Artigo de Bruno Cava
11 Novembro 2019
"Todas as ideias estão no seu lugar. Os liberais no
governo estão no seu lugar. Os anarcoliberais estadofóbicos de Chicago também
estavam durante a ditadura Pinochet. Ou os social-democratas durante o auge do
Petrolão. Ou a esquerda socialista quando da remoção de favelas no Rio de
Janeiro. Ou o socialismo do século 21. E por aí vai. Todas as ideias estão no
seu lugar", escreve Bruno Cava, pesquisador associado à rede Universidade
Nômade (uninomade.net) e professor de Filosofia, em artigo publicado por Uninomade,
09-11-2019.
Segundo ele, "todas as ideias estão no seu lugar. O que
muda é a relação entre as ideias e o lugar, o complexo entrelaçar que engloba
múltiplas dimensões e camadas. Sem explicar isso, sem explicar no que o atual
governo participa de uma ampla modernização em suas dimensões global e local,
ficaremos apenas na superfície dos eventos, no anedótico casamento da cobra
d´água com o jacaré".
Eis o artigo.
Causa consternação a presença de ideias liberais num governo
de direita? Seria estranho se não estivessem presentes. O liberalismo político
e econômico foi uma arquitrave de todos os governos da redemocratização.
Liberais e neoliberais estiveram nos três governos do PT, durante a era FHC, no
período Collor. Na realidade, a história do liberalismo brasileiro é vasta,
profunda, complexa, admite dezenas de correntes. Participou com relevância
central de praticamente todos os episódios marcantes. Estavam organizados
politicamente na Independência, na Abolição, na primeira República, na
Revolução de 1930, na Nova República. Não deveria despertar nenhuma surpresa
que, mais uma vez, seja um protagonista da conjuntura nacional.
É que as ideias liberais costumam acompanhar, lado a lado,
os projetos de modernização. E não se iludam: a força do governo atual está
calcada num programa modernizador – econômico, político e social – que boa
parte da população entende como imperativo. Não tem nada de regressivo, se por
tal qualificação entendermos um contraste ao que seriam, de FHC a Dilma,
governos progressistas. O nó do problema é o sentido que se confere à
modernização.
Na literatura, existem gêneros propriamente nacionais que
conseguem repercutir o gênio de um determinado país. São livros que, agrupados,
enchem estantes inteiras das livrarias e bibliotecas de uma sociedade. Na
Argentina, seria a estante peronista; na Itália, a operaísta. Aqui, no Brasil,
dispomos do paradigma da Formação Nacional. Uma literatura pátria que investiga
a gênese social, política e econômica do Brasil na sua longa duração, por meio
de uma síntese de diferentes áreas do conhecimento: filosofia, sociologia,
economia política, história, crítica literária e antropologia.
Um dos maiores esforços dessa literatura formativa foi
reabrir o dossiê do liberalismo brasileiro. Fez isso, exatamente, porque o caso
suscita uma surpresa inicial. No período do Império, as ideias liberais eram
predominantes e a maior parte da elite política professava o liberalismo
clássico. E não era simplesmente um liberalismo de salão ou academia. A
Constituição de 1824, outorgada por Pedro I, era das mais avançadas do mundo.
Exibia um rol de direitos liberais de dar inveja a qualquer nação civilizada e
chegou a ser chamada, à época, de “revolução libertadora”. Até hoje
monarquistas e admiradores da monarquia se orgulham do arcabouço moderno da que
é a Constituição brasileira mais longeva, 65 anos de vigência até a proclamação
republicana. Enquanto isso, no restante da América Latina, se alternavam
períodos de estabilidade republicana e ditadura caudilhesca.
A surpresa está no fato que um país onde o liberalismo era
forte e efetivo se baseava na escravidão e no tráfico negreiro. É verdade que,
na segunda metade do século, ideias liberais foram um reforço à luta de
escravos e abolicionistas, o que demonstra a complexidade do liberalismo.
Porém, o dado concreto é que, em sua maioria, a elite liberal brasileira era
escravocrata. Não só os políticos eram proprietários de outros seres humanos,
como defendiam teoricamente a escravidão. Mas como conciliar liberalismo e escravidão?
O argumento principal era o das “ideias fora do lugar”, que é um alicerce do
pensamento conservador. É que as ideias de liberdade e igualdade que valiam na
Europa deviam ser aclimatadas em solo nacional, antes de aqui ganharem curso.
