesouros intangíveis do Lago Tana”). Parece ser o único retrato da rainha, em vida.
O palácio de Mentaweb, em Gondar, foi transformado em um centro de cultura e artesanato. Aschalew Worku Tassew, chefe do departamento de Cultura e Turismo, demonstra orgulho: “Com a ajuda do Banco Mundial, mais de 130 pessoas já foram treinadas para diferentes trabalhos. Há, agora, sete associações de artesanato, coordenadas por uma federação, que começaram a exportar seus produtos para Frankfurt, na Alemanha. Em média, esse trabalho gera uma renda mensal de 3.000 birr (250 euros) por pessoa”.
Calmo e sério, Tassew também fala sobre as numerosas restaurações concluídas ou em andamento, em Gondar. Sua expressão, porém, se retrai quando ele fala de Dankez: “A condição das ruínas é alarmante. Nesse ritmo, o castelo de Susenyos será perdido em dois anos. Uma equipe de arqueólogos espanhóis produziu recentemente um relatório que pode ser utilizado para a restauração futura. Precisamos de ajuda internacional”.
Se nada for feito, a natureza pode superar as pedras e apagar para sempre os vestígios de um capítulo fascinante na história da Etiópia. E os versos inspirados em Gondar nos anos 30, escritos pelo etnólogo francês Michel Leiris, farão eco de forma ainda mais aguda na paisagem devastada:
“Cabanas de palha e pedras,
Entre ruínas caindo aos pedaços
Por dias e mais dias,
Eu estava apaixonado por uma mulher absínia
Clara como a palha,
Fria como a pedra,
Sua voz, tão pura, retorcia meus braços e pernas.
Ao vê-la,
Minha cabeça se esfacelava,
E meu coração desmoronava.
Como uma ruína.”
Jasmina Šopova
Uma figura alongada aparece no horizonte. Um homem caminha descalço. Ele se pareceria com uma escultura de Giacometti se não fosse pelo fato de carregar uma árvore sobre seus ombros. Mortos e bifurcados, os galhos da árvore estão retorcidos, como se sentissem dor. Seu tronco branco se contrasta com a pele escura do homem. Ele não pára para recuperar o fôlego e se move tão rápido que é preciso correr para acompanhá-lo. Onde ele está indo com tanta pressa, com uma árvore maior do que ele?
Estamos no planalto de Dankez no nordeste da Etiópia, não muito longe de Gondar, a bonita cidade imperial fundada pelo rei Fasilides, em 1632.
Dankez está a três horas de Gondar. De carro, são mais de 40 quilômetros de asfalto, depois 30 km de estrada de chão, seguidos de mais ou menos 8 km de pedras amarelas. Nesse ponto o veículo só consegue se mover devagar até que finalmente pára perto de uma árvore no meio do nada. Isso marca o começo de uma longa escalada a pé, primeiramente passando no meio de uma vila com algumas casas espalhadas (uma das quais certamente pertence ao homem que caminhava) e finalmente através de um vasto terreno baldio que culmina em uma colina. Aqui, a uma altitude de 2.700 metros, os contornos de duas ruínas se destacam sobre uma planície coberta de verdor, cercada por uma infinita cadeia de montanhas.
A curiosidade faz com que apertemos o passo. Em frente ao que já foi um exuberante palácio real, um agricultor trabalha sua terra. O arado, puxado por dois bois, se move para frente e para trás. Três períodos da história se conectam em um instante.
Esse era o castelo de Susenyos, um negus etíope que tomou o trono em 1607 e que, 20 anos depois, se arrependeu disso amargamente. “Ele acabou com a língua pendurada até os seus pés”, conta Aseged Tesfaye, um jovem formado em turismo e conhecedor das histórias oficiais e não-oficiais da região. “Deus o puniu por ter abandonado sua fé, uma vez que por 1.300 anos os reis da etiópia haviam sido ortodoxos”.
Auxiliado em sua subida ao poder pelo astuto Pedro Paez, chefe da missão jesuíta fundada na Etiópia, 40 anos antes, Susenyos se converteu ao catolicismo para ganhar o apoio de Portugal na luta contra os muçulmanos. Um século havia se passado desde que Ahmad al Ghazi, sultão de Harare, ao sudeste, havia iniciado uma guerra santa. O espírito do sultão, chamado de Ahmad Gragne (o canhoto) ainda assombra centenas de ruínas no país.
De acordo com “Uma História Geral da África” (volume V, UNESCO, 1999), porém, revoltas se proliferaram contra a nova igreja. O amado rei, que havia levado paz ao país, agora teve que submeter seus súditos a guerras sangrentas. Ele foi finalmente forçado a abdicar do poder em favor de seu filho, Fasilides.
Uma cidade que comece com "go"
“Após o ultimo massacre, em 1632, a igreja católica que ficava próxima ao castelo, onde 60 etíopes estudavam teologia, foi abandonada. Logo depois, Fasilides se estabeleceu em Gondar”, explica Aseged. O castelo e a igreja do rei com a língua pendurada caíram no esquecimento. Grama, mato e árvores crescem onde ele reinou um dia.
Por que Fasilides escolheu Gondar? Porque um dia, quando o rei Galawadewos estava bravamente resistindo às tropas de Ahmad, o Canhoto, um monge disse a ele: “Encontre uma cidade cujo nome comece com ‘go’. Quando a encontrar, você a proclamará capital de seu reino”. Após Gojam, Gouzara e Gorgora, vinha Gondar. E Dankez? “Dankez é também chamada de Gomenge,” declara Aseged, com um sorriso triunfante.
Quando Fasilides construiu seu palácio nessa cidade protegida por uma elevada cadeia de montanhas, provavelmente não suspeitou que oito dos seus sucessores residiriam no mesmo complexo por 100 anos. Cada um adicionou seu próprio palácio, competindo com os demais em beleza. “É isso que torna o complexo de sete hectares único no mundo”, diz Getnet, especialista do sítio inscrito na Lista do Patrimônio Mundial, em 1979.
Após apontar a influência portuguesa e indiana na arquitetura do palácio de Fasilides, Getnet explica como o palácio foi prejudicado pelo terremoto de 1704, saqueado pelos derviches do Mahdi sudanês, no século XIX, e bombardeado pelos britânicos, em 1941, em função da presença no local dos mais elevados oficiais da tropa de Mussolini. “Mas os maus reparos feitos pelos italianos durante a ocupação causaram tanto estrago quanto os bombardeios. Tivemos que fechá-lo ao público por 11 anos durante a restauração feita pela UNESCO. Ele foi reaberto há pouco mais de três anos. Você pode imaginar o estado deplorável em que estava o teto quando você vê o palácio Bacaffa, hoje”, diz Getnet, antes de mostrar o lar do último rei que governou nessa citadela, de 1721 a 1730.
O palácio da bela Rainha
Chamado de “O sem piedade”, Bacaffa parece, no entanto, um bon vivant em função do espaço que ele dedicou a festividades: seu salão de recepções é tão grande quanto o resto do palácio. Bacaffa é lembrado principalmente por ter se apaixonado por uma plebéia, uma jovem que ele supostamente conheceu enquanto passeava incógnito por seu reino. Como rainha Mentaweb (“como você é bonita”), a mulher governou o país com punho de ferro quando seu marido morreu. Sua beleza excepcional pode ser admirada em um mural encontrado no meio do Lago Tana, o maior da Etiópia (veja “Os tesouros intangíveis do Lago Tana”). Parece ser o único retrato da rainha, em vida.
O palácio de Mentaweb, em Gondar, foi transformado em um centro de cultura e artesanato. Aschalew Worku Tassew, chefe do departamento de Cultura e Turismo, demonstra orgulho: “Com a ajuda do Banco Mundial, mais de 130 pessoas já foram treinadas para diferentes trabalhos. Há, agora, sete associações de artesanato, coordenadas por uma federação, que começaram a exportar seus produtos para Frankfurt, na Alemanha. Em média, esse trabalho gera uma renda mensal de 3.000 birr (250 euros) por pessoa”.
Calmo e sério, Tassew também fala sobre as numerosas restaurações concluídas ou em andamento, em Gondar. Sua expressão, porém, se retrai quando ele fala de Dankez: “A condição das ruínas é alarmante. Nesse ritmo, o castelo de Susenyos será perdido em dois anos. Uma equipe de arqueólogos espanhóis produziu recentemente um relatório que pode ser utilizado para a restauração futura. Precisamos de ajuda internacional”.
Se nada for feito, a natureza pode superar as pedras e apagar para sempre os vestígios de um capítulo fascinante na história da Etiópia. E os versos inspirados em Gondar nos anos 30, escritos pelo etnólogo francês Michel Leiris, farão eco de forma ainda mais aguda na paisagem devastada:
“Cabanas de palha e pedras,
Entre ruínas caindo aos pedaços
Por dias e mais dias,
Eu estava apaixonado por uma mulher absínia
Clara como a palha,
Fria como a pedra,
Sua voz, tão pura, retorcia meus braços e pernas.
Ao vê-la,
Minha cabeça se esfacelava,
E meu coração desmoronava.
Como uma ruína.”
Jasmina Šopova
Amazonas etíopes: uma história contada em imagens
Não muito longe de Adis Abeba, na região de Soddo, está um campo que não se encontra em nenhuma outra parte do mundo, com estelas únicas. Um cemitério foi descoberto com corpos enterrados na posição de oração. Estamos no misterioso sítio arqueológico de Tiya, inscrito na lista do Patrimônio Mundial, em 1980.
“Há 40 estelas nesse cemitério. Corpos de pessoas de 18 a 30 anos foram encontrados”, explica Senai Eshete, guarda responsável por esse sítio do Patrimônio Mundial. “É provável que eles tenham sido guerreiros, porque a espada é a imagem mais predominante nas estelas.”.
A maior estela, situada na entrada do sítio, tinha cinco metros de altura, mas agora se encontra quebrada em duas partes. A parte superior pode ser vista nos jardins do departamento de ciências sociais da Universidade de Adis Abeba. “Há nada menos que 13 espadas gravadas nela, o que significa que esse guerreiro matou 13 inimigos”, continua o guarda.
Outro símbolo prevalecente é o tamborete africano. “Na realidade, isso é provavelmente um descanso para a cabeça, ou um travesseiro, se você preferir. Ele simboliza o repouso”, explica Senai. Ele chama atenção para o símbolo “Σ”, que pode representar colinas ou uma mulher.
Se eles realmente foram guerreiros, havia mulheres em meio deles. Duas “amazonas etíopes” estão lá para provar isso. Todos os atributos femininos estão representados nessas estelas.
Ninguém conseguiu ainda determinar com certeza a idade das estelas, mas a análise dos restos humanos sugere que sejam de um período entre os séculos X e XV. Os ossos e as jóias descobertos nas tumbas foram levados ao Museu Nacional Etíope, enquanto o pequeno museu improvisado no sítio mantém uma coleção diversificada de objetos etnográficos.
Jasmina Šopova
“Há 40 estelas nesse cemitério. Corpos de pessoas de 18 a 30 anos foram encontrados”, explica Senai Eshete, guarda responsável por esse sítio do Patrimônio Mundial. “É provável que eles tenham sido guerreiros, porque a espada é a imagem mais predominante nas estelas.”.
A maior estela, situada na entrada do sítio, tinha cinco metros de altura, mas agora se encontra quebrada em duas partes. A parte superior pode ser vista nos jardins do departamento de ciências sociais da Universidade de Adis Abeba. “Há nada menos que 13 espadas gravadas nela, o que significa que esse guerreiro matou 13 inimigos”, continua o guarda.
Outro símbolo prevalecente é o tamborete africano. “Na realidade, isso é provavelmente um descanso para a cabeça, ou um travesseiro, se você preferir. Ele simboliza o repouso”, explica Senai. Ele chama atenção para o símbolo “Σ”, que pode representar colinas ou uma mulher.
Se eles realmente foram guerreiros, havia mulheres em meio deles. Duas “amazonas etíopes” estão lá para provar isso. Todos os atributos femininos estão representados nessas estelas.
Ninguém conseguiu ainda determinar com certeza a idade das estelas, mas a análise dos restos humanos sugere que sejam de um período entre os séculos X e XV. Os ossos e as jóias descobertos nas tumbas foram levados ao Museu Nacional Etíope, enquanto o pequeno museu improvisado no sítio mantém uma coleção diversificada de objetos etnográficos.
Jasmina Šopova
Paquistão– morada espiritual e realidade nacional
Há mais complicações no Paquistão além dos problemas econômicos, afirma Lévi-Strauss no primeiro artigo que escreveu para o Correio, em maio de 1951. Uma jovem nação fundada sobre uma antiga civilização, o Paquistão sintetiza em seus problemas a totalidade do desenvolvimento humano.
De todos os países que compõem o mundo que habitamos, o Paquistão é um que provavelmente apresenta as mais peculiares características. As leis que definem a sua existência declararam que ele foi fundado como um estado no qual todos os muçulmanos poderiam viver de acordo com os princípios do Islã. Como tal, ele provê uma morada espiritual para todos os membros de uma única comunidade religiosa a despeito de suas origens nacionais. Todavia, o Paquistão permanece uma nação no sentido mais profundo da palavra. Ele agrupa, sob a mesma autoridade unificada, um território que por milhares de anos tem sido habitado pelas mesmas pessoas, muitas das quais têm dividido por séculos os mesmos princípios morais, políticos e religiosos que formam a base do novo estado.
Esse duplo aspecto – uma morada espiritual e uma realidade nacional – caracteriza o Paquistão de hoje. E ele explica também certos paradoxos. Se de um lado o Paquistão almeja reunir muçulmanos de toda a antiga Índia, na verdade 40 milhões de muçulmanos – ou cerca de 30 % do número total – ainda estão espalhados em outras partes do subcontinente.
Como uma nação, o Paquistão definiu fronteiras e algumas características geográficas e sociológicas distintivas. Como morada espiritual, de certa forma ele antecipa sua individualidade nacional. Ele precisa se moldar – com grande zelo criativo – na imagem da grande promessa que pretende ser, não apenas para o seu próprio povo, mas também para todos aqueles que um dia podem ir até lá buscar um modo de vida pautado pela manutenção da fé.
A fibra de ouro
É preciso apenas um breve olhar para um mapa para entender a complexidade de problemas que confrontam esta nação que estabeleceu, para si própria, esses imensos requisitos. Não apenas 1.500 quilômetros do território indiano dividem o Paquistão entre uma porção leste e uma porção oeste; como também diferenças no clima, na geografia física e mesmo na linguagem separam as duas regiões. O Paquistão Oriental tem a maior população, embora seja de longe a menor área; todavia é o Paquistão Ocidental, que é menos fértil, que compensa a escassez de comida na zona oriental. Essa zona (a Bengala Oriental) é quase toda dedicada ao cultivo da juta, que permite ao governo equilibrar o seu orçamento nacional.
O Paquistão acaba por ter praticamente um monopólio mundial em juta não-industrializada. Todavia, o país não apenas é incapaz de converter a fibra por falta de plantas industriais próprias para produtos de juta, como também a inadequação das estruturas portuárias impede até mesmo a sua exportação.
