quarta-feira, 16 de janeiro de 2019


A Humana SúmulaA Piedade deixaria de existir
Se não fizéssemos nós os Pobres de pedir;
E a Compaixão também acabaria
Se a todos, como nós, feliz chegasse o dia.

E a paz se alcança com mútuo terror,
Até crescer o egoísmo do amor:
A Crueldade tece então a sua rede,
E lança seu isco, cuidadosa, adrede.

Senta-se depois com temores sagrados,
E de lágrimas os chãos ficam regados;
A raiz da Humildade ali então se gera
Debaixo do seu pé, atenta, espera.

Em breve sobre a cabeça se lhe estende
A sombra daquele Mistério que ofende;
É aí que Verme e Mosca se sustentam
Do Mistério que ambos acalentam.

E o fruto que gera é o do Engano
Doce ao comer e tão malsano;
E o Corvo o seu ninho ali o faz
No mais espesso da sombra que lhe apraz.

Todos os Deuses, quer da terra quer do mar,
P'la Natureza esta Árvore foram procurar;
Mas foi em vão esta procura insana,
Esta Árvore cresce só na Mente Humana.

William Blake, in "Canções da Experiência"
Tradução de Hélio Osvaldo Alves


Na composição do núcleo militar do Ministério Bolso, todos os generais pertencem a famílias militares, com tradições conservadoras, muitas vezes com pais que atuaram no Golpe de 64 e no serviço da ditadura, com antigos vínculos no pensamento político autoritário de ideologias dos tempos da “Guerra Fria” e da “Doutrina de Segurança Nacional”. Os generais Hamilton Mourão, Augusto Heleno, Fernando Azevedo são todos filhos de oficiais do Exército, o General Santos Cruz e o atual Comandante do Exército, o General Pujol, são filhos de oficiais da Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Os militares, ao lado das famílias políticas do executivo, legislativo e judiciário, só podem ser entendidos quando vistos no conjunto de suas famílias. Há forte hereditariedade militar na composição e recrutamento da elite militar brasileira. Os oficiais generais quase sempre possuem vínculos genealógicos com a classe dominante tradicional ou entram pela tradição militar conservadora. A família do General Etchegoyen era um caso de hereditariedade militar. O General Eduardo Villas Boas, um dos responsáveis pelo fracasso da democracia brasileira, é mais um caso. Filho do Coronel do Exército Antonio Villas Boas e de Inalda Dias da Costa. Neto materno de Antonio Joaquim Dias da Costa e de Edith Neves, grandes fazendeiros em Cruz Alta, Rio Grande do Sul e descendentes das principais famílias latifundiárias, escravistas e políticas da Fronteira Sul, Simões Pires, Carneiro da Fontoura e outras. Parece que voltamos à República Velha e suas oligarquias políticas familiares entreguistas, antimodernidade e antidemocracia. O Ministério do Bolso poderia estar em 1929, antes do Movimento de 1930.
RCO



O nepotismo é uma longa corrente hereditária de vantagens e privilégios extraídos do Estado ao longo de várias gerações na classe dominante. Todos leram o caso do filho do general Mourão, Antonio Hamilton Rossell Mourão, repentinamente promovido com salário triplicado a quase 40 mil. O beneficiado é filho e neto de generais do exército, bisneto de desembargador e presidente do TJ do Amazonas, trineto de oligarcas latifundiários do Piauí. Pelo lado materno é filho da primeira esposa de Mourão, Ana Elizabeth, das principais famílias de Bagé, na fronteira do Rio Grande do Sul, neto de Mário Magalhães Rossell e de Zaida Quintana. O estádio de futebol local se denomina Antônio Magalhães Rossel, um dos tios e a família esteve associada com grandes pecuaristas e latifundiários, desde o Visconde de Ribeiro Magalhães, avô materno de Mario Magalhães Rossell e trisavô do sortudo do Banco do Brasil, Antonio Hamilton Rossell Mourão, o que mais uma vez confirma a tese de que política é assunto de famílias e de genealogias das classes superiores, muitas dentro do Estado, desde o Antigo Regime, ao longo de várias gerações e vários séculos. Como citamos o autor Oliveira Vianna no nosso livro Na Teia do Nepotismo: O nepotismo é a fórmula tradicional e geral da nossa vivência política. Para o trabalhador restou o prejuízo de perder oito Reais do seu salário mínimo para poder sustentar todo andar de cima da sociedade do Bolso, seus familiares e associados nas diversas corporações e altas rodas, os que o apoiam, lucram e embalam...
RCO


