Artigo de José de Souza
Martins
REVISTA IHU ON-LINE
09 Novembro 2019
"O neoliberalismo é a doutrina econômica dos que são
incapazes de pensar a economia como instrumento do desenvolvimento social e de
emancipação dos desvalidos dos constrangimentos da economia que os mantém aquém
do que é o propriamente humano. Os mecanismos de desumanização de alguns,
desumanizam a todos. Não só os outros, mas também os responsáveis por essa
vitimação do outro, os que desse processo saem minimizados no riso sem graça,
na festa sem alegria, no coração sem recompensas. A condição humana tratada
como estorvo da economia. O homem e a humanidade do homem como defeitos em face
da ideológica perfeição econômica neoliberal", escreve José de Souza
Martins, sociólogo, pesquisador Emérito do CNPq e da Faculdade de Filosofia da
USP, membro da Academia Paulista de Letras e autor de A Aparição do Demônio na
Fábrica (Editora 34). O artigo foi enviado pelo autor.
Segundo o sociólogo, "o neoliberalismo não é apenas a
ideologia política da competência para ganhar e da incompetência para
distribuir. É a ideologia do homem-coisa, do homem descartável".
Eis o artigo.
Seus resultados aqui e acolá sugerem ser engano a suposição
de que o chamado neoliberalismo é sólida teoria do progresso e do desenvolvimento
econômico. E que o desenvolvimento social seria sua natural decorrência.
Neoliberalismo, no seu uso abusivo como ideologia importada de salvação
nacional, em países subdesenvolvidos e politicamente vulneráveis, como o nosso,
é apenas a versão sem seriedade nem responsabilidade do liberalismo
propriamente dito. Neoliberalismo é uma usurpação ideológica.
É a doutrina econômica dos que são incapazes de pensar a
economia como instrumento do desenvolvimento social e de emancipação dos
desvalidos dos constrangimentos da economia que os mantém aquém do que é o
propriamente humano. Os mecanismos de desumanização de alguns, desumanizam a
todos. Não só os outros, mas também os responsáveis por essa vitimação do
outro, os que desse processo saem minimizados no riso sem graça, na festa sem
alegria, no coração sem recompensas. A condição humana tratada como estorvo da
economia. O homem e a humanidade do homem como defeitos em face da ideológica
perfeição econômica neoliberal.
O neoliberalismo não é apenas a ideologia política da
competência para ganhar e da incompetência para distribuir. É a ideologia do
homem-coisa, do homem descartável.
O Brasil tornou-se nos últimos meses a laboratório das
irracionalidades neoliberais para fazer-nos retroceder aos arcaísmos que
levamos mais de um século para vencer e superar. As irracionalidades estão em
todas as partes. Estão na desfiguração da instituição da Presidência da
República, afogada nos ditos do Facebook, nas ligeirezas do Twitter, nas
bravatas a granel, nos desmentidos, nos enganos cotidianos. Já não sabemos quem
nos governa, de quem é de fato a faixa presidencial. Se do mercado ou da
sociedade.
O neoliberalismo aplicado ao país não é científico. Toda a
arrogante presunção de que não se trata de iniquidade bem programada mal esconde a incompetência para
justificar moralmente a amoralidade do poder político reduzido ao meramente
econômico. Se fosse científico, seria experimentado em cobaias primeiro para,
depois, se desse certo, ser aplicado em seres humanos, mediante certificação
sanitária de que não é nocivo.
Expressão de grande equívoco, o neoliberalismo trata
receitas de medidas econômicas toscas como doutrina social, as receitas de
cortar dos que tem pouco para incrementar os ganhos de quem já tem muito. Ou
cortar de quem não pode para arrumar as contas do governo, que não é empresa,
que fracassa em suas responsabilidades sociais.
A economia neoliberal que supostamente criará empregos com
reformas no direito laboral destinadas a empobrecer para fragilizar a classe
trabalhadora, tem objetivos sociais: redução do trabalho e barateamento do
trabalho. Tem também objetivos de poder: os banidos da economia são a nova base
da força política do autoritarismo. O desemprego e o subemprego criam medo,
insegurança, submissão. Neles, o golpe de uma nova ordem política já foi dado.
É um golpe econômico com consequências políticas.
Fábricas são fechadas, trabalhadores ficam desempregados com
a modernização econômica desvinculada de suas
determinações sociais. Os documentários de Michael Moore sobre os
efeitos dessas concepções nos EUA, servem aqui também. A incerteza que cerca o
fechamento da Ford em São Bernardo já foi descrita nos documentários sociais de
Moore.
Ganhos especulativos são uma diversão de quem tem a
consciência cindida. De quem se tornou agente de um sistema econômico que
separou e usurpou a enorme importância das técnicas de acumulação de capital e
satanizou os valores e princípios da sociedade que por largo tempo foram premissas
e condições do lucro e do ganho. É preciso ter em conta que, historicamente,
nosso sistema econômico atual triunfou quando a sociedade perdeu a vergonha da
amoralidade do lucro pelo lucro.
Ainda nestes dias estive relendo as cartas do padre Manoel da
Nóbrega, jesuíta do século XVI, quando o Brasil estava sendo inventado por
gente como ele. Um dos grandes responsáveis pela obra da civilização no Brasil.
Frequentemente ele menciona cautelas para evitar o deslize do ganho impróprio
nas questões econômicas. A economia era regulada pela moral. O lucro indevido
era sujo e pecaminoso.
Sobreviveram, não obstante o capitalismo que temos,
crendices residuais que podem ser escavadas arqueologicamente na memória social
e popular. A mais frequente é a do pacto com satanás para sobrepor o ganhar ao
esforço do trabalho duro, de resultados demorados. Há ritos prescritos,
complicados, para realização do pacto. Portanto, não é questão de mera opção
dos que foram capturados pelo afã de riqueza sem ética.
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