Para remediar essa situação, o governo tem investido numa série de projetos de industrialização para a construção de quatro usinas de juta em Narayanganj, uma hidrelétrica e uma usina de papel no rio Karnafully; além de novas estruturas portuárias em Chittagong, um novo porto no delta do Ganges, estações de energia em Malakand e refinarias de açúcar em Mardan.
Mas os imensos problemas no financiamento desses projetos e na transformação de uma vasta porção dos camponeses analfabetos em trabalhadores técnica e socialmente bem-educados representam formidáveis obstáculos. Aqui, os programas de Assistência Técnica das Nações Unidas e da UNESCO e o programa Ponto IV dos Estados Unidos podem auxiliar na superação de algumas dificuldades.
A separação e a conseqüente independência do Paquistão trouxeram consigo imensa miséria e sofrimento. Desde 1947, oito milhões de refugiados têm vagado pelo Paquistão Ocidental (Sind e Punjab) de todas as partes da Índia, deixando para trás tudo o que valorizam – suas coisas pessoais, suas economias, terras e restos mortais de seus antepassados – a fim de integrar a comunidade espiritual de suas próprias escolhas.
Apesar dos esforços do governo central, centenas de milhares desses refugiados ainda vivem em condições que são difíceis de descrever. Sem dúvida, a ajuda material deve ser oferecida primeiro aos adultos, mas o problema da readaptação e da reabilitação de crianças não é menos importante do que o de outras crianças durante e após a última guerra mundial, quando psicólogos, sociólogos, psiquiatras e educadores de todas as partes do mundo se reuniram para encontrar uma solução.
A crise dos botões de pérola
"Quem melhor que a UNESCO pode chamar a atenção dos cientistas e técnicos para o fato (que eles tendem a subestimar com tanta freqüência) de que os propósitos da ciência não são apenas os de resolver problemas científicos, mas também de encontrar respostas aos problemas sociais?"
Problemas semelhantes – e outros ainda mais específicos – também confrontam a Bengala Oriental. Para solucioná-los será necessário um grau de imaginação e de colaboração internacional que não é menor. Até o mais intensivo cultivo de juta será incapaz de absorver a mão-de-obra ociosa ou assegurar a sobrevivência da população cuja densidade demográfica excede mil habitantes por quilômetro quadrado. De fato, por séculos as pessoas têm buscado uma fonte suplementar de renda na indústria do algodão, como a manufatura de roupas muçulmanas que fez Dacca famosa. Mas até essas formas rurais de artesanato são condicionados por circunstâncias únicas. Eles dependem de mercados internacionais não apenas como fonte de matéria-prima, mas também para as vendas e o escoamento dos produtos finais.
Para tomar um caso específico, na Bengala Oriental visitei recentemente um grande número de vilas de incrível pobreza na região de Langalbund, não tão distante de Dacca. Lá, cerca de 50 mil pessoas vivem apenas da manufatura de botões de madre-pérola. Botões desse tipo, de grande uso em camisetas e roupas íntimas de baixo custo, são produzidos em grande quantidade por ferramentas manuais que poderiam muito bem haver pertencido à alta Idade Média.
As matérias-prima necessitadas para a sua produção, tal como químicos, papelão e chapas de decoração usados para montar os botões no papelão, deixaram de vir do estrangeiro desde que o Paquistão se tornou independente. Seguindo uma retração mundial da demanda, a produção de botões de pérola em vilas caiu de 60 mil grosas por semana para menos de 50 mil por mês enquanto o preço pago aos artesãos das vilas caiu 75 %.
Esse é apenas um exemplo dos aflitivos problemas que confrontam o Paquistão hoje. Seria um erro, todavia, vê-los simplesmente como problemas econômicos. Sem dúvida a chave para o dilema está antes de tudo nos técnicos.
Por exemplo, as condições materiais dos camponeses bengalis poderiam ser incrivelmente melhoradas pela introdução de pequenas máquinas operadas manualmente e especialmente fabricadas. Estas simplificariam os diferentes estágios de trabalho na indústria de botões. Mas quem melhor que a UNESCO pode chamar a atenção dos cientistas e técnicos para o fato (que eles tendem a subestimar com tanta freqüência) de que os propósitos da ciência não são apenas de resolver problemas científicos, mas também de encontrar respostas aos problemas sociais? Os esforços da ciência deveriam não apenas permitir à humanidade superar a si mesma; eles também devem ajudar aqueles que estão mais atrasados a tirar o atraso.
Uma jovem nação fundada na antiga civilização, o Paquistão, como outras nações da Ásia e da América, sintetiza os problemas de todo o desenvolvimento humano. Em um único momento ele sofre e vive na nossa Idade Média, perpetuada por suas vilas; nos nossos séculos XVIII e XIX reproduzidos por suas primeiras tentativas de industrialização; em nosso século XX, cujas vantagens está determinado a assegurar. Talvez ao prover o Paquistão com alguns dos meios para preencher essas lacunas e superar essas contradições, as nações mais desenvolvidas podem em troca aprender como a humanidade pode ser vencedora em atingir o seu pleno desenvolvimento individual sem negar nenhuma parte de sua herança e do seu passado.
De todos os países que compõem o mundo que habitamos, o Paquistão é um que provavelmente apresenta as mais peculiares características. As leis que definem a sua existência declararam que ele foi fundado como um estado no qual todos os muçulmanos poderiam viver de acordo com os princípios do Islã. Como tal, ele provê uma morada espiritual para todos os membros de uma única comunidade religiosa a despeito de suas origens nacionais. Todavia, o Paquistão permanece uma nação no sentido mais profundo da palavra. Ele agrupa, sob a mesma autoridade unificada, um território que por milhares de anos tem sido habitado pelas mesmas pessoas, muitas das quais têm dividido por séculos os mesmos princípios morais, políticos e religiosos que formam a base do novo estado.
Esse duplo aspecto – uma morada espiritual e uma realidade nacional – caracteriza o Paquistão de hoje. E ele explica também certos paradoxos. Se de um lado o Paquistão almeja reunir muçulmanos de toda a antiga Índia, na verdade 40 milhões de muçulmanos – ou cerca de 30 % do número total – ainda estão espalhados em outras partes do subcontinente.
Como uma nação, o Paquistão definiu fronteiras e algumas características geográficas e sociológicas distintivas. Como morada espiritual, de certa forma ele antecipa sua individualidade nacional. Ele precisa se moldar – com grande zelo criativo – na imagem da grande promessa que pretende ser, não apenas para o seu próprio povo, mas também para todos aqueles que um dia podem ir até lá buscar um modo de vida pautado pela manutenção da fé.
A fibra de ouro
É preciso apenas um breve olhar para um mapa para entender a complexidade de problemas que confrontam esta nação que estabeleceu, para si própria, esses imensos requisitos. Não apenas 1.500 quilômetros do território indiano dividem o Paquistão entre uma porção leste e uma porção oeste; como também diferenças no clima, na geografia física e mesmo na linguagem separam as duas regiões. O Paquistão Oriental tem a maior população, embora seja de longe a menor área; todavia é o Paquistão Ocidental, que é menos fértil, que compensa a escassez de comida na zona oriental. Essa zona (a Bengala Oriental) é quase toda dedicada ao cultivo da juta, que permite ao governo equilibrar o seu orçamento nacional.
O Paquistão acaba por ter praticamente um monopólio mundial em juta não-industrializada. Todavia, o país não apenas é incapaz de converter a fibra por falta de plantas industriais próprias para produtos de juta, como também a inadequação das estruturas portuárias impede até mesmo a sua exportação.
Para remediar essa situação, o governo tem investido numa série de projetos de industrialização para a construção de quatro usinas de juta em Narayanganj, uma hidrelétrica e uma usina de papel no rio Karnafully; além de novas estruturas portuárias em Chittagong, um novo porto no delta do Ganges, estações de energia em Malakand e refinarias de açúcar em Mardan.
Mas os imensos problemas no financiamento desses projetos e na transformação de uma vasta porção dos camponeses analfabetos em trabalhadores técnica e socialmente bem-educados representam formidáveis obstáculos. Aqui, os programas de Assistência Técnica das Nações Unidas e da UNESCO e o programa Ponto IV dos Estados Unidos podem auxiliar na superação de algumas dificuldades.
A separação e a conseqüente independência do Paquistão trouxeram consigo imensa miséria e sofrimento. Desde 1947, oito milhões de refugiados têm vagado pelo Paquistão Ocidental (Sind e Punjab) de todas as partes da Índia, deixando para trás tudo o que valorizam – suas coisas pessoais, suas economias, terras e restos mortais de seus antepassados – a fim de integrar a comunidade espiritual de suas próprias escolhas.
Apesar dos esforços do governo central, centenas de milhares desses refugiados ainda vivem em condições que são difíceis de descrever. Sem dúvida, a ajuda material deve ser oferecida primeiro aos adultos, mas o problema da readaptação e da reabilitação de crianças não é menos importante do que o de outras crianças durante e após a última guerra mundial, quando psicólogos, sociólogos, psiquiatras e educadores de todas as partes do mundo se reuniram para encontrar uma solução.
A crise dos botões de pérola
"Quem melhor que a UNESCO pode chamar a atenção dos cientistas e técnicos para o fato (que eles tendem a subestimar com tanta freqüência) de que os propósitos da ciência não são apenas os de resolver problemas científicos, mas também de encontrar respostas aos problemas sociais?"
Problemas semelhantes – e outros ainda mais específicos – também confrontam a Bengala Oriental. Para solucioná-los será necessário um grau de imaginação e de colaboração internacional que não é menor. Até o mais intensivo cultivo de juta será incapaz de absorver a mão-de-obra ociosa ou assegurar a sobrevivência da população cuja densidade demográfica excede mil habitantes por quilômetro quadrado. De fato, por séculos as pessoas têm buscado uma fonte suplementar de renda na indústria do algodão, como a manufatura de roupas muçulmanas que fez Dacca famosa. Mas até essas formas rurais de artesanato são condicionados por circunstâncias únicas. Eles dependem de mercados internacionais não apenas como fonte de matéria-prima, mas também para as vendas e o escoamento dos produtos finais.
Para tomar um caso específico, na Bengala Oriental visitei recentemente um grande número de vilas de incrível pobreza na região de Langalbund, não tão distante de Dacca. Lá, cerca de 50 mil pessoas vivem apenas da manufatura de botões de madre-pérola. Botões desse tipo, de grande uso em camisetas e roupas íntimas de baixo custo, são produzidos em grande quantidade por ferramentas manuais que poderiam muito bem haver pertencido à alta Idade Média.
As matérias-prima necessitadas para a sua produção, tal como químicos, papelão e chapas de decoração usados para montar os botões no papelão, deixaram de vir do estrangeiro desde que o Paquistão se tornou independente. Seguindo uma retração mundial da demanda, a produção de botões de pérola em vilas caiu de 60 mil grosas por semana para menos de 50 mil por mês enquanto o preço pago aos artesãos das vilas caiu 75 %.
Esse é apenas um exemplo dos aflitivos problemas que confrontam o Paquistão hoje. Seria um erro, todavia, vê-los simplesmente como problemas econômicos. Sem dúvida a chave para o dilema está antes de tudo nos técnicos.
Por exemplo, as condições materiais dos camponeses bengalis poderiam ser incrivelmente melhoradas pela introdução de pequenas máquinas operadas manualmente e especialmente fabricadas. Estas simplificariam os diferentes estágios de trabalho na indústria de botões. Mas quem melhor que a UNESCO pode chamar a atenção dos cientistas e técnicos para o fato (que eles tendem a subestimar com tanta freqüência) de que os propósitos da ciência não são apenas de resolver problemas científicos, mas também de encontrar respostas aos problemas sociais? Os esforços da ciência deveriam não apenas permitir à humanidade superar a si mesma; eles também devem ajudar aqueles que estão mais atrasados a tirar o atraso.
Uma jovem nação fundada na antiga civilização, o Paquistão, como outras nações da Ásia e da América, sintetiza os problemas de todo o desenvolvimento humano. Em um único momento ele sofre e vive na nossa Idade Média, perpetuada por suas vilas; nos nossos séculos XVIII e XIX reproduzidos por suas primeiras tentativas de industrialização; em nosso século XX, cujas vantagens está determinado a assegurar. Talvez ao prover o Paquistão com alguns dos meios para preencher essas lacunas e superar essas contradições, as nações mais desenvolvidas podem em troca aprender como a humanidade pode ser vencedora em atingir o seu pleno desenvolvimento individual sem negar nenhuma parte de sua herança e do seu passado.
O Ocidente tem muito a aprender com a Ásia
A Europa, ao incorporar a força ainda primitiva da Ásia num sistema econômico mundial preocupado apenas em explorar material prima e mão-de-obra humana, fez nascer uma crise que hoje deve remediar, declara Lévi-Strauss neste artigo de junho de 1952 para o Correio.
Se há uma noção que um europeu tentando entender o problema do sul da Ásia deve tirar de sua mente é a noção do “exótico”. Contrário ao que muitas sugestões na literatura e experiências de viajantes podem deixar a entender, as civilizações do Oriente não são, em sua essência, nenhum pouco diferentes do Ocidente.
Devemos dar uma olhada nos restos que a passagem dos séculos, a areia, as enchentes, o salitre e as invasões arianas deixaram da mais antiga civilização do Oriente – os sítios do vale do rio Indo, Mohenjodajo e Harappa, que têm de 4 mil a 5 mil anos. Que experiência desconcertante! Ruas tão retas quanto a corda de um arco, formando interseções em 90 graus; quarteirões de trabalhadores com casas de desenho invariável e monótono; oficinas industriais para o processamento da farinha, o trabalho dos metais, ou a “produção em massa” de taças baratas cujos restos ainda poluem o solo; celeiros municipais ocupando (para usar a palavra moderna) vários blocos; banhos públicos, cisternas públicas, esgoto público; quarteirões residenciais provendo moradias confortáveis, embora sem graça, e desenhadas mais para que toda a sociedade tenha conforto do que para uma minoria de homens de posse e de poder. Tudo isso dificilmente deixa de sugerir ao visitante o glamour e também as imperfeições de uma grande cidade moderna, mesmo em sua forma mais avançada, como a civilização ocidental a conhece e como é apresentado hoje à Europa, como modelo, pelos Estados Unidos da América.
Ao longo de 4 a 5 mil anos de história, pode-se imaginar que o ciclo estivesse completo – que a civilização de classe média baixa dos vilarejos do vale do rio Indo não fosse basicamente tão diferente (exceto no que se refere ao tamanho) daquela que estava destinada, após sua longa incubação européia, a atingir um desenvolvimento completo do outro lado do Atlântico.
Portanto, mesmo nos seus primeiros dias, as mais antigas civilizações do Velho Mundo estavam gerando os traços do “rosto” do Novo Mundo. Sem dúvida alguma, esse crepúsculo de uma proto-história de caráter uniforme já anunciava a aurora de outras histórias, estas de caráter heterogêneo. Mas essas divergências nunca foram estáveis ou contínuas.
Desde os dias da pré-história até os tempos modernos, o Oriente e o Ocidente têm constantemente tentado estabelecer a unidade que as linhas divergentes do desenvolvimento enfraqueceram. Mas mesmo quando eles pareciam divergir, a natureza sistemática de sua oposição – os lugares vistos desde cada extremo, geograficamente e pode-se dizer até mesmo moralmente, como o mais antigo e o mais recente, a Índia por um lado e os Estados Unidos por outro – forneceriam prova adicional da solidariedade do todo.