Nunca se viram as instituições que deveriam ser ou ter aparência de Estado, o sistema judicial, as forças armadas tão aparelhadas, partidarizadas e fazendo há meses campanha aberta para o candidato protegido deles, o Bolso e que venceu de maneira ilegítima, antidemocrática e sem concorrência. O baixo nível das ideias e propostas por eles na educação e saúde nesses dias só mostram que serão sócios e cúmplices do fracasso do desgoverno atual e daí já terão as suas imagens e identidades profissionais tão coladas com Bolso, que afundarão todos juntos na mesma impopularidade, ao lado dos seus parlamentares, juristas, ministros, comandantes, pastores e mídias unilaterais. O primeiro teste será a reforma da previdência em que já se divorciaram completamente da maioria da nação ao pretenderem preservar os seus privilégios corporativos de políticos, juízes, militares, empresários e outros ricos responsáveis pelo verdadeiro déficit do setor. Uma hora a maioria trabalhadora e assalariada perceberá o engodo eleitoral em que caiu.
RCO


E mais um descendente das antigas oligarquias no governo. O general Otávio Santana do Rêgo Barros, novo porta-voz do governo, natural de Recife-PE, filho de Francisco Rodolfo Valença do Rêgo Barros e de Maria Auxiliadora Santana do Rêgo Barros pertence a algumas das mais antigas e principais famílias pernambucanas da antiga açucarocracia, aquelas famílias dos engenhos de Casa Grande e Senzala. Como a cúpula das Forças Armadas possui muitos vínculos com a antiga classe dominante tradicional do "Antigo Regime", enfim, o que as pesquisas revelam das biografias coletivas, a prosopografia das autoridades do "novo-velho" governo... Fato social e político.


RCO

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Sobre vagueza, ou, quando um monte de areia não é um monte de areia?



Timothy Williamson - tradução de Thiago Melo.

Imagine um monte de areia. Você cuidadosamente remove um grão. Há ainda um monte? A resposta é: sim. Remover um grão não torna um monte em não monte. O princípio pode ser aplicado também quando remove outro grão, e então outro… Após cada remoção, há ainda um monte, conforme o princípio de que remover um grão não torna um monte em não monte. Mas havia, finitamente, apenas muitos grãos para começar, de modo que você se depara com um monte com apenas três grãos, então um monte com só dois grãos, um monte só com um grão, e finalmente um monte com nenhum grão. Mas isso é ridículo. Deve haver algo errado com o princípio. Algumas vezes, removendo um grão, torna um monte de areia num não monte. Mas isso parece ridículo também. Como pode um grão fazer tanta diferença? Esse antigo problema é chamado de paradoxo de sorites, da palavra grega para “monte”.

Não haveria problema se tivéssemos uma boa e precisa definição de “monte” que nos diga exatamente quantos grãos você precisa para um monte. O problema é que não temos tal definição. A palavra “monte” é vaga. Não há um claro limite entre monte e não monte. Na maioria das vezes, isso não importa. Entendemos bem o suficiente para aplicar a palavra “monte” com base nas impressões casuais. Mas se a prefeitura te acusasse de ter despejado um monte de areia num local público, e você negasse que era um “monte”, se você teve qua pagar uma multa grande, essa situação então pode depender do significado da palavra “monte”.

Questões morais e legais mais importantes também envolvem vagueza. Por exemplo, no processo de desenvolvimento humano, desde a concepção, o nascimento, até a maturidade, quando primeiramente passa a existir uma pessoa? No processo de morte cerebral, quando não existe mais uma pessoa? Tais questões importam para admissibilidade de intervenções médicas, como o aborto e o desligamento de aparelhos. Então, para discutir com propriedade, devemos ser capazes de raciocinar corretamente com palavras vagas a exemplo de “pessoa”.