Para muitos liberais tupiniquins, seria primeiro preciso nacionalizar essas
ideias tão avançadas, sob pena de provocar uma desorganização geral do país e
prejudicar, inclusive, os próprios escravos.
Os defensores nacionalistas da escravidão eram parecidos com
esses críticos contemporâneos do ambientalismo pela via do social: ideias
ecológicas como as de Greta Thunberg até teriam a sua pertinência numa
sociedade avançada como da Suécia, mas cá no Brasil, importá-las seria
inviabilizar a mais urgente agenda contra a pobreza…
Neste ponto, uma maneira de resolver a discussão sem nem
mesmo começá-la seria arrematar que o liberalismo é meramente um mascaramento
do real. As ideias liberais não passariam de um véu acobertador das práticas
reais. Na Europa, confere um verniz civilizado à dominação por meio da
exploração do trabalho assalariado e, no Brasil, além daquela, a escravidão.
Bastaria, portanto, com um gesto desmascarador, denunciar a função do
liberalismo como cortinado ideológico para a dominação real.
Por que isso seria fulminar o problema sem entrar nele?
Porque não explica o principal: por qual razão é que as classes dominantes
precisariam da mediação das ideias liberais para exercer a dominação em
primeiro lugar? Por que não o fazem diretamente? No caso europeu, teóricos
críticos ainda no século 19 expuseram como as ideias liberais eram um dado
estrutural do funcionamento da economia moderna. As revoluções inglesa,
francesa e americana puseram fim ao Antigo Regime, quando a sociedade passou a
ser organizada por meio do trabalho livre, isto é, assalariado. A cada ser
humano era reconhecida uma igualdade e liberdade essenciais, de maneira que
poderiam contratar voluntariamente a sua atividade no mercado de trabalho. Essa
é uma base das ideias liberais: cada um dotado de autonomia da vontade para
desenvolver livremente as suas potencialidades, na medida em que, fazendo-o,
desenvolve a sociedade como um todo, levando o conjunto ao máximo rendimento.
Uma linha fraca de contestação seria afirmar que essas
ideias são máscaras. Que a igualdade e a liberdade seriam prédicas metafísicas
de um liberalismo formal, resumindo-se à pregação de formas ocas a fim de
camuflar a dominação e a desigualdade reais. É o velho atalho do portrasismo,
haveria algo por trás das categorias liberais, um complô para enganar as massas
e vender gato por lebre. Mas esta postura não passa de uma miragem
tranquilizadora. Pois instaura o benefício do locutor: aquele que denuncia
essas ideias, simetricamente, se coloca num púlpito de superioridade epistêmica,
o qual transpira de moralidade. As percepções diferentes às suas encontrariam
explicação em desvios da reta razão, oriundos de ignorância, cegueira (“não
querem ver!”), ou má fé e interesse.
Um teórico da Revolução Industrial, Karl Marx, escreveu que
o trabalho livre não era simplesmente uma forma camaleônica para prolongar o
trabalho escravo ou servil. Havia uma diferença de natureza entre o escravo e o
assalariado. Marx concordava com os críticos dos liberais que, no cenário
geral, a liberdade para trabalhar só encontrava a sua condição sistêmica para
existir na medida em que havia uma situação induzida de penúria que constrangia
a pessoa a trabalhar. Noutras palavras, a situação social coagia as pessoas a
buscar os meios de sua subsistência e, por essa lei da sobrevivência, tinha que
trabalhar, apresentando-se ao mercado do trabalho em posicionamento
desvantajoso, de frágil negociação. A escolha do trabalho, portanto, se dava em
estado de necessidade, limitando não só as opções de trabalho como também os
termos do contrato.
Não é diferente, na sua lógica, do que acontece hoje.
Sabemos que temos algumas opções de trabalho, mais ou menos restritivas, mais
ou menos negociáveis, mas ninguém se ilude. Em última instância, trabalhamos
porque as contas teimam em chegar no fim do mês. A inovação de Marx não é
demarcar esse fato notório, para isso não precisaríamos de filosofia. O que
Marx diz é que o modo como o trabalho *aparece* como livre é fundamental.