Amazônia e Ásia: tão semelhantes, tão diferentes
© Harold Lush
Manuscrito bengali.
Entre esses dois extremos, a Europa ocupa uma posição intermediária – uma posição modesta, não há dúvida –, mas uma posição que ela luta para enobrecer criticando o que ela considera excessos nos dois extremos: o enorme apego, na América, aos bens materiais e a exagerada concentração, no oriente, de elementos espirituais. Riqueza, por um lado, pobreza por outro, situações com as quais a Europa é tentada a lidar por meio de duas conflituosas teorias econômicas envolvendo, como princípio de fé, "gastar" em um dos casos e "economizar" no outro. Quando, após ter passado longos anos nas duas Américas, o escritor recebeu de um mantenedor de manuscritos bengalis sua primeira lição em filosofia asiática, ele pode ter sido levado a uma teoria simplista. O retrato apresentado foi esse: em oposição à região amazônica, pobre e tropical mas pouco povoada (o último fator parcialmente compensando o primeiro), estava o sul da Ásia, também pobre e tropical, mas desta vez uma área super povoada. Da mesma maneira, nas regiões de climas temperados, a América do Norte, com vastos recursos e uma população relativamente pequena, era contraparte da Europa, com recursos comparativamente pequenos mas uma grande população.
Quando, no entanto, esse retrato mudava do plano econômico para o plano moral e psicológico, esses contrastes se tornavam mais complexos. Porque nada parecia mais distante do padrão norte-americano que o estilo de vida deste sábio, cujo orgulho se encontrava em andar descalço e em ter, como suas únicas possessões terrenas, três túnicas de algodão as quais ele mesmo lavava e consertava. Ele pensava ter resolvido o problema social cozinhando sua comida em uma fogueira de folhas secas, coletada e recolhidas com suas próprias mãos.
O lado contrário
Quando se sobrevoa os vastos territórios do sul da Ásia, de Karachi a Saigon, cruzando o deserto de Thar, essa terra dividida até as menores propriedades e cultivada até o último hectare parece, à primeira vista, familiar ao europeu. No entanto, quando se olha mais de perto, uma diferença emerge. Esses fracos e lavados tons de rosa e verde, essa formação irregular de campos e lavouras de arroz constantemente aparece em diferentes formas, com fronteiras pouco definidas como em um tapete de retalhos. O tapete, como um todo, é o mesmo, mas como a forma e a cor são menos claros, menos definidos do que nas paisagens da Europa, tem-se a impressão de se estar olhando para o seu lado avesso. Isso é, claramente, uma mera imagem. Mas reflete, muito bem, as diferentes posições da Europa e da Ásia em relação a sua civilização comum. Do ponto de vista material, pelo menos uma delas parece ser o "avesso" da outra; uma sempre foi vencedora, a outra a perdedora, como se em um dado negócio (que começou, como já dizemos, conjuntamente) uma obteve todas as vantagens e a outra todos os prejuízos.
Em um dos casos (mas por quanto tempo ainda?) a expansão populacional abriu caminho para o progresso agrícola e industrial, de modo que os recursos cresceram mais rapidamente que o número de pessoas que os consumiam. No outro caso, o mesmo fenômeno tem, desde o início do século XVIII, assumido a forma de uma constante redução do montante retirado por cada indivíduo de um total comum que tem ficado mais ou menos estacionário.
É ao nascimento e desenvolvimento da vida urbana que a Europa tem atribuído os mais elevados valores materiais e espirituais? Mas a incrivelmente rápida taxa de desenvolvimento urbano do Oriente (ex: em Calcutá, a população cresceu de 2 a 5 milhões de habitantes em um período de poucos anos) tem tido o efeito de concentrar, nas áreas mais pobres, miséria e tragédias que nunca apareceram na Europa, exceto como contrapartes a avanços feitos em outras direções. Pois a vida urbana no Oriente não significa nada senão promiscuidade, a mais elementar falta de higiene e conforto, epidemias, subnutrição, insegurança e corrupção física e moral resultantes de uma existência coletiva e super concentrada. Tudo o que parece ser no Ocidente um acidente meramente patológico, resultante de um processo normal de crescimento, é o estado normal das coisas no Oriente, que joga o mesmo jogo, mas está condenado a ficar com as piores cartas.
[…]
Nunca é demais dizer que foi a Europa que, ao forçosamente incorporar a ainda primitiva Ásia a um sistema econômico mundial exclusivamente interessado em explorar suas matérias primas, mão de obra e possibilidade de novos mercados, criou uma crise (sem dúvida involuntária, e não menos pelos benefícios do que pelos abusos do processo). É sua, hoje, a responsabilidade de remediar essa crise.
Comparando-se com a América, a Europa reconhece sua posição menos favorável no que concerne a riquezas naturais, pressão populacional, produção individual e nível médio de consumo. Certo ou errado, por outro lado, a Europa se orgulha de prestar mais atenção aos valores espirituais. Deve-se admitir que a Ásia poderia pensar de maneira semelhante em relação à Europa, cuja modesta prosperidade representa para ela um luxo sem justificativas. De uma certa forma, a Europa é a "América" da Ásia. Essa "Ásia" tem menos ricos e maior população, é carente do capital necessário e dos técnicos para sua industrialização e está vendo seu rebanho e seu solo se deteriorando a cada dia enquanto sua população cresce a uma taxa sem precedentes. Essa mesma Ásia está constantemente inclinada a lembrar a Europa da origem comum dos dois continentes e de sua situação desigual quanto à exploração de seu patrimônio comum.
A Europa deve se reconciliar com o fato de que a Ásia tem sobre ela as mesmas demandas morais e materiais que ela, Europa, tem sobre os Estados Unidos. Se a Europa considera ter direitos perante o Novo Mundo, cuja civilização descende dela, então ela nunca deveria se esquecer de que esses direitos podem ser apenas baseados em fundamentos históricos e morais que criam para ela, em retorno, pesadas obrigações diante de um mundo do qual ela mesma nasceu.
No entanto, o Ocidente não deve temer que, nesse acerto de contas com o Oriente, este último seja o único beneficiário. Preocupado por muito tempo com o aspecto econômico das relações entre os dois mundos, o Ocidente provavelmente negligenciou várias lições que ele pode aprender com a Ásia. Não é tarde demais para começar agora.
Corpo e espírito
Apesar do interesse demonstrado por acadêmicos e do remarcado trabalho feito por orientalistas dos séculos XIX e XX, a mente ocidental não tem, como um todo, sido muito aberta às mensagens do pensamento asiático. Parecia difícil compreender quando foram feitas tentativas para introduzir esse pensamento a grupos de povos que não tinham a experiência básica que lhe era essencial.
Toda a civilização ocidental tem uma tendência a separar tanto quanto possível as atividades corpóreas das espirituais, ou ainda tratá-las como dois mundo incomunicáveis. Isso está refletido em suas idéias filosóficas, morais e religiosas e nas formas assumidas por suas técnicas e pela vida cotidiana. Foi apenas recentemente, com o desenvolvimento da psiquiatria, da análise e da medicina psicossomática, que o Ocidente realmente começou a entender a inseparabilidade dos dois mundos. Esse segredo, que lhe é novo e que o Ocidente maneja de forma tão desajeitada, é conhecido pela Ásia já há muito tempo. É verdade que ela o utiliza para finalidades que não seria exatamente os mesmos. Isso porque o Ocidente, que por três séculos tem se concentrado no desenvolvimento de processos mecânicos, esqueceu (ou nunca tentou desenvolver) aqueles processos do corpo que podem produzir naquele instrumento – o único que é natural e que está mais universalmente à disposição do homem – efeitos cuja diversidade e precisão são, em geral, desconhecidos.
Essa redescoberta do corpo humano, na qual a Ásia poderia ser um guia para a humanidade, também representaria uma redescoberta da mente humana, uma vez que iluminaria (assim como a Yoga e outros sistemas semelhantes) uma rede de ações e símbolos, experimentos mentais e processos físicos que, a menos que sejam conhecidos, poderiam provavelmente prevenir uma abordagem psicológica e filosófica do Oriente como nada mais do que uma fórmula vazia.
Encontrado na Ásia, esse sentimento de interdependência entre os aspectos da vida, que em qualquer outro lugar se tentou isolar, e de compatibilidade de valores às vezes considerados incompatíveis, também é encontrado na esfera do pensamento político e social. A primeira ilustração disso pode ser constatada no campo da religião. Do budismo ao islã, precedidos pelas várias formas do hinduísmo, as religiões do sul da Ásia têm mostrado sua supremacia na arte de viver, com compreensão, com formas muito diferentes de crença.
Quando os muçulmanos controlavam os mercados de porcos...
Em Bengala Oriental (hoje Bangladesh), não muito longe da fronteira com Burma, vê-se, lado a lado, mesquitas vazias de imagens, templos hindus onde os ídolos se agrupam em famílias, cada um deles sendo o receptáculo de um deus, e pagodes budistas repletas de imagens (objetos simples para contemplação) de um único sábio superior a deuses e aos homens. Essas formas irreconciliáveis e ao mesmo tempo complementares de fé humana puderam coexistir pacificamente, a ponto de as autoridades muçulmanas supervisionarem mercados nos quais a única carne vendida era de porco (a principal comida dos camponeses mongóis no interior de Chittagong). Além disso, jovens budistas, sob o olhar de seus monges, entusiasmadamente ajudavam a puxar a carruagem da deusa Kali para o rio, por ocasião do festival hindu.
Seria fácil contrastar essa imagem idílica aos massacres e incêndios que marcaram a separação do Paquistão da Índia. Mas no caso dessas seqüelas universais do veneno nacionalista, não é o Ocidente que tem a principal responsabilidade? As únicas tentativas de unificação política feitas pelo sul da Ásia – antes que a Europa nos compelisse em pensar em unificação nos moldes europeus – foram desenvolvidas em uma atmosfera bem diferente. Dos tempos de Asoka – de quem o Diretor Geral da UNESCO, em seu discurso para a Comissão Nacional Indiana, disse que ele “chegou ao conceito de um comitê universal que buscasse o bem de todas as criaturas” – a Gandhi, o ideal buscado sempre foi o da fraternidade pacífica. Esse ideal é particularmente evidente nos feitos políticos e estéticos do Imperador Akbar, cujos palácios em ruínas – uma combinação de estilos persas, hindus e europeus, lado a lado – afirmam a vontade e a possibilidade de que diferentes raças, crenças e civilizações vivam juntas em harmonia.
Essa é uma versão abreviada do artigo publicado no Boletim Internacional de Ciências Sociais, Vol. III, No. 4, periódico trimestral publicado pela UNESCO.
Se há uma noção que um europeu tentando entender o problema do sul da Ásia deve tirar de sua mente é a noção do “exótico”. Contrário ao que muitas sugestões na literatura e experiências de viajantes podem deixar a entender, as civilizações do Oriente não são, em sua essência, nenhum pouco diferentes do Ocidente.
Devemos dar uma olhada nos restos que a passagem dos séculos, a areia, as enchentes, o salitre e as invasões arianas deixaram da mais antiga civilização do Oriente – os sítios do vale do rio Indo, Mohenjodajo e Harappa, que têm de 4 mil a 5 mil anos. Que experiência desconcertante! Ruas tão retas quanto a corda de um arco, formando interseções em 90 graus; quarteirões de trabalhadores com casas de desenho invariável e monótono; oficinas industriais para o processamento da farinha, o trabalho dos metais, ou a “produção em massa” de taças baratas cujos restos ainda poluem o solo; celeiros municipais ocupando (para usar a palavra moderna) vários blocos; banhos públicos, cisternas públicas, esgoto público; quarteirões residenciais provendo moradias confortáveis, embora sem graça, e desenhadas mais para que toda a sociedade tenha conforto do que para uma minoria de homens de posse e de poder. Tudo isso dificilmente deixa de sugerir ao visitante o glamour e também as imperfeições de uma grande cidade moderna, mesmo em sua forma mais avançada, como a civilização ocidental a conhece e como é apresentado hoje à Europa, como modelo, pelos Estados Unidos da América.
Ao longo de 4 a 5 mil anos de história, pode-se imaginar que o ciclo estivesse completo – que a civilização de classe média baixa dos vilarejos do vale do rio Indo não fosse basicamente tão diferente (exceto no que se refere ao tamanho) daquela que estava destinada, após sua longa incubação européia, a atingir um desenvolvimento completo do outro lado do Atlântico.
Portanto, mesmo nos seus primeiros dias, as mais antigas civilizações do Velho Mundo estavam gerando os traços do “rosto” do Novo Mundo. Sem dúvida alguma, esse crepúsculo de uma proto-história de caráter uniforme já anunciava a aurora de outras histórias, estas de caráter heterogêneo. Mas essas divergências nunca foram estáveis ou contínuas.
Desde os dias da pré-história até os tempos modernos, o Oriente e o Ocidente têm constantemente tentado estabelecer a unidade que as linhas divergentes do desenvolvimento enfraqueceram. Mas mesmo quando eles pareciam divergir, a natureza sistemática de sua oposição – os lugares vistos desde cada extremo, geograficamente e pode-se dizer até mesmo moralmente, como o mais antigo e o mais recente, a Índia por um lado e os Estados Unidos por outro – forneceriam prova adicional da solidariedade do todo.
Amazônia e Ásia: tão semelhantes, tão diferentes
© Harold Lush
Manuscrito bengali.
Entre esses dois extremos, a Europa ocupa uma posição intermediária – uma posição modesta, não há dúvida –, mas uma posição que ela luta para enobrecer criticando o que ela considera excessos nos dois extremos: o enorme apego, na América, aos bens materiais e a exagerada concentração, no oriente, de elementos espirituais. Riqueza, por um lado, pobreza por outro, situações com as quais a Europa é tentada a lidar por meio de duas conflituosas teorias econômicas envolvendo, como princípio de fé, "gastar" em um dos casos e "economizar" no outro. Quando, após ter passado longos anos nas duas Américas, o escritor recebeu de um mantenedor de manuscritos bengalis sua primeira lição em filosofia asiática, ele pode ter sido levado a uma teoria simplista. O retrato apresentado foi esse: em oposição à região amazônica, pobre e tropical mas pouco povoada (o último fator parcialmente compensando o primeiro), estava o sul da Ásia, também pobre e tropical, mas desta vez uma área super povoada. Da mesma maneira, nas regiões de climas temperados, a América do Norte, com vastos recursos e uma população relativamente pequena, era contraparte da Europa, com recursos comparativamente pequenos mas uma grande população.
Quando, no entanto, esse retrato mudava do plano econômico para o plano moral e psicológico, esses contrastes se tornavam mais complexos. Porque nada parecia mais distante do padrão norte-americano que o estilo de vida deste sábio, cujo orgulho se encontrava em andar descalço e em ter, como suas únicas possessões terrenas, três túnicas de algodão as quais ele mesmo lavava e consertava. Ele pensava ter resolvido o problema social cozinhando sua comida em uma fogueira de folhas secas, coletada e recolhidas com suas próprias mãos.