Você pode achar aspectos de vagueza na maioria das palavras do Português ou em qualquer outra linguagem. Em voz alta ou em nossas cabeças, raciocinamos na maior das vezes com termos vagos. Esse tipo de raciocínio pode facilmente gerar um paradoxo tipo o do sorites. Você pode ficar pobre ao perder um centavo? Você pode ficar alto ao crescer um milímetro? A princípio, os paradoxos parecem ser truques verbais banais. Mas, quanto mais rigorosamente os filósofos os estudaram, mais profundo e difíceis se tornaram. Eles levantam dúvidas sobre os mais básicos princípios lógicos.

Tradicionalmente, a lógica tem por base o pressuposto de que toda afirmação (e negação) é verdadeira ou falsa (e não as duas coisas simultaneamente). Isso é chamado de bivalência, porque diz que há apenas dois valores de verdade: verdade e falsidade. A lógica Fuzzy é uma influente abordagem alternativa para a lógica da vagueza que rejeita a bivalência em favor de um contínuo grau de verdade e falsidade, que vai da perfeita verdade de um lado à perfeita falsidade de outro. No meio, uma afirmação pode ser simultaneamente meio verdadeira e meio falsa. Conforme essa visão, quando você remove um grão após o outro, a afirmação “Há um monte” torna menos e menos verdadeira por ínfimos passos. Nenhum passo te leva da verdade perfeita para a falsidade perfeita. A lógica Fuzzy rejeita alguns princípios-chave da lógica clássica, nos quais se baseia a matemática padrão. Por exemplo, o lógico tradicional diz, em cada ponto, “Ou há um monte ou não há”; isso é um exemplo de um princípio geral chamado terceiro excluído. O lógico fuzzy responde que quando “há um monte” é apenas uma meia verdade, então “há um monte ou não há um monte” é apenas meia verdade também.

À primeira vista, a lógica fuzzy pode parecer uma natural e elegante solução ao problema da vagueza. Mas quando você desenvolve suas consequências, ela é menos convincente. Para ver o porquê, imagine dois montes de areia, uma exata cópia de um e outro, um à direita e outro à esquerda. Ao remover um grão de um lado, você remove um grão exatamente correspondente do outro lado também. A cada estágio, a areia da direita e a areia da esquerda são grão por grão cópias exatas uma da outra. Isso é muito claro: se há um monte à direita, então há uma monte à esquerda também, e vice e versa.

Agora, conforme o lógico fuzzy, quando removemos os grãos um a um, mais cedo ou mais tarde chegamos no ponto onde a afirmação “há um monte à direita” é meio verdadeira e meio falsa. Desde que o que está à esquerda copia o que está à direita, “há um monte à esquerda” é meio verdadeira e meio falsa também. As regras da lógica fuzzy então implicam que a afirmação complexa “Há um monte à direita e nenhum à esquerda” é também meio verdadeira e meio falsa, o que significa que podemos estar igualmente propensos entre aceitar e rejeitá-la. Mas isso é absurdo. Devemos rejeitar totalmente esta afirmação, já que “Há um monte à direita e nenhum à esquerda” implica que há uma diferença entre o que está à direita e o que está à esquerda - mas não há essa diferença; eles são grão a grão duplicados. Assim, a lógica fuzzy obtém o resultado errado. Ela perde as sutilezas da vagueza.

Há muitas outras propostas complicadas para revisar a lógica e acomodar a vagueza. Minha visão é que todas elas estão tentando consertar algo que não está estragado. A lógica Padrão, com bivalência e terceiro excluído, é bem testada, simples e poderosa. A vagueza não é um problema sobre lógica; é um problema sobre conhecimento. Uma afirmação pode ser verdadeira sem que você saiba que ela é verdadeira. Existe de fato um ponto em que você tem um monte, você remove um grão, e você não tem mais um monte. O problema é que você não tem meios para reconhecer esse ponto quando ele chega. Assim, você não sabe o ponto em que isso acontece.

Uma palavra vaga como “monte” é usada tão imprecisamente que qualquer tentativa de localizar seus limites exatos não possui solidez e confiança para continuar. Embora a linguagem seja uma construção humana, isso não faz ela ser transparente a nós. Como as crianças que fazemos, os significados que fazemos podem guardar segredos de nós. Felizmente, nem tudo está escondido de nós. Frequentemente, nós sabemos que há um monte; frequentemente, nos sabemos que não há um. Algumas vezes, nós não sabemos se há ou não. Ninguém nunca nos deu o direito de saber tudo!