Embora saibamos que, no fundo, há um grau de exploração no trabalho que fazemos
(mesmo que se dê indiretamente, digamos, pelo imposto de renda), nos
comportamos mesmo assim como trabalhadores livres: aceitamos o salário e
tocamos a vida. Ou seja, para Marx, na esteira de La Boètie, o trabalho
assalariado é um tipo social de servidão voluntária, com a diferença de ser
mediada pelo dinheiro. O capitalismo, para Marx, se define justamente pelo
salário. O capitalismo é a sistematização da conversão da liberdade em bem
vendável, comensurado pelo dinheiro.
O trabalho livre, que é uma ideia do liberalismo, é uma
mediação ancorada na realidade social. Tomada isoladamente, se poderia dizer
que é uma aparência, pois na base há a dominação do homem pelo homem. Porém, na
medida em que essa mediação faz funcionar o sistema, tomada em seu dinamismo
social, ela é real. Não é uma ideologia fátua, pelo contrário, as ideias
liberais são a força motriz do sistema econômico, o que produz a riqueza
social, o que define as hierarquias de poder entre as nações. O liberalismo não
é uma pasteurização da exploração do trabalho, mas um eixo de transmissão, para
impelir o movimento do conjunto da sociedade.
Qual é a inovação de Marx? É que o sujeito passa a estar
fraturado entre o ser e o aparecer. Coexiste em seu âmago uma ambivalência
constitutiva, uma reserva existencial em relação à atividade socialmente útil
de contribuir para o movimento de conjunto. Essa fissura tanto pode ser
alargada por meio da organização dos trabalhadores, no que Marx apostou como
superação da dualidade, quanto numa infinidade de outros usos. Por exemplo,
estudar filosofia ou escrever críticas literárias, como faziam os operários
fabris do oitocentos, de que o filósofo Jacques Rancière nos conta em A noite
dos proletários (1988).
E o que dizer do liberalismo transplantado aos trópicos,
onde havia escravidão? A literatura de formação nacional comparece nessa
discussão para explicar como aqui era o contrário do que acontecia na Europa
que se industrializava. Na economia da Monarquia Brasileira de Pedro I e II, o
que propiciava a modernização do país eram os lucros da exportação de gêneros
primários no regime escravista do latifúndio monocultor, assim como o grosso
capital implicado no tráfico negreiro. Não somente a estruturação econômica do
país se deu na franja de expansão do capitalismo comercial-financeiro
capitaneado pela Europa Atlântica, — e nesse sentido a escravidão brasileira
era um fato da modernidade, — como o que permitia a existência de uma elite
liberal era o regime escravocrata. No Brasil, a escravidão e o capitalismo
marchavam juntos, numa dualidade integrada. E mais: foram as fontes de
acumulação de capitais gerados nesse comércio triangular uma das alavancas para
a construção do primeiro parque industrial europeu.
É por isso que autores da Formação Nacional insistem que,
sim, o liberalismo escravocrata tinha um aspecto modernizador. O sentido da
modernização é que deveria ser colocado em xeque. O trabalho livre e as ideias
liberais eram viabilizadas graças ao tráfico e à escravidão e não apesar deles.
Crise dos modelos explicativos dualistas: o arcaico-agrário-exportador não é
nenhum empecilho ou obstáculo aos projetos de modernização, mas o seu
pressuposto. Não há sequer contradição aí, senão numa camada bastante
superficial de um discurso retrospectivo, que nem mesmo era o da época. Assim
como, no liberalismo do Império, o pressuposto social das ideias era a própria
escravidão.
Isso explica também como, na Abolição, liberais radicais
foram relevantes para reforçar a luta dos escravos e abolicionistas, no
entanto, quando da reacomodação do sistema, o efeito foi ambivalente. Abolida
formalmente a escravidão, não houve nenhum movimento revelador da
responsabilidade social pela situação degradada do negro, nem redefinição de
atitudes e expectativas da sociedade dos brancos em relação a eles. Sim, o
negro liberto não era comparável à situação do escravo, no entanto, tampouco se
equiparava ao trabalhador livre. Assim como o proletário europeu, um sistema
subjetivo dual se implantava no interior de cada um, entre o ser e o aparecer.
Os autores da Formação Nacional vão desenvolver em vários pontos como a
estrutura da Colônia e do Império se prolonga, em novos arranjos e esquemas, ao
longo do período republicano, até a atualidade das respectivas obras.