O lado contrário
Quando se sobrevoa os vastos territórios do sul da Ásia, de Karachi a Saigon, cruzando o deserto de Thar, essa terra dividida até as menores propriedades e cultivada até o último hectare parece, à primeira vista, familiar ao europeu. No entanto, quando se olha mais de perto, uma diferença emerge. Esses fracos e lavados tons de rosa e verde, essa formação irregular de campos e lavouras de arroz constantemente aparece em diferentes formas, com fronteiras pouco definidas como em um tapete de retalhos. O tapete, como um todo, é o mesmo, mas como a forma e a cor são menos claros, menos definidos do que nas paisagens da Europa, tem-se a impressão de se estar olhando para o seu lado avesso. Isso é, claramente, uma mera imagem. Mas reflete, muito bem, as diferentes posições da Europa e da Ásia em relação a sua civilização comum. Do ponto de vista material, pelo menos uma delas parece ser o "avesso" da outra; uma sempre foi vencedora, a outra a perdedora, como se em um dado negócio (que começou, como já dizemos, conjuntamente) uma obteve todas as vantagens e a outra todos os prejuízos.
Em um dos casos (mas por quanto tempo ainda?) a expansão populacional abriu caminho para o progresso agrícola e industrial, de modo que os recursos cresceram mais rapidamente que o número de pessoas que os consumiam. No outro caso, o mesmo fenômeno tem, desde o início do século XVIII, assumido a forma de uma constante redução do montante retirado por cada indivíduo de um total comum que tem ficado mais ou menos estacionário.
É ao nascimento e desenvolvimento da vida urbana que a Europa tem atribuído os mais elevados valores materiais e espirituais? Mas a incrivelmente rápida taxa de desenvolvimento urbano do Oriente (ex: em Calcutá, a população cresceu de 2 a 5 milhões de habitantes em um período de poucos anos) tem tido o efeito de concentrar, nas áreas mais pobres, miséria e tragédias que nunca apareceram na Europa, exceto como contrapartes a avanços feitos em outras direções. Pois a vida urbana no Oriente não significa nada senão promiscuidade, a mais elementar falta de higiene e conforto, epidemias, subnutrição, insegurança e corrupção física e moral resultantes de uma existência coletiva e super concentrada. Tudo o que parece ser no Ocidente um acidente meramente patológico, resultante de um processo normal de crescimento, é o estado normal das coisas no Oriente, que joga o mesmo jogo, mas está condenado a ficar com as piores cartas.
[…]
Nunca é demais dizer que foi a Europa que, ao forçosamente incorporar a ainda primitiva Ásia a um sistema econômico mundial exclusivamente interessado em explorar suas matérias primas, mão de obra e possibilidade de novos mercados, criou uma crise (sem dúvida involuntária, e não menos pelos benefícios do que pelos abusos do processo). É sua, hoje, a responsabilidade de remediar essa crise.
Comparando-se com a América, a Europa reconhece sua posição menos favorável no que concerne a riquezas naturais, pressão populacional, produção individual e nível médio de consumo. Certo ou errado, por outro lado, a Europa se orgulha de prestar mais atenção aos valores espirituais. Deve-se admitir que a Ásia poderia pensar de maneira semelhante em relação à Europa, cuja modesta prosperidade representa para ela um luxo sem justificativas. De uma certa forma, a Europa é a "América" da Ásia. Essa "Ásia" tem menos ricos e maior população, é carente do capital necessário e dos técnicos para sua industrialização e está vendo seu rebanho e seu solo se deteriorando a cada dia enquanto sua população cresce a uma taxa sem precedentes. Essa mesma Ásia está constantemente inclinada a lembrar a Europa da origem comum dos dois continentes e de sua situação desigual quanto à exploração de seu patrimônio comum.
A Europa deve se reconciliar com o fato de que a Ásia tem sobre ela as mesmas demandas morais e materiais que ela, Europa, tem sobre os Estados Unidos. Se a Europa considera ter direitos perante o Novo Mundo, cuja civilização descende dela, então ela nunca deveria se esquecer de que esses direitos podem ser apenas baseados em fundamentos históricos e morais que criam para ela, em retorno, pesadas obrigações diante de um mundo do qual ela mesma nasceu.
No entanto, o Ocidente não deve temer que, nesse acerto de contas com o Oriente, este último seja o único beneficiário. Preocupado por muito tempo com o aspecto econômico das relações entre os dois mundos, o Ocidente provavelmente negligenciou várias lições que ele pode aprender com a Ásia. Não é tarde demais para começar agora.
Corpo e espírito
Apesar do interesse demonstrado por acadêmicos e do remarcado trabalho feito por orientalistas dos séculos XIX e XX, a mente ocidental não tem, como um todo, sido muito aberta às mensagens do pensamento asiático. Parecia difícil compreender quando foram feitas tentativas para introduzir esse pensamento a grupos de povos que não tinham a experiência básica que lhe era essencial.
Toda a civilização ocidental tem uma tendência a separar tanto quanto possível as atividades corpóreas das espirituais, ou ainda tratá-las como dois mundo incomunicáveis. Isso está refletido em suas idéias filosóficas, morais e religiosas e nas formas assumidas por suas técnicas e pela vida cotidiana. Foi apenas recentemente, com o desenvolvimento da psiquiatria, da análise e da medicina psicossomática, que o Ocidente realmente começou a entender a inseparabilidade dos dois mundos. Esse segredo, que lhe é novo e que o Ocidente maneja de forma tão desajeitada, é conhecido pela Ásia já há muito tempo. É verdade que ela o utiliza para finalidades que não seria exatamente os mesmos. Isso porque o Ocidente, que por três séculos tem se concentrado no desenvolvimento de processos mecânicos, esqueceu (ou nunca tentou desenvolver) aqueles processos do corpo que podem produzir naquele instrumento – o único que é natural e que está mais universalmente à disposição do homem – efeitos cuja diversidade e precisão são, em geral, desconhecidos.
Essa redescoberta do corpo humano, na qual a Ásia poderia ser um guia para a humanidade, também representaria uma redescoberta da mente humana, uma vez que iluminaria (assim como a Yoga e outros sistemas semelhantes) uma rede de ações e símbolos, experimentos mentais e processos físicos que, a menos que sejam conhecidos, poderiam provavelmente prevenir uma abordagem psicológica e filosófica do Oriente como nada mais do que uma fórmula vazia.
Encontrado na Ásia, esse sentimento de interdependência entre os aspectos da vida, que em qualquer outro lugar se tentou isolar, e de compatibilidade de valores às vezes considerados incompatíveis, também é encontrado na esfera do pensamento político e social. A primeira ilustração disso pode ser constatada no campo da religião. Do budismo ao islã, precedidos pelas várias formas do hinduísmo, as religiões do sul da Ásia têm mostrado sua supremacia na arte de viver, com compreensão, com formas muito diferentes de crença.
Quando os muçulmanos controlavam os mercados de porcos...
Em Bengala Oriental (hoje Bangladesh), não muito longe da fronteira com Burma, vê-se, lado a lado, mesquitas vazias de imagens, templos hindus onde os ídolos se agrupam em famílias, cada um deles sendo o receptáculo de um deus, e pagodes budistas repletas de imagens (objetos simples para contemplação) de um único sábio superior a deuses e aos homens. Essas formas irreconciliáveis e ao mesmo tempo complementares de fé humana puderam coexistir pacificamente, a ponto de as autoridades muçulmanas supervisionarem mercados nos quais a única carne vendida era de porco (a principal comida dos camponeses mongóis no interior de Chittagong). Além disso, jovens budistas, sob o olhar de seus monges, entusiasmadamente ajudavam a puxar a carruagem da deusa Kali para o rio, por ocasião do festival hindu.
Seria fácil contrastar essa imagem idílica aos massacres e incêndios que marcaram a separação do Paquistão da Índia. Mas no caso dessas seqüelas universais do veneno nacionalista, não é o Ocidente que tem a principal responsabilidade? As únicas tentativas de unificação política feitas pelo sul da Ásia – antes que a Europa nos compelisse em pensar em unificação nos moldes europeus – foram desenvolvidas em uma atmosfera bem diferente. Dos tempos de Asoka – de quem o Diretor Geral da UNESCO, em seu discurso para a Comissão Nacional Indiana, disse que ele “chegou ao conceito de um comitê universal que buscasse o bem de todas as criaturas” – a Gandhi, o ideal buscado sempre foi o da fraternidade pacífica. Esse ideal é particularmente evidente nos feitos políticos e estéticos do Imperador Akbar, cujos palácios em ruínas – uma combinação de estilos persas, hindus e europeus, lado a lado – afirmam a vontade e a possibilidade de que diferentes raças, crenças e civilizações vivam juntas em harmonia.
Essa é uma versão abreviada do artigo publicado no Boletim Internacional de Ciências Sociais, Vol. III, No. 4, periódico trimestral publicado pela UNESCO.
Primitivos?
O termo implica uma idéia de início. Ele se refere a pessoas que vivem como o faziam no início da história humana? Uma hipótese sedutora, mas que leva a sérios mal-entendidos, diz Lévi-Strauss, explicando neste artigo do Correio de maio de 1951 porque a noção de sociedade primitiva é uma ilusão.
Houve um tempo em que, se você falasse dos selvagens, todos tinham uma idéia clara do que você estava falando. Etimologicamente, o selvagem era um homem da floresta e o termo denotava aquelas pessoas que viviam em contato com a natureza. A palavra alemã naturvölker (pessoa da natureza) transmitia essa idéia diretamente.
Mas além do fato de que nem todos os selvagens vivem necessariamente nas florestas (pense nos esquimós), a palavra logo adquiriu um significado figurado que rapidamente se tornou derrogatório. Além disso, a idéia de se viver em contato com a natureza é ambígua; os fazendeiros vivem muito mais próximos à natureza do que cidadãos da cidade e nem por isso deixam de pertencer à mesma civilização.
Os cientistas perceberam que não se pode classificar os povos de acordo com o quão perto ou distantes eles estão da natureza. Na realidade, o que distingue a humanidade dos animais é que o homem, com o seu uso universal da linguagem, seus utensílios e ferramentas fabricados, sua submissão a esses costumes, crenças e instituições, pertence a uma ordem superior a qualquer outro ser vivo na natureza. O mundo do homem é o mundo da cultura que está rigorosa e inequivocamente oposto à natureza, qualquer que seja o nível de civilização. Todos os seres humanos falam, fazem utensílios e se comportam de acordo com regras estabelecidas, estejam eles vivendo em arranha-céus ou em uma cabana no meio da floresta. E são essas coisas que os tornam seres humanos, não o material particular com o qual eles constroem suas casas.
A antropologia moderna prefere, portanto, usar a palavra "primitivo" para designar os povos que costumavam ser chamados de "selvagens". Há um enorme número de sociedades primitivas – vários milhares, de acordo com a estimativa mais recente. Mas o problema começa quando se tenta descrever as características dessas sociedades.
Que denominador comum?
Primeiramente podemos descontar o fator dos números, que corresponde ao tamanho da sociedade. É claro que tamanho tem significado do ponto de vista global, uma vez que sociedades envolvendo vários milhões de membros aparecem apenas raramente na história da humanidade e são encontradas apenas em algumas poucas grandes civilizações. Adicionalmente, essas civilizações apareceram em diferentes épocas históricas e em regiões tão distantes uma das outras como o Oriente e o Extremo Oriente, a Europa, a América Central e a América do Sul.
No entanto, abaixo desse nível existem diferenças tão grandes que o fator-número ou tamanho acabam não tendo qualquer valor absoluto. Alguns reinos africanos tinham várias centenas de milhares de membros, as tribos da Oceania tinham vários milhares, mas em uma mesma região do mundo encontramos sociedades compostas por apenas algumas centenas de pessoas ou até mesmo algumas poucas dúzias.
Além disso, esses povos (por exemplo, os esquimós e algumas tribos australianas) estão frequentemente organizados de uma maneira extraordinariamente flexível: um grupo é capaz de se expandir durante ocasiões festivas ou durante certos períodos do ano, de modo a incluir milhares de pessoas, enquanto em outras estações ele se divide em pequenos bandos auto-suficientes, compostos por algumas famílias ou até mesmo de uma única família. Obviamente, se uma sociedade que consiste em 40 membros e outra em 40 mil podem ser chamadas de primitivas pela mesma razão, o fator numérico, por si só, não oferece uma boa explicação.
Culturas existentes fora da civilização industrial
É possível que pisemos em terreno mais firme se levamos em consideração outra característica, sem dúvida presente em todas as culturas que chamamos de primitivas: cada uma delas está, ou pelo menos esteve até bem recentemente, fora do escopo da civilização industrial. Mas também aí, o critério não funcionará.
Considere o caso da Europa Ocidental. Tem-se dito frequentemente, e com razão, que o modo de vida dos europeus ocidentais quase não mudou do início dos tempos históricos até a invenção do motor a vapor; não havia qualquer diferença fundamental entre o estilo de vida de um patrício do Império Romano e a vida de um burguês francês, inglês ou holandês do século XVIII.
Adicionalmente, nem Roma no século II a.C nem Amsterdã em 1750 são comparáveis a uma vila da Melanésia hoje ou a Timbuktu em meados do século XIX. As civilizações que precederam o nascimento da civilização industrial não devem ser confundidas com aquelas que existiram fora dela, e poderiam permanecer fora dela por um longo tempo se a industrialização não lhes tivesse sido imposta.
O fato é que, quando falamos de povos primitivos, devemos ter em mente o fator história (ou tempo). A própria palavra ‘primitivo’ implica a idéia de começo. Então podemos dizer que os povos primitivos são aqueles que retiveram ou preservaram até o momento o modo de vida que data do início da sociedade humana? Essa é uma hipótese sedutora que é válida dentro de certos limites. Mas que também é capaz de causar uma grande confusão.
"Todas as sociedades – desde o poderoso império dos incas […] até os pequenos bandos nômades de coletores de plantas na Austrália – são comparáveis em pelo menos um aspecto: eles não conheciam ou ainda não conhecem a escrita. […] Embora essas sociedades não sejam, estritamente falando, mais “primitivas” que a nossa, seu passado é de um tipo diferente. […] Foi um passado fluido que pôde ser apenas preservado em pequenas quantidades e o resto que existiu foi condenado ao esquecimento sem qualquer esperança de recuperação."
Primeiramente, não sabemos nada do início da humanidade. Os primeiros traços já descobertos – armas e implementos em pedra e há alguns milhares de séculos – certamente não foram os primeiros produtos de cérebro humano. Mas eles já revelam habilidades técnicas complicadas que provavelmente foram desenvolvidas pouco a pouco. Acima de tudo, foi constatado que essas técnicas eram as mesmas em uma vasta área da superfície da terra, sugerindo, portanto, que elas tiveram tempo para se espalhar, influenciar umas às outras e para se tornarem homogêneas.