Timothy Williamson é o professor Wykeham de lógica na Universidade de Oxford. Seus principais interesses de pesquisa estão na filosofia da lógica, epistemologia, metafísica e filosofia da linguagem. Seu último livro é Tetralogue: I’m Right, You’re Wrong (2015).

Texto originalmente publicado no site Aeon: On vagueness, or, when is a heap of sand not a heap of sand?

*Não domino a língua inglesa. Portanto, críticas a esta tradução são bem vindas.

Cortella e Karnal sobre ética




Circula há algum tempo na internet um vídeo em que Mário Sérgio Cortella fala sobre ética, e intitulam o vídeo como sendo uma definição de ética. O que ele diz é muito mais uma posição ética do que uma definição de ética. Ética (ou filosofia moral) é a investigação sobre as normas para que uma ação seja correta. Quando Cortella diz que ética é “um conjunto de princípios e valores sobre o que eu devo, posso e quero” ele já está dando uma reposta ao problema de saber o que é certo fazer. Pois ele admite que há princípios (existe filósofos que discordam) e admite que é o equilíbrio entre as normas, a liberdade e a vontade. Isso vai além da mera definição da área de conhecimento.

Recentemente, Leandro Karnal disse que ética é respeitar a todos, não só quem tem poder. Isso também já é uma resposta ao problema. Há teorias éticas que não aceitam isso.

O trabalho filosófico em ética consiste também em fazer o que Cortella e Karnal estão tentando fazer. Mas é importante ter essas considerações que fiz em mente porque a ética é uma área em aberto, não tendo ainda uma resposta definitiva sobre seu problema principal: o que é uma ação correta?

 Thiago Melo



A misoginia, as minorias e o desrespeito



O número de pessoas que vejo indignadas com o desrespeito às mulheres, aos negros e as demais chamadas minorias vem crescendo. Isso poderia ser uma grande notícia. Mas a quantidade destas mesmas pessoas que também desrespeitam está aumentando. Percebo através de jornais, redes sociais e meu convívio social. Vejo pessoas indignadas com o machismo e elas próprias não respeitam o professor, o colega de trabalho, o colega de sala, o que está em posição social diferente, aquele que pensa diferente etc. Ao mesmo tempo, o número de pessoas que reafirmam seus preconceitos também aumentam. O número de pessoas que reafirmam o machismo, por exemplo, está aumentando.

A explicação para isso está no respeito seletivo. Não dá para escolher as pessoas que você quer respeitar. Muito menos, se você escolhe não respeitar alguém simplesmente por essa pessoa estar fazendo seu trabalho, como é o caso de desrespeito a professores. Isso porque quando o respeito ao próximo vira algo arbitrário, o grupo maior vai ganhar. Se existe mais machistas que feministas, os machistas vão ganhar. E não se pode depois alegar injustiça, pois o respeito foi consensualmente arbitrário. Ambos os lados aceitaram respeitar quem eles acham que deve. Aí ninguém pode determinar quem deve ser respeitado, a não ser o grupo maior ou mais forte.

Você esperneando ou não, o mundo nem sempre segue as nossas normas. Muito menos, se não conseguimos convencer a maioria. E escolhendo quem vamos respeitar, não conseguiremos. Não abra mão de respeitar o próximo. Esse caminho é mais seguro para o respeito a todos os tipos de pessoas.




Thiago Melo

Por que algumas pessoas insistem que uma ideia filosófica depende muito da biografia do filósofo?
Muitos professores de filosofia insistem que o ensino e a análise de ideias filosóficas não podem ser feitos sem levar em conta a vida pessoal e profissional dos filósofos que as conceberam. No entanto, a justificação desta insistência não apresentam. Esta falta de justificativa é a primeira pista para entender a posição que tomam.

Quando não apresentamos justificativas de nossas posições, as pessoas interessadas no assunto vão procurar pontos que possam justificar as posições apresentadas. Fazemos uma retrospectiva da memória que temos da pessoa. Sua história pessoal, as relações que tivemos com ela, se for o caso, o tipo de trabalho que faz etc. Aí, se, por exemplo, a pessoa defende a liberação do uso de drogas, levamos em conta se ele é um usuário, se ela em algum outro momento conversou sobre o assunto, se ela é de esquerda etc. Enfim, procuramos razões para ela defender a ideia que defende na sua biografia. É isso que um historiador da filosofia faz quando filósofos não apresentam razões ou boas razões para as ideias que defende: ele vai procurar na biografia do filósofo. Não é por acaso, portanto, que os professores que mais insistem na importância da biografia de um filósofo são aqueles que estudam ideias filosóficas que não são bem justificadas.