É nesse panorama teórico-político que um crítico paulista,
Roberto Schwarz, escreveu o ensaio As ideias fora do lugar (1973). Para o
crítico literário, a discussão vai mais longe. É que, no Brasil, devido às
muitas camadas históricas, aos muitos esquemas interpretativos, é inevitável
que o autor nacional não deixe de pressentir uma sensação bastante
característica. Que é uma mistura de inquietação e mal-estar. É o que Raymond
Williams chama de “estrutura do sentimento”. Essa estrutura repercute a estrutura
desconcertante da formação brasileira. Ao tomar posse de ideias americanas ou
europeias, tem-se o pressentimento de que sejam ideias postiças, mal aplicáveis
ao disforme da matéria local. Aqui, afinal, o jogo seria outro, seríamos o
filhote da cobra d´água com o jacaré, o videogame nível very hard, o lugar
desconcertante em que governos de esquerda montam cartéis de grandes
empreiteiras e liberais caminham de mãos dadas com a extrema-direita. Todo um
rol de esquisitices nacionais, que se revela num arsenal de expressões jocosas.
Para Schwarz, isso provoca uma segunda redobra da dualidade
entre ser e aparecer, uma nova ambivalência ideológico-moral. Daí ele chamar o
liberalismo brasileiro de ideologia de segunda ordem. É um pensamento ao
quadrado, porque aqui, sequer tivemos (em período algum) o predomínio do
trabalho livre que marcou a Revolução Industrial no Velho Mundo. Eis por que o
crítico recomenda que o método mais adequado para conceitualizar as formações
nacionais, no que elas têm de específico, envolve percorrer os mesmos
ziguezagues e revezamentos de sua gênese histórica. O que exige a paciência do
conceito e um espírito de finesse. O estilo alusivo, machadiano, se infiltra na
crítica por necessidade formal. Somente assim, se pode começar a deslindar o
‘hard’ embutido nas bizarrices brasileiras, como também apreender o seu
posicionamento no interior da globalização e, por tabela, compreender o global
a partir de um sistema concreto de mediações dado pelo local.
Novamente, não se trata de cortina ideológica a esconder as
relações reais de dominação. Tome-se, por exemplo, outro item do ideário
liberal, a ideia de meritocracia. Não só a escravidão se desdobrou em inúmeros
gradientes de alforrias e mestiçagens, como o próprio trabalho livre nunca se dissociou
da prática clientelista no país. Se, na Europa, surgiram os profissionais
liberais, aqueles que, sem patrões fixados, vendem os seus serviços no mercado
aberto e não devem nada a ninguém; no Brasil, tais trabalhadores mais autônomos
sempre dependeram de um extenso repertório de favorecimentos e acertos. O
exercício da profissão, amiúde, estava condicionado a favores na burocracia
pública, jeitinhos, ajudinhas, permissões informais para atuar de tal modo ou
em tal lugar. Numa palavra, o favor, que desde os primórdios coloniais
acompanha o funcionamento do mercado de trabalho, com seus QIs (Quem Indica) e
empurrãozinhos.
E isso se dissemina por todo o tecido social da experiência,
num degradê. O que não significa que o mérito inexista. É claro que existe. Só
que o mérito é um hemisfério da realidade, que tem de conviver com outro. Isto
provoca, na mente brasileira, uma reserva de hesitação, uma desconfiança
íntima. Quando alguém passa no vestibular e, com justeza, lhe reconhecemos o
mérito, não deixamos de pressentir que, avizinhado, há outros elementos
partícipes. Talvez o suco de laranja trazido pela empregada doméstica enquanto
estudava o material do cursinho poderia também ter algo a ver.
Em suma, todas as ideias estão no seu lugar. Os liberais no
governo estão no seu lugar. Os anarcoliberais estadofóbicos de Chicago também
estavam durante a ditadura Pinochet. Ou os social-democratas durante o auge do
Petrolão. Ou a esquerda socialista quando da remoção de favelas no Rio de
Janeiro. Ou o socialismo do século 21. E por aí vai. Todas as ideias estão no
seu lugar. O que muda é a relação entre as ideias e o lugar, o complexo
entrelaçar que engloba múltiplas dimensões e camadas. Sem explicar isso, sem
explicar no que o atual governo participa de uma ampla modernização em suas
dimensões global e local, ficaremos apenas na superfície dos eventos, no
anedótico casamento da cobra d´água com o jacaré.
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