Em segundo lugar, os povos aos quais chamamos primitivos são todos – ou quase todos - familiarizados com pelo menos algumas das artes e técnicas que apareceram bem mais tarde no desenvolvimento da civilização. Embora os mais antigos implementos de pedra lascada datem de 400 mil a 500 mil anos atrás, a agricultura, pecuária, tecelagem e cerâmica apareceram há apenas 10 mil anos, talvez até menos. Portanto, a “primitividade” dos povos que cultivavam jardins, criavam porcos, teciam o algodão e faziam potes é relativa na linha do tempo da história da humanidade.
Mas podemos fazer outra pergunta: afinal de contas, pelo menos alguns desses povos não continuam a seguir um modo de vida que é bem mais antigo que o nosso, mais parecido com o do homem dos primeiros tempos? Alguns exemplos logo vêm à mente: os aborígenes da Austrália ou da América do Sul. Eles levam uma vida nômade em regiões semi-áridas, vivem da caça ou da coleta da terra do que quer que possam comer. Desconhecem a tecelagem ou a cerâmica e até bem recentemente usavam instrumentos de pedra. Os nativos da Austrália desconheciam até mesmo o arco e flecha, enquanto aqueles da Terra do Fogo tinham apenas um tipo bem rudimentar.
Povos sem história?
Todavia, o progresso do conhecimento etnológico fornece uma explicação. Tem-se mostrado que o estado aparentemente primitivo não é o resultado de nenhuma preservação milagrosa de um modo antigo de vida. Ele é o efeito da regressão. Os Australianos só podem ter alcançado seu continente de barco, de modo que em algum momento eles devem ter conhecido a arte da navegação, mas desde então a esqueceram. Uma mudança para uma área sem argila de boa qualidade freqüentemente explica o desaparecimento da cerâmica, até mesmo da mente humana. A língua prova que os povos, cujo baixo nível de civilização pode sugerir sua imobilização e isolamento no mesmo lugar por muito tempo, na realidade estiveram em contato com populações mais desenvolvidas por milhares de anos. Muito longe desses povos supostamente primitivos não terem história, é justamente a história deles que explica as condições especiais nas quais eles foram encontrados.
Sendo assim, seria absurdo pensar que é porque não sabemos nada ou quase nada de seu passado que os povos primitivos não têm história. Seus mais remotos ancestrais apareceram na Terra ao mesmo tempo que os nossos. Por dezenas ou centenas de milhares de anos, outras sociedades precederam as deles e ao longo do tempo viveram, permaneceram e, portanto, se modificaram, como a nossa o fez. Elas conheceram guerras, migrações, períodos de carência e prosperidade. Eles tiveram grandes homens que deixaram sua marca no conhecimento técnico, na arte, na moral e na religião. Todo esse passado existe. Eles simplesmente sabem pouco a respeito dele e nós não sabemos nada.
A presença latente e a pressão de um passado que desapareceram são suficientes para mostrar a falsidade da palavra ‘primitivo’ e até mesmo da idéia sobre os povos primitivos. Mas, ao mesmo tempo, devemos notar uma característica que todas aquelas sociedades têm em comum e que as distingue da nossa. É a razão para aplicarmos a elas o mesmo termo, mesmo que ele seja inapropriado.
Primitivo: um termo enganador
Todas as sociedades – desde o poderoso império dos incas , que tiveram êxito em organizar vários milhões de homens em um sistema político-econômico de excepcional eficiência, até os pequenos bandos nômades de coletores de plantas na Austrália – são comparáveis em pelo menos um aspecto: eles não conheciam ou ainda não conhecem a escrita.
Eles não puderam preservar seu passado exceto pelo que a memória humana foi capaz de reter. Isso permanece verdadeiro mesmo para os grupos pequenos que desenvolveram, na ausência da escrita, alguns sistemas de mnemônica (tais quais as cordas peruanas com nós ou os símbolos gráficos da Ilha de Páscoa e de certas tribos africanas). Embora essas sociedades não sejam, estritamente falando, mais “primitivas” que a nossa, seu passado é de um tipo diferente. Não foi um passado preservado por escrito e portanto disponível a qualquer momento para ser usado em benefício do presente.
Foi um passado fluido que pôde ser preservado apenas em pequenas quantidades e o resto que existiu foi condenado ao esquecimento sem qualquer esperança de recuperação.
Para utilizar uma expressão da linguagem da navegação, as sociedades que possuem algum tipo de escrita têm um meio de registrar seu trajeto e, portanto, manter-se na mesma rota por um longo período. Por outro lado, as sociedades despossuídas de alguma forma de escrita estão limitadas a seguir uma rota instável, o que pode ao fim (embora a distância navegada possa ser a mesma em ambos os casos) trazê-las de volta ao seu ponto de partida. Ou, pelo menos, a ausência da escrita as priva dos meios para saírem de suas rotas, ou seja, realizarem progresso.
Portanto, nunca é demais enfatizar que os leitores – e até mesmo os cientistas – devem estar conscientes do uso ambíguo de termos como ‘selvagem’, ‘primitivo’ ou ‘arcaico’. Pela adoção da presença ou ausência da escrita como o único critério no estudo de nossas sociedades, devemos, primeiramente, invocar uma qualidade objetiva que não envolve postulados filosóficos ou morais. E, ao mesmo tempo, devemos depender de uma única característica capaz de explicar a real diferença que distingue certas sociedades da nossa.
A idéia de uma sociedade primitiva é uma ilusão. Por outro lado, a idéia de uma sociedade sem nenhuma forma de escrita nos torna conscientes do lado essencial do desenvolvimento da humanidade, ela explica a história e nos torna capazes de prever e talvez influenciar o futuro desses povos.
Houve um tempo em que, se você falasse dos selvagens, todos tinham uma idéia clara do que você estava falando. Etimologicamente, o selvagem era um homem da floresta e o termo denotava aquelas pessoas que viviam em contato com a natureza. A palavra alemã naturvölker (pessoa da natureza) transmitia essa idéia diretamente.
Mas além do fato de que nem todos os selvagens vivem necessariamente nas florestas (pense nos esquimós), a palavra logo adquiriu um significado figurado que rapidamente se tornou derrogatório. Além disso, a idéia de se viver em contato com a natureza é ambígua; os fazendeiros vivem muito mais próximos à natureza do que cidadãos da cidade e nem por isso deixam de pertencer à mesma civilização.
Os cientistas perceberam que não se pode classificar os povos de acordo com o quão perto ou distantes eles estão da natureza. Na realidade, o que distingue a humanidade dos animais é que o homem, com o seu uso universal da linguagem, seus utensílios e ferramentas fabricados, sua submissão a esses costumes, crenças e instituições, pertence a uma ordem superior a qualquer outro ser vivo na natureza. O mundo do homem é o mundo da cultura que está rigorosa e inequivocamente oposto à natureza, qualquer que seja o nível de civilização. Todos os seres humanos falam, fazem utensílios e se comportam de acordo com regras estabelecidas, estejam eles vivendo em arranha-céus ou em uma cabana no meio da floresta. E são essas coisas que os tornam seres humanos, não o material particular com o qual eles constroem suas casas.
A antropologia moderna prefere, portanto, usar a palavra "primitivo" para designar os povos que costumavam ser chamados de "selvagens". Há um enorme número de sociedades primitivas – vários milhares, de acordo com a estimativa mais recente. Mas o problema começa quando se tenta descrever as características dessas sociedades.
Que denominador comum?
Primeiramente podemos descontar o fator dos números, que corresponde ao tamanho da sociedade. É claro que tamanho tem significado do ponto de vista global, uma vez que sociedades envolvendo vários milhões de membros aparecem apenas raramente na história da humanidade e são encontradas apenas em algumas poucas grandes civilizações. Adicionalmente, essas civilizações apareceram em diferentes épocas históricas e em regiões tão distantes uma das outras como o Oriente e o Extremo Oriente, a Europa, a América Central e a América do Sul.
No entanto, abaixo desse nível existem diferenças tão grandes que o fator-número ou tamanho acabam não tendo qualquer valor absoluto. Alguns reinos africanos tinham várias centenas de milhares de membros, as tribos da Oceania tinham vários milhares, mas em uma mesma região do mundo encontramos sociedades compostas por apenas algumas centenas de pessoas ou até mesmo algumas poucas dúzias.
Além disso, esses povos (por exemplo, os esquimós e algumas tribos australianas) estão frequentemente organizados de uma maneira extraordinariamente flexível: um grupo é capaz de se expandir durante ocasiões festivas ou durante certos períodos do ano, de modo a incluir milhares de pessoas, enquanto em outras estações ele se divide em pequenos bandos auto-suficientes, compostos por algumas famílias ou até mesmo de uma única família. Obviamente, se uma sociedade que consiste em 40 membros e outra em 40 mil podem ser chamadas de primitivas pela mesma razão, o fator numérico, por si só, não oferece uma boa explicação.
Culturas existentes fora da civilização industrial
É possível que pisemos em terreno mais firme se levamos em consideração outra característica, sem dúvida presente em todas as culturas que chamamos de primitivas: cada uma delas está, ou pelo menos esteve até bem recentemente, fora do escopo da civilização industrial. Mas também aí, o critério não funcionará.
Considere o caso da Europa Ocidental. Tem-se dito frequentemente, e com razão, que o modo de vida dos europeus ocidentais quase não mudou do início dos tempos históricos até a invenção do motor a vapor; não havia qualquer diferença fundamental entre o estilo de vida de um patrício do Império Romano e a vida de um burguês francês, inglês ou holandês do século XVIII.
Adicionalmente, nem Roma no século II a.C nem Amsterdã em 1750 são comparáveis a uma vila da Melanésia hoje ou a Timbuktu em meados do século XIX. As civilizações que precederam o nascimento da civilização industrial não devem ser confundidas com aquelas que existiram fora dela, e poderiam permanecer fora dela por um longo tempo se a industrialização não lhes tivesse sido imposta.
O fato é que, quando falamos de povos primitivos, devemos ter em mente o fator história (ou tempo). A própria palavra ‘primitivo’ implica a idéia de começo. Então podemos dizer que os povos primitivos são aqueles que retiveram ou preservaram até o momento o modo de vida que data do início da sociedade humana? Essa é uma hipótese sedutora que é válida dentro de certos limites. Mas que também é capaz de causar uma grande confusão.
"Todas as sociedades – desde o poderoso império dos incas […] até os pequenos bandos nômades de coletores de plantas na Austrália – são comparáveis em pelo menos um aspecto: eles não conheciam ou ainda não conhecem a escrita. […] Embora essas sociedades não sejam, estritamente falando, mais “primitivas” que a nossa, seu passado é de um tipo diferente. […] Foi um passado fluido que pôde ser apenas preservado em pequenas quantidades e o resto que existiu foi condenado ao esquecimento sem qualquer esperança de recuperação."
Primeiramente, não sabemos nada do início da humanidade. Os primeiros traços já descobertos – armas e implementos em pedra e há alguns milhares de séculos – certamente não foram os primeiros produtos de cérebro humano. Mas eles já revelam habilidades técnicas complicadas que provavelmente foram desenvolvidas pouco a pouco. Acima de tudo, foi constatado que essas técnicas eram as mesmas em uma vasta área da superfície da terra, sugerindo, portanto, que elas tiveram tempo para se espalhar, influenciar umas às outras e para se tornarem homogêneas.
Em segundo lugar, os povos aos quais chamamos primitivos são todos – ou quase todos - familiarizados com pelo menos algumas das artes e técnicas que apareceram bem mais tarde no desenvolvimento da civilização. Embora os mais antigos implementos de pedra lascada datem de 400 mil a 500 mil anos atrás, a agricultura, pecuária, tecelagem e cerâmica apareceram há apenas 10 mil anos, talvez até menos. Portanto, a “primitividade” dos povos que cultivavam jardins, criavam porcos, teciam o algodão e faziam potes é relativa na linha do tempo da história da humanidade.
Mas podemos fazer outra pergunta: afinal de contas, pelo menos alguns desses povos não continuam a seguir um modo de vida que é bem mais antigo que o nosso, mais parecido com o do homem dos primeiros tempos? Alguns exemplos logo vêm à mente: os aborígenes da Austrália ou da América do Sul. Eles levam uma vida nômade em regiões semi-áridas, vivem da caça ou da coleta da terra do que quer que possam comer. Desconhecem a tecelagem ou a cerâmica e até bem recentemente usavam instrumentos de pedra. Os nativos da Austrália desconheciam até mesmo o arco e flecha, enquanto aqueles da Terra do Fogo tinham apenas um tipo bem rudimentar.
Povos sem história?
Todavia, o progresso do conhecimento etnológico fornece uma explicação. Tem-se mostrado que o estado aparentemente primitivo não é o resultado de nenhuma preservação milagrosa de um modo antigo de vida. Ele é o efeito da regressão. Os Australianos só podem ter alcançado seu continente de barco, de modo que em algum momento eles devem ter conhecido a arte da navegação, mas desde então a esqueceram. Uma mudança para uma área sem argila de boa qualidade freqüentemente explica o desaparecimento da cerâmica, até mesmo da mente humana. A língua prova que os povos, cujo baixo nível de civilização pode sugerir sua imobilização e isolamento no mesmo lugar por muito tempo, na realidade estiveram em contato com populações mais desenvolvidas por milhares de anos. Muito longe desses povos supostamente primitivos não terem história, é justamente a história deles que explica as condições especiais nas quais eles foram encontrados.
Sendo assim, seria absurdo pensar que é porque não sabemos nada ou quase nada de seu passado que os povos primitivos não têm história. Seus mais remotos ancestrais apareceram na Terra ao mesmo tempo que os nossos. Por dezenas ou centenas de milhares de anos, outras sociedades precederam as deles e ao longo do tempo viveram, permaneceram e, portanto, se modificaram, como a nossa o fez. Elas conheceram guerras, migrações, períodos de carência e prosperidade. Eles tiveram grandes homens que deixaram sua marca no conhecimento técnico, na arte, na moral e na religião. Todo esse passado existe. Eles simplesmente sabem pouco a respeito dele e nós não sabemos nada.
A presença latente e a pressão de um passado que desapareceram são suficientes para mostrar a falsidade da palavra ‘primitivo’ e até mesmo da idéia sobre os povos primitivos. Mas, ao mesmo tempo, devemos notar uma característica que todas aquelas sociedades têm em comum e que as distingue da nossa. É a razão para aplicarmos a elas o mesmo termo, mesmo que ele seja inapropriado.
Primitivo: um termo enganador
Todas as sociedades – desde o poderoso império dos incas , que tiveram êxito em organizar vários milhões de homens em um sistema político-econômico de excepcional eficiência, até os pequenos bandos nômades de coletores de plantas na Austrália – são comparáveis em pelo menos um aspecto: eles não conheciam ou ainda não conhecem a escrita.
Eles não puderam preservar seu passado exceto pelo que a memória humana foi capaz de reter. Isso permanece verdadeiro mesmo para os grupos pequenos que desenvolveram, na ausência da escrita, alguns sistemas de mnemônica (tais quais as cordas peruanas com nós ou os símbolos gráficos da Ilha de Páscoa e de certas tribos africanas). Embora essas sociedades não sejam, estritamente falando, mais “primitivas” que a nossa, seu passado é de um tipo diferente. Não foi um passado preservado por escrito e portanto disponível a qualquer momento para ser usado em benefício do presente.