Seguindo esta linha, constatamos que as pessoas que sustentam que o ensino e a análise de ideias filosóficas não podem ser feitos sem levar em conta a vida pessoal e profissional dos filósofos dão como já dado definitivamente que as ideias filosóficas são subjetivas. Isso significa que as ideias filosóficas dependem muito do sujeito que as concebem. Se alguém defende que a definição de conhecimento é X, ela defende isso devido, fortemente ou exclusivamente, a seus interesses pessoais. Assim, as ideias filosóficas, antes de ser sobre o mundo, são sobre as pessoas que as concebem. Por exemplo, Platão defendeu que a definição de conhecimento é X porque é desejo dele que a definição seja essa, não porque ela de fato é essa. Nessa situação, faz todo sentido considerar a biografia de um filósofo como indispensável para entender suas ideias.

Já com relação às ideias de outras áreas de conhecimento, pensam que são objetivas ou possuem graus de objetividade que as filosóficas não possuem. Por isso, não veem dificuldades em ensinar e analisar uma ideia da física ou da matemática independente da biografia do autor.

O problema é que não é definitiva ainda a posição de que as ideias filosóficas são subjetivas e as ideias das ciências naturais e da matemática são objetivas. Este é um problema filosófico em aberto. Muitos filósofos, inclusive eu, defendem que as ideias filosóficas são mais objetivas. Outros são céticos, ou seja, não tomam posição sobre o assunto. Enfim, a resposta para este problema ainda está sendo investigada. E não há uma resposta definitiva ainda.

No mínimo, portanto, as razões que um subjetivista filosófico tem para considerar a biografia de um filósofo são as mesmas que um objetivista ou um cético tem para não considerar. Caso o subjetivista ache que ele tem razões melhores, é preciso apresentar. Apenas expressar uma posição é expor uma mera opinião. E acho que há consenso de que o ensino de filosofia não é o ensino de meras opiniões. Pois seria a disseminação de preconceitos, de ideias sem a devida avaliação crítica.




Por que argumentos circulares são falaciosos?
Uma das maiores dificuldades que enfrentei em sala de aula foi a de convencer os alunos que a falácia da circularidade em argumentos é mesmo uma falácia. Por mais exemplos que você use para mostrar que tais raciocínios não funcionam, sempre ainda fica a dúvida de saber onde está o erro. Os alunos questionam: “E daí? Ainda sim é uma justificativa”. Isso acontece porque nós professores pressupomos que os alunos conseguem reconhecer diretamente que a circularidade argumentativa é um erro - por isso, nos contentamos com exemplos. Mas nem nós professores conseguimos reconhecer diretamente. Para reconhecer a circularidade argumentativa, precisamos dos conceitos de cogência e de justificação última.

A falácia da circularidade acontece quando procuramos justificar uma ideia com outra de mesma força cognitiva. Por exemplo, a proposição “Todos os acontecimentos naturais são regulares” possui a mesma força cognitiva que a proposição “Observamos que os acontecimentos naturais são regulares. Veja a formulação de um argumento envolvendo estas ideias:

 Observamos que os acontecimentos naturais são regulares.

 Logo, todos acontecimentos naturais são regulares.

O que justifica a ideia “Os acontecimentos naturais são regulares” não pode ser a ideia “Observamos que os acontecimentos naturais são regulares”. Isso decorre do fato de que a observação que os acontecimentos naturais são regulares não garante que os acontecimentos são regulares. Pode acontecer de nossa observação ser falha. Podemos falhar, por exemplo, em não constatar que a regularidade vale para alguns acontecimentos naturais e não vale para outros. Nesse caso, não se segue que todos os acontecimentos naturais são regulares. Só alguns são regulares. Aí, não podemos nos convencer da verdade da ideia que usamos para justificar, isto é, da verdade da premissa. Tal fato envolve os dois conceitos já mencionados: cogência e justificação última.

