Ele impôs uma ortodoxia intelectual cujos guardiões eram
totalmente intolerantes à dissidência. Os fatos a derrotaram — mas a teoria
debate-se para sobreviver: as más ideias, uma vez estabelecidas, geralmente têm
morte lenta
OUTRASMÍDIAS
MERCADO X DEMOCRACIA
por Project Syndicate
Publicado 08/11/2019 às 17:07 - Atualizado 08/11/2019 às
17:11
Por Joseph E. Stiglitz, no Project Syndicate
No final da Guerra Fria, o cientista político Francis
Fukuyama escreveu um famoso ensaio chamado “The End of History?”. Ele
argumentou que a queda do comunismo eliminaria o último obstáculo que separava
o mundo inteiro do seu destino de democracia liberal e economia de mercado.
Muita gente concordou.
Hoje, à medida que enfrentamos uma retirada da ordem global
liberal baseada em regras, com governantes autocráticos e demagogos à frente de
países que contêm bem mais da metade da população do mundo, a ideia de Fukuyama
parece peculiar e ingênua. Mas reforçou a doutrina econômica neoliberal que
prevaleceu nos últimos 40 anos.
A credibilidade da fé do neoliberalismo em mercados
desenfreados como sendo o caminho mais seguro para a prosperidade partilhada
está na unidade dos cuidados intensivos nos dias de hoje. E com razão. O
declínio simultâneo da confiança no neoliberalismo e na democracia não é
coincidência ou uma mera correlação. O neoliberalismo prejudica a democracia há
40 anos.
A forma de globalização prescrita pelo neoliberalismo deixou
indivíduos e sociedades inteiras incapazes de controlar uma parte importante de
seu próprio destino, tal como Dani Rodrik da Universidade de Harvard explicou
de forma tão clara e tal como afirmo nos meus recentes livros Globalization and
Its Discontents Revisited e People, Power, and Profits. Os efeitos da
liberalização do mercado de capitais foram particularmente odiosos: se o
principal candidato à presidência num mercado emergente “perdesse a graça” em
Wall Street, os bancos retirariam o seu dinheiro do país. Os eleitores
enfrentavam então uma escolha dolorosa: ceder a Wall Street ou enfrentar uma
grave crise financeira. Era como se Wall Street tivesse mais poder político do
que os cidadãos do país.
Mesmo nos países ricos, era dito aos cidadãos comuns: “Vocês
não podem defender as políticas que desejam” – fosse ela a proteção social
adequada, os salários decentes, a tributação progressiva ou um sistema
financeiro bem regulamentado – “porque o país perderá competitividade, os
empregos desaparecerão e vocês sofrerão”.
Tanto nos países ricos como nos pobres, as elites prometeram
que as políticas neoliberais levariam a um crescimento econômico mais rápido e
que os benefícios iriam ser repartidos para que todos, inclusive os mais
pobres, ficassem em melhor situação. Para se chegar a esse patamar, os
trabalhadores teriam, contudo, de aceitar salários mais baixos e todos os
cidadãos teriam de aceitar cortes em importantes programas governamentais.
As elites alegaram que as suas promessas eram baseadas em
modelos econômicos científicos e na “investigação com base em provas”. Bem,
após 40 anos, os números estão aí: o crescimento diminuiu e os frutos desse
crescimento foram na sua esmagadora maioria para um punhado que está no topo. À
medida que os salários estagnavam e o mercado de ações subia, o rendimento e a
riqueza espalhavam-se para os mais ricos, em vez de se espalharem para os mais
pobres.
Como é que a restrição salarial – para alcançar ou manter a
competitividade – e a redução dos programas governamentais podem resultar em
padrões de vida mais elevados? Os cidadãos comuns sentiram como se lhes
tivessem vendido uma lista de artigos. Estavam certos em sentirem-se
enganados.Agora estamos a enfrentar as consequências políticas deste grande
artifício: desconfiança das elites, da “ciência” econômica em que se baseava o
neoliberalismo e do sistema político corrompido pelo dinheiro que tornou tudo
isso possível.
A verdade é que, apesar do nome, a era do neoliberalismo
estava longe de ser liberal. Impôs uma ortodoxia intelectual cujos guardiães
eram totalmente intolerantes à dissidência. Os economistas com perspetivas
heterodoxas eram tratados como hereges a ser evitados ou, na melhor das
hipóteses, desviados para algumas instituições isoladas. O neoliberalismo
continha poucas semelhanças com a “sociedade aberta” que Karl Popper defendia.
Tal como George Soros enfatizou, Popper reconheceu que a nossa sociedade é um
sistema complexo e em constante evolução, no qual quanto mais aprendemos, mais
o nosso conhecimento muda o comportamento do sistema.
Em nenhum lugar essa intolerância foi maior do que na macroeconomia,
onde os modelos predominantes descartaram a possibilidade de uma crise como a
que vivemos em 2008. Quando o impossível aconteceu, foi tratado como se fosse
uma inundação em 500 anos – um fenômeno insólito que nenhum modelo poderia ter
previsto. Ainda hoje, os defensores dessas teorias recusam-se a aceitar que a
sua crença nos mercados autorregulados e a sua rejeição de externalidades como
inexistentes ou sem importância levaram à desregulamentação que foi essencial
para alimentar a crise. A teoria continua a sobreviver, com tentativas
ptolomaicas de ajustá-las aos factos, o que atesta a realidade de que as más
ideias, uma vez estabelecidas, geralmente têm uma morte lenta.
Se a crise financeira de 2008 não conseguiu fazer-nos
perceber que os mercados sem restrições não funcionam, a crise climática
certamente deveria conseguir: o neoliberalismo acabará literalmente com a nossa
civilização. Mas também está claro que os demagogos que querem que viremos as
costas à ciência e à tolerância só pioram as coisas.
O único caminho a seguir, o único caminho para salvar o
nosso planeta e a nossa civilização, é um renascimento da história. Temos de
revitalizar o Século das Luzes e reafirmar o nosso compromisso de honrar os
seus valores de liberdade, respeito pelo conhecimento e democracia.
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