Foi um passado fluido que pôde ser preservado apenas em pequenas quantidades e o resto que existiu foi condenado ao esquecimento sem qualquer esperança de recuperação.
Para utilizar uma expressão da linguagem da navegação, as sociedades que possuem algum tipo de escrita têm um meio de registrar seu trajeto e, portanto, manter-se na mesma rota por um longo período. Por outro lado, as sociedades despossuídas de alguma forma de escrita estão limitadas a seguir uma rota instável, o que pode ao fim (embora a distância navegada possa ser a mesma em ambos os casos) trazê-las de volta ao seu ponto de partida. Ou, pelo menos, a ausência da escrita as priva dos meios para saírem de suas rotas, ou seja, realizarem progresso.
Portanto, nunca é demais enfatizar que os leitores – e até mesmo os cientistas – devem estar conscientes do uso ambíguo de termos como ‘selvagem’, ‘primitivo’ ou ‘arcaico’. Pela adoção da presença ou ausência da escrita como o único critério no estudo de nossas sociedades, devemos, primeiramente, invocar uma qualidade objetiva que não envolve postulados filosóficos ou morais. E, ao mesmo tempo, devemos depender de uma única característica capaz de explicar a real diferença que distingue certas sociedades da nossa.
A idéia de uma sociedade primitiva é uma ilusão. Por outro lado, a idéia de uma sociedade sem nenhuma forma de escrita nos torna conscientes do lado essencial do desenvolvimento da humanidade, ela explica a história e nos torna capazes de prever e talvez influenciar o futuro desses povos.
Matemática humana
A matemática humana escapará do desespero dos "grandes números" - os galhos aos quais as ciências sociais, perdidas num oceano de números, têm se abraçado sem esperança, diz Lévi-Strauss em artigo publicado no Boletim de Ciências Sociais, em 1954, que recomenda coordenar os métodos do pensamento. Trechos.
Quando consideramos a história da ciência, dá a impressão de que o homem, em um estágio inicial, percebeu qual seria o seu projeto de pesquisa e então, após ter se decidido por ele, levou centenas de anos para adquirir os meios para realizá-lo. Nos primeiros dias do pensamento científico, os filósofos gregos definiram os problemas da física por meio do átomo e hoje, 2 mil anos mais tarde e de um modo que eles provavelmente nunca imaginaram, estamos apenas começando a preencher o marco que eles delinearam há tanto tempo atrás. O mesmo pode ser dito da aplicação da matemática aos problemas da humanidade, uma vez que as especulações dos primeiros especialistas em geometria e aritmética se preocupavam com o homem muito mais do que com o mundo físico. Pitágoras tinha grande interesse no significado antropológico dos números e das figuras e Platão esteve significativamente ocupado com essas considerações.
Mais ou menos nos últimos dez anos, essas idéias, tão interessantes para o mundo antigo, tornaram-se novamente questões de interesse prático imediato. Pois, deve-se notar imediatamente que os avanços aos quais essa edição do Boletim Internacional das Ciências Sociais tenta dar uma modesta contribuição não estão, de maneira alguma, confinados às ciências sociais. Eles também devem ser vistos como parte das ciências do homem (se é que podemos fazer uma distinção entre os dois grupos de ciências). Eu iria mais além e diria que os mais sensacionais avanços talvez tenham sido vistos primeiramente nas ciências do homem . Possivelmente porque, à primeira vista, essas ciências parecem estar o mais distante de qualquer idéia de exatidão e mensuração. Mas também, provavelmente, porque o seu objeto de estudo essencialmente qualitativo tornou impossível que elas se colocassem a reboque da matemática tradicional, como têm feito as ciências sociais por muito tempo, e as forçou a se dirigirem, desde o início, a certas formas novas e ousadas do pensamento matemático. […]
As críticas às quais estão expostos os psicólogos experimentais do início deste século e os economistas e demógrafos tradicionais certamente não são que eles tenham dado muita atenção à matemática. Pelo contrário, pode-se criticá-los por não terem dado suficiente atenção a ela. Também por terem simplesmente tomado emprestado métodos quantitativos que, na própria matemática, são vistos como tradicionais e amplamente fora de moda. Não perceberam que uma nova escola de pensamento da matemática está emergindo e está, de fato, se expandindo enormemente no presente – uma escola de pensamento do que pode ser quase chamado de matemática qualitativa, mesmo que o termo possa parecer paradoxal, uma vez que tratamento rigoroso não mais significa recurso à mensuração. Essa nova matemática (que simplesmente apóia e expande sobre pensamentos especulativos anteriores) ensina-nos que o domínio da necessidade não é necessariamente o mesmo da quantidade.
Nem adição, nem multiplicação. O casamento pode ser expresso como equações
Essa distinção se tornou clara para o presente escritor em circunstâncias que se podem, talvez, relembrar nesse contexto. Quando, por volta de 1944, ele gradualmente se tornou convencido de que as regras do casamento e da descendência não eram fundamentalmente diferentes, como regras de comunicação, daquelas regras que prevalecem na lingüística e que, portanto, deveria ser possível lhes dar um tratamento rigoroso, os matemáticos consagrados a quem ele procurou o trataram com desdém. Disseram a ele que o casamento não poderia ser assimilado nem por meio da adição ou da multiplicação (muito menos pela subtração ou divisão) e que era conseqüentemente impossível expressá-lo em termos matemáticos.
Isso prosseguiu até o dia em que um dos líderes mais jovens dessa nova escola, tendo considerado o problema, explicou que, a fim de desenvolver uma teoria das regras do casamento, o matemático não teria a necessidade de reduzir o casamento a termos quantitativos; na realidade, ele não teria nem mesmo que saber o que era o casamento. Tudo o que ele pedia era, primeiramente, que fosse possível que os casamentos observados em uma sociedade particular fossem reduzidos a um número finito de categorias e, em seguida, que houvesse relações definidas entre as categorias (ex: deveria sempre haver a mesma relação entre a "categoria" do casamento dos pais e a "categoria" do casamento dos filhos). Daí em diante, todas as regras do casamento em uma dada sociedade podem ser expressos como equações e essas equações podem ser tratadas por meio de métodos racionais testados e confiáveis, enquanto a natureza intrínseca do fenômeno estudado – o casamento – não tem nada a ver com o problema e pode ser, de fato, completamente desconhecida.
Pequenos números, grandes mudanças
Um exemplo breve e simples como esse é uma boa ilustração da direção que a colaboração entre a matemática e as ciências do homem tomará agora. No passado, as grandes dificuldades surgiam da natureza qualitativa dos nossos estudos. Para serem tratados quantitativamente, era necessário manipulá-los ou simplificá-los excessivamente. Hoje, no entanto, há muitos ramos da matemática – teoria dos conjuntos, teoria dos grupos, topologia etc. – que estão preocupados com o estabelecimento de relações exatas entre classes de indivíduos distintos uns dos outros por meio de valores descontínuos. Essa mesma descontinuidade é uma das características essenciais dos conjuntos qualitativos na relação uns com os outros e foi a propriedade na qual a sua suposta "incomensurabilidade" e "inexpressabilidade" consistia. (continua)
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"A UNESCO prestaria um serviço de valor incalculável às ciências sociais se ela se concentrasse no desenvolvimento de um curso teórico em ciências sociais que estabelecesse o equilíbrio apropriado entre a tradicional contribuição dessas ciências e as novas ofertas revolucionárias da pesquisa e da cultura matemática."
As novas tendências matemáticas estão determinadas a quebrar com a falta de esperança dos "grandes números" – essa balsa de náufragos na qual agonizam as ciências sociais, perdidas em um oceano de números; seu objeto último já não é mais inserir movimentos progressivos e contínuos em gráficos monótonos. O campo com o qual se preocupa não é aquele das variações infinitesimais reveladas pela análise de um vasto acúmulo de dados. O panorama que ela apresenta é, na verdade, aquele resultante do estudo dos números pequenos e das grandes mudanças trazidas pela transição de um número ao outro. Se o exemplo permite, eu diria que estamos menos preocupados com as conseqüências teóricas de um aumento de 10 % na população de um país com 50 milhões de habitantes do que com as mudanças de estrutura que ocorrem quando um "lar de dois indivíduos" se torna um "lar de três indivíduos".
O estudo das possibilidades e limitações ligadas ao número de membros de grupos muito pequenos (os quais, desse ponto de vista, permanecem "muito pequenos" até mesmo se os próprios membros são grupos de milhões de indivíduos cada um) carrega, sem dúvida alguma, uma antiga tradição, uma vez que os primeiros filósofos gregos, os sábios da China e da Índia e os pensadores dos povos que viviam na África e na América antes dos tempos coloniais e antes de Cristóvão Colombo estavam muito interessados com a significância e com as propriedades peculiares dos números. A civilização indo-européia, por exemplo, tinha predileção pelo número "três", enquanto os africanos e os ameríndios tinham uma inclinação pelo número "quatro". Essas preferências obedecem a propriedades lógico-matemáticas exatas.[…]
Pense tanto matematicamente quanto sociologicamente
A grande maioria dos cientistas sociais tem, mesmo agora, uma formação clássica ou empírica. Poucos deles possuem treinamento matemático e, mesmo se têm, ele é freqüentemente muito elementar e muito conservador. As novas oportunidades oferecidas às ciências sociais por certos aspectos do pensamento matemático contemporâneo conseqüentemente demandará um esforço considerável de adaptação por parte dos cientistas sociais. Um bom exemplo do que pode ser feito nessa direção foi recentemente apresentado pelo Conselho de Ciências Sociais dos Estados Unidos, que, durante o verão de 1953, organizou um seminário matemático para cientistas sociais na Universidade de Dartmouth, em New Hampshire. Seis matemáticos deram um curso de oito semanas para 42 pessoas sobre os princípios da teoria dos conjuntos, a teoria dos grupos e o cálculo de probabilidades.
Espera-se que experimentos desse tipo sejam feitos com maior freqüência e alcance. […] Desse ponto de vista, a UNESCO tem uma missão muito importante a desempenhar. A necessidade de revisão das ementas é sentida em todos os países; mas os professores e administradores, que em sua maior parte tiveram uma formação tradicional, estão mal-equipados intelectualmente para planejar e realizar tal revisão. Parece particularmente desejável uma ação internacional pelos poucos especialistas de todo o mundo que são hoje capazes de pensar tão matematicamente quanto sociologicamente, em termos da nova situação. A UNESCO prestaria um serviço de valor incalculável às ciências sociais se ela se concentrasse no desenvolvimento de um curso teórico em ciências sociais que estabelecesse o equilíbrio apropriado entre a tradicional contribuição dessas ciências e as novas ofertas revolucionárias da pesquisa e da cultura matemática.
No entanto, seria errôneo supor que o problema consiste simplesmente em reorganizar a instrução a fim de permitir que os cientistas sociais possam se beneficiar dos últimos avanços no pensamento matemático. Não é simplesmente ou principalmente uma questão de se apropriar dos métodos e resultados do "mercado" matemático. As necessidades especiais das ciências sociais e as características diferenciadas do seu sujeito de estudo demandam um esforço especial de adaptação e invenção da parte dos matemáticos.
Coordenação dos métodos de pensamento
A colaboração de mão única não é suficiente. Por um lado, a matemática ajudará a fazer progressos nas ciências sociais, mas, por outro lado, essas ciências abrirão novas possibilidades para a matemática. Visto sob esse ângulo, uma nova forma de matemática necessita ser desenvolvida. Essa fertilização mútua tem sido, durante os últimos dois anos, o principal objeto do Seminário sobre o Uso da Matemática nas Ciências Humanas e Sociais, organizado pela Casa da UNESCO em 1953 e 1954, sob os auspícios do Conselho Internacional das Ciências Sociais. Nesse seminário participaram matemáticos, físicos e biólogos (pelo lado das ciências naturais) e economistas, sociólogos, historiadores, lingüistas, antropólogos e psicanalistas (do lado das ciências humanas e sociais). É ainda cedo para avaliar os resultados desse experimento ousado, mas qualquer que sejam as limitações que ele possa ter tido – o que é esperado nesse período de tentativa e erro –, todos nele envolvidos são unânimes em dizer que ganharam muito com o seminário.
Em sua vida interior, o homem sofre tanto de "comportamentos intelectuais impermeáveis" quanto ele sofre, em sua vida comunitária, com a desconfiança e hostilidade entre os diferentes grupos. Ao trabalharmos pela coordenação dos métodos de pensamento, que não podem ficar para sempre desconectados nas várias esferas do conhecimento, estamos ajudando na busca por uma harmonia interna a qual pode ser, em um nível diferente daquele com o qual a UNESCO se preocupa, mas não com menos importância, a condição real para a sabedoria e a paz.
Trechos da "Introdução" ao Boletim Internacional das Ciências Sociais Vol. VI, n° 4, 1954. (página anterior)
Quando consideramos a história da ciência, dá a impressão de que o homem, em um estágio inicial, percebeu qual seria o seu projeto de pesquisa e então, após ter se decidido por ele, levou centenas de anos para adquirir os meios para realizá-lo. Nos primeiros dias do pensamento científico, os filósofos gregos definiram os problemas da física por meio do átomo e hoje, 2 mil anos mais tarde e de um modo que eles provavelmente nunca imaginaram, estamos apenas começando a preencher o marco que eles delinearam há tanto tempo atrás. O mesmo pode ser dito da aplicação da matemática aos problemas da humanidade, uma vez que as especulações dos primeiros especialistas em geometria e aritmética se preocupavam com o homem muito mais do que com o mundo físico. Pitágoras tinha grande interesse no significado antropológico dos números e das figuras e Platão esteve significativamente ocupado com essas considerações.
Mais ou menos nos últimos dez anos, essas idéias, tão interessantes para o mundo antigo, tornaram-se novamente questões de interesse prático imediato. Pois, deve-se notar imediatamente que os avanços aos quais essa edição do Boletim Internacional das Ciências Sociais tenta dar uma modesta contribuição não estão, de maneira alguma, confinados às ciências sociais. Eles também devem ser vistos como parte das ciências do homem (se é que podemos fazer uma distinção entre os dois grupos de ciências). Eu iria mais além e diria que os mais sensacionais avanços talvez tenham sido vistos primeiramente nas ciências do homem . Possivelmente porque, à primeira vista, essas ciências parecem estar o mais distante de qualquer idéia de exatidão e mensuração. Mas também, provavelmente, porque o seu objeto de estudo essencialmente qualitativo tornou impossível que elas se colocassem a reboque da matemática tradicional, como têm feito as ciências sociais por muito tempo, e as forçou a se dirigirem, desde o início, a certas formas novas e ousadas do pensamento matemático. […]
As críticas às quais estão expostos os psicólogos experimentais do início deste século e os economistas e demógrafos tradicionais certamente não são que eles tenham dado muita atenção à matemática. Pelo contrário, pode-se criticá-los por não terem dado suficiente atenção a ela. Também por terem simplesmente tomado emprestado métodos quantitativos que, na própria matemática, são vistos como tradicionais e amplamente fora de moda. Não perceberam que uma nova escola de pensamento da matemática está emergindo e está, de fato, se expandindo enormemente no presente – uma escola de pensamento do que pode ser quase chamado de matemática qualitativa, mesmo que o termo possa parecer paradoxal, uma vez que tratamento rigoroso não mais significa recurso à mensuração. Essa nova matemática (que simplesmente apóia e expande sobre pensamentos especulativos anteriores) ensina-nos que o domínio da necessidade não é necessariamente o mesmo da quantidade.