Em raciocínios cogentes, pretendemos justificar a conclusão com base nas premissas. Isso significa que as premissas devem ser mais confiáveis ou mais fortes do que a conclusão, já que é a partir das premissas que procuro garantir a verdade da conclusão. Isso acontecendo, o argumento é cogente. Se a premissa não for mais confiável do que a conclusão, não conseguimos garantir por meio do argumento a verdade da conclusão. No raciocínio formulado acima, a ideia expressa na premissa possui a mesma força cognitiva da ideia expressa na conclusão. Logo, não consegue-se garantir a verdade da conclusão através da premissa. As duas ideias precisam igualmente de uma justificação para acreditar na verdade delas.

No fim das contas, a circularidade é uma falácia porque a premissa não é uma justificativa última, ainda permanece a necessidade de mais uma justificação. No exemplo que estou usando, ainda permanece a dúvida de saber o que justifica a ideia de que os acontecimentos naturais são regulares. Isso quer dizer que a premissa nem sequer cumpre sua função de justificar* a conclusão. Portanto, o argumento é falacioso. Parece haver uma justificativa* para a conclusão, mas não há.

*Comentando sobre este texto no Facebook, Desidério Murcho me lembrou de um ponto muito importante para este assunto. É o da distinção entre justificação e justificação adequada. Como disse ele, “Uma justificação má é ainda uma justificação”. No entanto, não é uma justificação adequada. Os argumentos circulares possuem justificação mas não justificação adequada. Então, aproveito para corrigir o final do texto: isso quer dizer que a premissa nem sequer cumpre a função de justificar adequadamente a conclusão. Portanto, o argumento é falacioso. Parece haver uma justificativa adequada para a conclusão, mas não há.




O que seria melhor?
Às vezes me pergunto se não seria melhor viver uma vida profissional confortável e acadêmica do que essa vida, por um lado, degradante e, por outro lado, desafiadora que vivo na escola pública. Ao ler artigos de alguns professores universitários brasileiros e de grandes nomes estrangeiros como Victor Goldschmidt e Gilles-Gaston Granger, vejo que não. Viver sem saber bem o que está pensando e dizendo, mesmo no maior conforto de Paris, seria uma frustração grave para mim. Uma frustração semelhante a de um engenheiro civil incapaz de construir um prédio minimamente estável. Prefiro viver como Sócrates.

Thiago Melo, professor de filosofia

A censura aos professores do ensino básico



Há um mantra no debate sobre o ensino básico brasileiro de que toda a sociedade deve participar dessa discussão. Clamam por todo tipo de opinião para superarmos os problemas da educação. Vou defender neste texto que esse tipo de ideia é o grande obstáculo para as soluções necessárias, pois acaba por eliminar do debate o principal autor: o professor da educação básica.

A variedade de instituições, órgãos e profissionais que participam do debate para a melhoria da educação brasileira é única no mundo. Participam o Banco Mundial, Unicef, ONGs, empresas, empreendedores, pastores, padres, socialites, banqueiros, professores universitários etc. Muita gente querendo dar seu pitaco. É neste “grande debate” que o professor escolar perde a vez, já que ele é muito desvalorizado por toda a sociedade, não só pelos políticos. Essa desvalorização pode ser vista na ausência dos professores secundaristas na mídia. Peço ao leitor para tentar lembrar ou pesquisar algum colunista de jornal ou revista de grande circulação que seja professor de escolar. Eu não conheço. Alguém lembra se algum professor da educação básica já ocupou o centro do programa Roda Viva, da TV Cultura? Nunca vi sequer participarem da bancada. Em reportagens sobre educação, dificilmente um professor do ensino básica é ouvido para dar opinião e apresentar propostas. Na imensa maioria das vezes, só é ouvido para relatar violências e coisas do tipo. A apresentação de propostas só é concedida para membros de ONGs, celebridades, professores universitários, políticos, psicólogos e os ditos especialistas.