Nem adição, nem multiplicação. O casamento pode ser expresso como equações
Essa distinção se tornou clara para o presente escritor em circunstâncias que se podem, talvez, relembrar nesse contexto. Quando, por volta de 1944, ele gradualmente se tornou convencido de que as regras do casamento e da descendência não eram fundamentalmente diferentes, como regras de comunicação, daquelas regras que prevalecem na lingüística e que, portanto, deveria ser possível lhes dar um tratamento rigoroso, os matemáticos consagrados a quem ele procurou o trataram com desdém. Disseram a ele que o casamento não poderia ser assimilado nem por meio da adição ou da multiplicação (muito menos pela subtração ou divisão) e que era conseqüentemente impossível expressá-lo em termos matemáticos.
Isso prosseguiu até o dia em que um dos líderes mais jovens dessa nova escola, tendo considerado o problema, explicou que, a fim de desenvolver uma teoria das regras do casamento, o matemático não teria a necessidade de reduzir o casamento a termos quantitativos; na realidade, ele não teria nem mesmo que saber o que era o casamento. Tudo o que ele pedia era, primeiramente, que fosse possível que os casamentos observados em uma sociedade particular fossem reduzidos a um número finito de categorias e, em seguida, que houvesse relações definidas entre as categorias (ex: deveria sempre haver a mesma relação entre a "categoria" do casamento dos pais e a "categoria" do casamento dos filhos). Daí em diante, todas as regras do casamento em uma dada sociedade podem ser expressos como equações e essas equações podem ser tratadas por meio de métodos racionais testados e confiáveis, enquanto a natureza intrínseca do fenômeno estudado – o casamento – não tem nada a ver com o problema e pode ser, de fato, completamente desconhecida.
Pequenos números, grandes mudanças
Um exemplo breve e simples como esse é uma boa ilustração da direção que a colaboração entre a matemática e as ciências do homem tomará agora. No passado, as grandes dificuldades surgiam da natureza qualitativa dos nossos estudos. Para serem tratados quantitativamente, era necessário manipulá-los ou simplificá-los excessivamente. Hoje, no entanto, há muitos ramos da matemática – teoria dos conjuntos, teoria dos grupos, topologia etc. – que estão preocupados com o estabelecimento de relações exatas entre classes de indivíduos distintos uns dos outros por meio de valores descontínuos. Essa mesma descontinuidade é uma das características essenciais dos conjuntos qualitativos na relação uns com os outros e foi a propriedade na qual a sua suposta "incomensurabilidade" e "inexpressabilidade" consistia. (continua)
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"A UNESCO prestaria um serviço de valor incalculável às ciências sociais se ela se concentrasse no desenvolvimento de um curso teórico em ciências sociais que estabelecesse o equilíbrio apropriado entre a tradicional contribuição dessas ciências e as novas ofertas revolucionárias da pesquisa e da cultura matemática."
As novas tendências matemáticas estão determinadas a quebrar com a falta de esperança dos "grandes números" – essa balsa de náufragos na qual agonizam as ciências sociais, perdidas em um oceano de números; seu objeto último já não é mais inserir movimentos progressivos e contínuos em gráficos monótonos. O campo com o qual se preocupa não é aquele das variações infinitesimais reveladas pela análise de um vasto acúmulo de dados. O panorama que ela apresenta é, na verdade, aquele resultante do estudo dos números pequenos e das grandes mudanças trazidas pela transição de um número ao outro. Se o exemplo permite, eu diria que estamos menos preocupados com as conseqüências teóricas de um aumento de 10 % na população de um país com 50 milhões de habitantes do que com as mudanças de estrutura que ocorrem quando um "lar de dois indivíduos" se torna um "lar de três indivíduos".
O estudo das possibilidades e limitações ligadas ao número de membros de grupos muito pequenos (os quais, desse ponto de vista, permanecem "muito pequenos" até mesmo se os próprios membros são grupos de milhões de indivíduos cada um) carrega, sem dúvida alguma, uma antiga tradição, uma vez que os primeiros filósofos gregos, os sábios da China e da Índia e os pensadores dos povos que viviam na África e na América antes dos tempos coloniais e antes de Cristóvão Colombo estavam muito interessados com a significância e com as propriedades peculiares dos números. A civilização indo-européia, por exemplo, tinha predileção pelo número "três", enquanto os africanos e os ameríndios tinham uma inclinação pelo número "quatro". Essas preferências obedecem a propriedades lógico-matemáticas exatas.[…]
Pense tanto matematicamente quanto sociologicamente
A grande maioria dos cientistas sociais tem, mesmo agora, uma formação clássica ou empírica. Poucos deles possuem treinamento matemático e, mesmo se têm, ele é freqüentemente muito elementar e muito conservador. As novas oportunidades oferecidas às ciências sociais por certos aspectos do pensamento matemático contemporâneo conseqüentemente demandará um esforço considerável de adaptação por parte dos cientistas sociais. Um bom exemplo do que pode ser feito nessa direção foi recentemente apresentado pelo Conselho de Ciências Sociais dos Estados Unidos, que, durante o verão de 1953, organizou um seminário matemático para cientistas sociais na Universidade de Dartmouth, em New Hampshire. Seis matemáticos deram um curso de oito semanas para 42 pessoas sobre os princípios da teoria dos conjuntos, a teoria dos grupos e o cálculo de probabilidades.
Espera-se que experimentos desse tipo sejam feitos com maior freqüência e alcance. […] Desse ponto de vista, a UNESCO tem uma missão muito importante a desempenhar. A necessidade de revisão das ementas é sentida em todos os países; mas os professores e administradores, que em sua maior parte tiveram uma formação tradicional, estão mal-equipados intelectualmente para planejar e realizar tal revisão. Parece particularmente desejável uma ação internacional pelos poucos especialistas de todo o mundo que são hoje capazes de pensar tão matematicamente quanto sociologicamente, em termos da nova situação. A UNESCO prestaria um serviço de valor incalculável às ciências sociais se ela se concentrasse no desenvolvimento de um curso teórico em ciências sociais que estabelecesse o equilíbrio apropriado entre a tradicional contribuição dessas ciências e as novas ofertas revolucionárias da pesquisa e da cultura matemática.
No entanto, seria errôneo supor que o problema consiste simplesmente em reorganizar a instrução a fim de permitir que os cientistas sociais possam se beneficiar dos últimos avanços no pensamento matemático. Não é simplesmente ou principalmente uma questão de se apropriar dos métodos e resultados do "mercado" matemático. As necessidades especiais das ciências sociais e as características diferenciadas do seu sujeito de estudo demandam um esforço especial de adaptação e invenção da parte dos matemáticos.
Coordenação dos métodos de pensamento
A colaboração de mão única não é suficiente. Por um lado, a matemática ajudará a fazer progressos nas ciências sociais, mas, por outro lado, essas ciências abrirão novas possibilidades para a matemática. Visto sob esse ângulo, uma nova forma de matemática necessita ser desenvolvida. Essa fertilização mútua tem sido, durante os últimos dois anos, o principal objeto do Seminário sobre o Uso da Matemática nas Ciências Humanas e Sociais, organizado pela Casa da UNESCO em 1953 e 1954, sob os auspícios do Conselho Internacional das Ciências Sociais. Nesse seminário participaram matemáticos, físicos e biólogos (pelo lado das ciências naturais) e economistas, sociólogos, historiadores, lingüistas, antropólogos e psicanalistas (do lado das ciências humanas e sociais). É ainda cedo para avaliar os resultados desse experimento ousado, mas qualquer que sejam as limitações que ele possa ter tido – o que é esperado nesse período de tentativa e erro –, todos nele envolvidos são unânimes em dizer que ganharam muito com o seminário.
Em sua vida interior, o homem sofre tanto de "comportamentos intelectuais impermeáveis" quanto ele sofre, em sua vida comunitária, com a desconfiança e hostilidade entre os diferentes grupos. Ao trabalharmos pela coordenação dos métodos de pensamento, que não podem ficar para sempre desconectados nas várias esferas do conhecimento, estamos ajudando na busca por uma harmonia interna a qual pode ser, em um nível diferente daquele com o qual a UNESCO se preocupa, mas não com menos importância, a condição real para a sabedoria e a paz.
Trechos da "Introdução" ao Boletim Internacional das Ciências Sociais Vol. VI, n° 4, 1954. (página anterior)
Ao contrário do que se poderia acreditar, a matematização das ciências sociais não é totalmente acompanhada da desumanização, como Claude Lévi-Strauss declarou neste documento de arquivo, datado de 8 de agosto de 1956. A civilização tecnológica não é uma civilização à parte. A humanização é baseada em todos os humanos e todas as ciências.
O problema levantado aqui não implica, de maneira alguma, no reconhecimento de que as ciências sociais sejam um campo próprio ou que sejam definidas por características especiais. As ciências sociais merecem um lugar separado, próximo às humanidades por um lado e às ciências naturais por outro? Elas oferecem qualquer originalidade real, à parte de – como se tem dito – não serem mais sociais que outras ciências e muito menos científicas?
Mesmo nos Estados Unidos, onde a divisão tripartite entre ciências humanas, ciências sociais e ciências naturais pareceu ter sido solidamente estabelecida há meio século, novas categorias estão aparecendo. Assim, as ciências do comportamento reúnem as três ordens na medida em que elas diretamente interessem aos seres humanos. E ainda assim, a melhor tradução de ciências do comportamento para o francês é: "ciências da conduta humana", o que significa que há um retorno à distinção dual, que tem sido tradicional na Europa desde o Renascimento: por um lado, as ciências naturais, que lidam com o mundo objetivo; por outro lado, as humanidades, que lidam com os seres humanos e o mundo em relação a eles.
Esses problemas metodológicos têm uma importância imediata para o nosso debate: se as ciências sociais devem ser consideradas como ciências separadas, sua contribuição à humanização da civilização não é óbvia, ela precisa ser demonstrada. Se, por um lado, as ciências sociais não são diferentes da pesquisa tradicionalmente realizada em nome das ciências humanas, se, portanto, elas se situam dentro do campo das humanidades, é auto-evidente que qualquer coisa sobre seres humanos é "humanizante" simplesmente porque é "humano". De acordo com uma ou outra concepção, sua contribuição ao progresso também parecerá diferente. Na primeira hipótese, essa contribuição será concebida usando o modelo de engenharia: estudar um problema, determinar as dificuldades e construir uma solução usando as técnicas apropriadas. A ordem social é considerada como um dado objetivo, que apenas precisa ser melhorado. Ao contrário, no segundo caso a ênfase é colocada sobre a tomada de consciência: simplesmente o fato de se julgar uma ordem como ruim ou imperfeita a humaniza, como se a emergência de uma crítica já significar mudança.
O que é, portanto, a característica comum nas pesquisas que são classificadas sob o nome de ciências sociais? Todas elas estão ligadas à sociedade e ao desenvolvimento do conhecimento sobre a sociedade; mas não pelas mesmas razões. Às vezes, são problemas cujas características são tão únicas, que se escolhe isolar um dos outros, a fim de resolvê-los melhor: tal como o direito, a ciência política e as ciências econômicas. Outras vezes, procura-se estudar fenômenos comuns a todas as formas de vida social, mas alcançando-os em um nível mais profundo: essa é a ambição compartilhada pela sociologia e a psicologia social. Finalmente, quer-se à vezes adicionar ao conhecimento tipos de atividades que são muito remotas, no tempo ou no espaço, e essa pesquisa pertence ao campo da história ou da etnologia. Singularidade, profundidade, distância: três formas de resistência dos fatos sociais que as disciplinas correspondentes tentam superar de maneira paralela, mas utilizando meios diferentes.
As três formas não têm a mesma base. É fato que vários séculos nos separam da Idade Média e vários milhares de quilômetros nos separam das sociedades melanésias. Ao contrário, é uma convenção que os sistemas políticos ou econômicos estejam suficientemente isolados do resto para justificar disciplinas separadas. Tem sido legitimamente possível defender que essa divisão dos fenômenos sociais leva à desumanização, de várias maneiras.
Ciências sociais: uma manipulação gratuita de símbolos?
Pode-se primeiramente perguntar se todos os fenômenos sociais se beneficiam do mesmo grau de realidade e se alguns deles (aqueles abordados aqui) não são uma ilusão, uma espécie de fantasmagórico coletivo. O problema é então saber se certos níveis podem ser isolados ou se não dependem de outros níveis com os quais mantêm relações dialéticas. Finalmente, a ciência sempre postula a coerência de seu objeto. Se as ciências sociais em questão são definidas por referência a um pseudo-objeto, elas não consistem meramente em uma espécie de jogo, uma gratuita manipulação de símbolos? Estaríamos então na área da mistificação, o que é exatamente o contrário da humanização.
E, no entanto, a mistificação também é uma operação humana. Qualquer que seja o grau de realidade que reconhecemos nos sistemas legais e políticos e qualquer que seja a função objetiva que eles desempenham na vida das sociedades, esses sistemas são produtos da mente. Por meio do estudo de suas estruturas e seus mecanismos de funcionamento e por meio do estabelecimento de sua tipologia, aprendemos pelo menos alguma coisa. Por exemplo, como o espírito humano trabalha para dar uma forma racional (seja ela apenas na aparência) àquilo que não a possui. Se as ciências correspondentes são mesmo ciências (quer dizer, se elas são realizadas com verdadeira objetividade), o conhecimento que elas reúnem é humanizante, uma vez que eles permitem aos seres humanos se tornarem conscientes do funcionamento real da sociedade.
"Sempre abaixo e além das ciências sociais, a etnologia não pode ser nem dissociada das ciências naturais nem das ciências humanas. Sua originalidade consiste na união dos métodos de ambas, a serviço de um conhecimento generalizado dos humanos, ou seja, a antropologia."
O caso da ciência econômica é especialmente significativo, uma vez que, em sua forma liberal, ela tem sido acusada de manipular abstrações. Mas, nas ciências sociais, como em qualquer outra ciência, a abstração pode ser entendida de duas maneiras. Freqüentemente, ela é usada como pretexto para uma divisão arbitrária da realidade concreta. A ciência econômica já foi vítima desse erro no passado. Por outro lado, as recentes tentativas de aplicar a matemática moderna (chamada de "qualitativa") à teoria econômica têm conduzido a um resultado notório: quanto mais a teoria se tornava matemática e, portanto, – aparentemente – abstrata, mais ela envolvia objetos históricos e concretos, como a substância do seu formalismo. Nenhuma forma de pensamento econômico burguês está mais próxima das concepções marxistas do que o tratamento altamente matemático apresentado por von Neumann e Morgenstern, em 1944, na Teoria dos Jogos e o Comportamento Econômico. Para eles, a teoria é aplicada à sociedade dividida entre grupos rivais e entre os quais existem antagonismos e coalizões. Contrário ao que se imaginaria, a matematização das ciências sociais não é acompanhada por uma desumanização. Ela corresponde ao fato de que, dentro de cada disciplina, a teoria tende a se tornar mais e mais geral. Por meio da expressão matemática, a ciência econômica, a sociologia e a psicologia descobrem uma linguagem comum. É possível que se veja rapidamente que essa linguagem comum é possível, pois os objetos aos quais ela é aplicada são, na realidade, idênticos.
Essa mesma conexão "humanista" ocorre na psicologia e na sociologia. Portanto, ao se estudarem os mecanismos da vida subconsciente, os psicanalistas fazem uso de um simbolismo que é, na realidade, o mesmo daquele usado por psicólogos sociais e lingüistas, na medida em que linguagem e estereótipos sociais também são baseados nas atividades subconscientes da mente.
Vale a pena focar nessa convergência das ciências sócias por um momento. Primeiramente, nossas ciências se tornaram isoladas a fim de se tornarem mais profundas. Mas, a certa profundidade, ela conseguiram se unir umas às outras. Portanto, pouco a pouco, em uma área objetiva, tomou forma a antiga hipótese filosófica da união do espírito humano ou, mais exatamente, da existência universal da natureza humana. Não importa de que ângulo o abordamos: seja ele individual ou coletivo, em suas expressões que são aparentemente as menos controláveis ou percebido por meio de instituições tradicionais, vemos que o espírito obedece as mesmas leis, sempre e em qualquer lugar.
A terceira onda
A etnologia e a história nos colocam na presença de uma evolução do mesmo tipo. Acreditou-se por muito tempo que a história objetivava apenas recriar o passado com exatidão. Na realidade, a história, assim como a etnologia, estuda sociedades que são diferentes daquelas nas quais vivemos. Ambas buscam alargar a experiência específica para as dimensões de uma experiência que é geral, que portanto se torna mais acessível aos indivíduos de outro país ou de um outro tempo.
Como a história, a etnologia é parte de uma tradição humanista. Mas seu papel é criar, pela primeira vez, o que pode ser chamado de humanismo democrático. Após o humanismo aristocrático do Renascimento, fundado apenas sobre a comparação das sociedades grega e romana (porque nenhuma outra era conhecida) e do humanismo exótico do século XIX, que adicionou as civilizações do Oriente e do Extremo Oriente (mas apenas por meio de documentos escritos e de monumentos figurativos), a etnologia aparece como a terceira onda – sem dúvida alguma – pois, de todas as ciências sociais, ela é a mais característica do mundo finito no qual se tornou nosso planeta no século XX. A etnologia faz um apelo a todas as sociedades humanas a fim de desenvolver um conhecimento global de todos os humanos. E, melhor ainda, as características diferenciadas dessas sociedades "residuais" têm levado a etnologia a criar novos tipos de conhecimento, os quais, como percebemos gradualmente, podem ser proveitosamente aplicados ao estudo de todas as civilizações, inclusive a nossa. Ela opera simultaneamente na superfície e com profundidade.
A civilização tecnológica não é uma civilização à parte
Na ausência de textos escritos e de monumentos figurativos, essas formas de conhecimento são tanto mais externas e mais internas (também se pode dizer mais grossas e mais finas) que aquelas formas de conhecimento das outras ciências sócias: por um lado o estudo desde o exterior (a antropologia física, a pré-história, a tecnologia) e, por outro lado, o estudo desde o interior (identificação da etnologia com o grupo cuja existência ele compartilha). Sempre abaixo e além das ciências sociais, a etnologia não pode ser nem dissociada das ciências naturais nem das ciências humanas. Sua originalidade consiste na união dos métodos de ambas, a serviço de um conhecimento generalizado dos humanos, ou seja, a antropologia.
Sob o risco de contradizer o título dessa aula, não é se declarando social e se isolando do resto que nossas disciplinas serão capazes de humanizar a civilização, e sim tentando ser mais científicas. A civilização tecnológica não é uma civilização separada que requer a invenção de técnicas especiais para a sua melhoria. A humanização da vida social não é tarefa de uma profissão. Ela depende de todos os indivíduos e de todas as ciências.
Humanizar a civilização tecnológica é, primeiramente, colocá-la em perspectiva na história global da humanidade e então analisar e entender as forças geradoras de seu advento e seu funcionamento. Em todos os casos, conseqüentemente: conhecer. A contribuição de nossas ciências será avaliada não por meio de métodos dúbios que estão sujeitos aos caprichos do dia, mas de acordo com as novas perspectivas que essas mesmas ciências serão capazes de abrir à humanidade, de modo que a mesma possa entender melhor sua própria natureza e sua história e, portanto, também julgá-la.
O problema levantado aqui não implica, de maneira alguma, no reconhecimento de que as ciências sociais sejam um campo próprio ou que sejam definidas por características especiais. As ciências sociais merecem um lugar separado, próximo às humanidades por um lado e às ciências naturais por outro? Elas oferecem qualquer originalidade real, à parte de – como se tem dito – não serem mais sociais que outras ciências e muito menos científicas?
Mesmo nos Estados Unidos, onde a divisão tripartite entre ciências humanas, ciências sociais e ciências naturais pareceu ter sido solidamente estabelecida há meio século, novas categorias estão aparecendo. Assim, as ciências do comportamento reúnem as três ordens na medida em que elas diretamente interessem aos seres humanos. E ainda assim, a melhor tradução de ciências do comportamento para o francês é: "ciências da conduta humana", o que significa que há um retorno à distinção dual, que tem sido tradicional na Europa desde o Renascimento: por um lado, as ciências naturais, que lidam com o mundo objetivo; por outro lado, as humanidades, que lidam com os seres humanos e o mundo em relação a eles.
Esses problemas metodológicos têm uma importância imediata para o nosso debate: se as ciências sociais devem ser consideradas como ciências separadas, sua contribuição à humanização da civilização não é óbvia, ela precisa ser demonstrada. Se, por um lado, as ciências sociais não são diferentes da pesquisa tradicionalmente realizada em nome das ciências humanas, se, portanto, elas se situam dentro do campo das humanidades, é auto-evidente que qualquer coisa sobre seres humanos é "humanizante" simplesmente porque é "humano". De acordo com uma ou outra concepção, sua contribuição ao progresso também parecerá diferente. Na primeira hipótese, essa contribuição será concebida usando o modelo de engenharia: estudar um problema, determinar as dificuldades e construir uma solução usando as técnicas apropriadas. A ordem social é considerada como um dado objetivo, que apenas precisa ser melhorado. Ao contrário, no segundo caso a ênfase é colocada sobre a tomada de consciência: simplesmente o fato de se julgar uma ordem como ruim ou imperfeita a humaniza, como se a emergência de uma crítica já significar mudança.
O que é, portanto, a característica comum nas pesquisas que são classificadas sob o nome de ciências sociais? Todas elas estão ligadas à sociedade e ao desenvolvimento do conhecimento sobre a sociedade; mas não pelas mesmas razões. Às vezes, são problemas cujas características são tão únicas, que se escolhe isolar um dos outros, a fim de resolvê-los melhor: tal como o direito, a ciência política e as ciências econômicas. Outras vezes, procura-se estudar fenômenos comuns a todas as formas de vida social, mas alcançando-os em um nível mais profundo: essa é a ambição compartilhada pela sociologia e a psicologia social. Finalmente, quer-se à vezes adicionar ao conhecimento tipos de atividades que são muito remotas, no tempo ou no espaço, e essa pesquisa pertence ao campo da história ou da etnologia. Singularidade, profundidade, distância: três formas de resistência dos fatos sociais que as disciplinas correspondentes tentam superar de maneira paralela, mas utilizando meios diferentes.
As três formas não têm a mesma base. É fato que vários séculos nos separam da Idade Média e vários milhares de quilômetros nos separam das sociedades melanésias. Ao contrário, é uma convenção que os sistemas políticos ou econômicos estejam suficientemente isolados do resto para justificar disciplinas separadas. Tem sido legitimamente possível defender que essa divisão dos fenômenos sociais leva à desumanização, de várias maneiras.
Ciências sociais: uma manipulação gratuita de símbolos?
Pode-se primeiramente perguntar se todos os fenômenos sociais se beneficiam do mesmo grau de realidade e se alguns deles (aqueles abordados aqui) não são uma ilusão, uma espécie de fantasmagórico coletivo. O problema é então saber se certos níveis podem ser isolados ou se não dependem de outros níveis com os quais mantêm relações dialéticas. Finalmente, a ciência sempre postula a coerência de seu objeto. Se as ciências sociais em questão são definidas por referência a um pseudo-objeto, elas não consistem meramente em uma espécie de jogo, uma gratuita manipulação de símbolos? Estaríamos então na área da mistificação, o que é exatamente o contrário da humanização.
E, no entanto, a mistificação também é uma operação humana. Qualquer que seja o grau de realidade que reconhecemos nos sistemas legais e políticos e qualquer que seja a função objetiva que eles desempenham na vida das sociedades, esses sistemas são produtos da mente. Por meio do estudo de suas estruturas e seus mecanismos de funcionamento e por meio do estabelecimento de sua tipologia, aprendemos pelo menos alguma coisa. Por exemplo, como o espírito humano trabalha para dar uma forma racional (seja ela apenas na aparência) àquilo que não a possui. Se as ciências correspondentes são mesmo ciências (quer dizer, se elas são realizadas com verdadeira objetividade), o conhecimento que elas reúnem é humanizante, uma vez que eles permitem aos seres humanos se tornarem conscientes do funcionamento real da sociedade.
"Sempre abaixo e além das ciências sociais, a etnologia não pode ser nem dissociada das ciências naturais nem das ciências humanas. Sua originalidade consiste na união dos métodos de ambas, a serviço de um conhecimento generalizado dos humanos, ou seja, a antropologia."
O caso da ciência econômica é especialmente significativo, uma vez que, em sua forma liberal, ela tem sido acusada de manipular abstrações. Mas, nas ciências sociais, como em qualquer outra ciência, a abstração pode ser entendida de duas maneiras. Freqüentemente, ela é usada como pretexto para uma divisão arbitrária da realidade concreta. A ciência econômica já foi vítima desse erro no passado. Por outro lado, as recentes tentativas de aplicar a matemática moderna (chamada de "qualitativa") à teoria econômica têm conduzido a um resultado notório: quanto mais a teoria se tornava matemática e, portanto, – aparentemente – abstrata, mais ela envolvia objetos históricos e concretos, como a substância do seu formalismo. Nenhuma forma de pensamento econômico burguês está mais próxima das concepções marxistas do que o tratamento altamente matemático apresentado por von Neumann e Morgenstern, em 1944, na Teoria dos Jogos e o Comportamento Econômico. Para eles, a teoria é aplicada à sociedade dividida entre grupos rivais e entre os quais existem antagonismos e coalizões. Contrário ao que se imaginaria, a matematização das ciências sociais não é acompanhada por uma desumanização. Ela corresponde ao fato de que, dentro de cada disciplina, a teoria tende a se tornar mais e mais geral. Por meio da expressão matemática, a ciência econômica, a sociologia e a psicologia descobrem uma linguagem comum. É possível que se veja rapidamente que essa linguagem comum é possível, pois os objetos aos quais ela é aplicada são, na realidade, idênticos.
Essa mesma conexão "humanista" ocorre na psicologia e na sociologia. Portanto, ao se estudarem os mecanismos da vida subconsciente, os psicanalistas fazem uso de um simbolismo que é, na realidade, o mesmo daquele usado por psicólogos sociais e lingüistas, na medida em que linguagem e estereótipos sociais também são baseados nas atividades subconscientes da mente.
Vale a pena focar nessa convergência das ciências sócias por um momento. Primeiramente, nossas ciências se tornaram isoladas a fim de se tornarem mais profundas. Mas, a certa profundidade, ela conseguiram se unir umas às outras. Portanto, pouco a pouco, em uma área objetiva, tomou forma a antiga hipótese filosófica da união do espírito humano ou, mais exatamente, da existência universal da natureza humana. Não importa de que ângulo o abordamos: seja ele individual ou coletivo, em suas expressões que são aparentemente as menos controláveis ou percebido por meio de instituições tradicionais, vemos que o espírito obedece as mesmas leis, sempre e em qualquer lugar.
A terceira onda
A etnologia e a história nos colocam na presença de uma evolução do mesmo tipo. Acreditou-se por muito tempo que a história objetivava apenas recriar o passado com exatidão. Na realidade, a história, assim como a etnologia, estuda sociedades que são diferentes daquelas nas quais vivemos. Ambas buscam alargar a experiência específica para as dimensões de uma experiência que é geral, que portanto se torna mais acessível aos indivíduos de outro país ou de um outro tempo.
Como a história, a etnologia é parte de uma tradição humanista. Mas seu papel é criar, pela primeira vez, o que pode ser chamado de humanismo democrático. Após o humanismo aristocrático do Renascimento, fundado apenas sobre a comparação das sociedades grega e romana (porque nenhuma outra era conhecida) e do humanismo exótico do século XIX, que adicionou as civilizações do Oriente e do Extremo Oriente (mas apenas por meio de documentos escritos e de monumentos figurativos), a etnologia aparece como a terceira onda – sem dúvida alguma – pois, de todas as ciências sociais, ela é a mais característica do mundo finito no qual se tornou nosso planeta no século XX. A etnologia faz um apelo a todas as sociedades humanas a fim de desenvolver um conhecimento global de todos os humanos. E, melhor ainda, as características diferenciadas dessas sociedades "residuais" têm levado a etnologia a criar novos tipos de conhecimento, os quais, como percebemos gradualmente, podem ser proveitosamente aplicados ao estudo de todas as civilizações, inclusive a nossa. Ela opera simultaneamente na superfície e com profundidade.
A civilização tecnológica não é uma civilização à parte
Na ausência de textos escritos e de monumentos figurativos, essas formas de conhecimento são tanto mais externas e mais internas (também se pode dizer mais grossas e mais finas) que aquelas formas de conhecimento das outras ciências sócias: por um lado o estudo desde o exterior (a antropologia física, a pré-história, a tecnologia) e, por outro lado, o estudo desde o interior (identificação da etnologia com o grupo cuja existência ele compartilha). Sempre abaixo e além das ciências sociais, a etnologia não pode ser nem dissociada das ciências naturais nem das ciências humanas. Sua originalidade consiste na união dos métodos de ambas, a serviço de um conhecimento generalizado dos humanos, ou seja, a antropologia.
Sob o risco de contradizer o título dessa aula, não é se declarando social e se isolando do resto que nossas disciplinas serão capazes de humanizar a civilização, e sim tentando ser mais científicas. A civilização tecnológica não é uma civilização separada que requer a invenção de técnicas especiais para a sua melhoria. A humanização da vida social não é tarefa de uma profissão. Ela depende de todos os indivíduos e de todas as ciências.
Humanizar a civilização tecnológica é, primeiramente, colocá-la em perspectiva na história global da humanidade e então analisar e entender as forças geradoras de seu advento e seu funcionamento. Em todos os casos, conseqüentemente: conhecer. A contribuição de nossas ciências será avaliada não por meio de métodos dúbios que estão sujeitos aos caprichos do dia, mas de acordo com as novas perspectivas que essas mesmas ciências serão capazes de abrir à humanidade, de modo que a mesma possa entender melhor sua própria natureza e sua história e, portanto, também julgá-la.
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