O resultado dessa espécie de censura é o desconhecimento das demandas necessárias para resolver os problemas da educação básica. Isso porque quem dita as ações educacionais não sabe nada ou quase nada do que acontece na escola e em suas salas de aula. Desconhecem, por exemplo, que a escola pública brasileira é administrada para diminuir ao máximo o trabalho de pedagogos, diretores e funcionários de secretarias de educação. E a melhor maneira de se fazer isso é jogar todas as responsabilidades para o professor. Se o aluno tira nota ruim, é mais fácil culpar o professor do que conversar com o aluno e seus pais. Imagine se os pedagogos tivessem de conversar com mais de 50% dos alunos e pais sobre notas ruins. Haja reuniões! É bem mais fácil o professor dar provas mais fáceis. Se o aluno comete indisciplinas em sala de aula, é mais fácil pressionar o professor para suportar o comportamento do aluno do que tentar discipliná-lo. Pois o diretor vai ter de marcar reunião com os pais do aluno, que podem ser muito desrespeitosos. Isso dá trabalho. Como dá trabalho também suspender alunos com indisciplinas graves. Dizem que a secretaria pode “pegar no pé”. Em todas essas situações, o ensino é deixado de lado para dar lugar a outros interesses. Aí, podem contratar os melhores professores do mundo que não darão jeito. Podem comprar tablets, diminuir as disciplinas, implantar métodos de ensino revolucionários que não vai adiantar.

É preciso que o professor escolar seja o condutor maior do ensino básico brasileiro. O autor da aula é o professor. Ele é quem mais tem contato com o aluno no tratamento do conteúdo apresentado. Assim, é ele que tem mais propriedade para apontar as dificuldades de aprendizado dos alunos e propor as medidas adequadas para garantir o aprendizado do conteúdo. Mas o que se vê são outros profissionais e cidadãos ditando as ações educacionais. E, na maior parte das vezes, falam sobre o que não sabem (conteúdo) e sobre o que não veem (atividades dos alunos).

Antes de mais nada, é preciso permitir que o professor exija que o estudante estude. Se o professor não pode cobrar leitura, exercícios e disciplina, não consegue expor conteúdos e orientar os alunos. Nessa situação, o professor não exerce sua função e o estudante não exerce a dele.

Vejam que nem sua função básica a educação brasileira consegue executar. A sociedade quer colocar banco de couro em carro sem chassi. E termina por conseguir duas coisas: permitir todo tipo de maus-tratos para com o professor dentro da escola, com professores sendo sistematicamente desrespeitados e agredidos verbalmente pelos alunos, como também cotidianamente assediados moralmente por pedagogos e diretores; e deformar o intelecto e a moral dos alunos. Os alunos saem da escola analfabetos funcionais e marginais das regras e leis da sociedade.

Thiago Melo
in O básico da realidade



Texto originalmente publicado no jornal Gazeta do Povo: http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/a-censura-aos-professores-da-educacao-basica-ejbhpsmsu2c930nf2v7g8n5fy

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019


Já tenho uma boa análise do Ministério do Bolso, completamente dominado por vínculos hereditários e familiares. Agora quero falar do secretariado do Ratinho no Paraná. Lamento o desprestígio e o desinteresse na educação superior, ciência e tecnologia, cuja secretaria, a SETI, foi extinta. Brincavam que a SETI buscava vida inteligente no Paraná, agora nem isso. A visão rasteira de educação como mercadoria pode ser constatada pelo perfil de secretariado neoliberal. O secretariado do Ratinho, em boa parte, segue o padrão social, político e espacial do próprio, uma nova e astuta elite política e empresarial do interior do Paraná (os Vips, que alguns não gostam do termo), porém, contudo, todavia, a presença de famílias políticas do Paraná dos Campos Gerais, com Sandro Alex, irmão do prefeito de Ponta Grossa, na poderosa Infraestrutura e Logística, junto com nomes tradicionais de Curitiba, Ney Leprevost, Secretaria de Justiça, Família e Trabalho e Daniel Pimentel Slaviero, neto do ex-governador Paulo Pimentel e irmão do vice-prefeito de Curitiba, homem da mídia e de família empresarial acoplada ao Estado há várias gerações, bem instalado como presidente da Copel. O dinossauro-camaleão da ARENA, Reinhold Stephanes, que esteve em todos os governos dos últimos quarenta anos, do PDS, Lerner, PMDB de Requião, PT, Beto Richa, agora na Secretaria de Gestão Pública, isso em um governo de caras novas ! Militares na Segurança e DER, o que não impedem crises políticas, como bem vimos nos escândalos dos anos 1970. No mais um secretariado limitado, sem programas de inclusão social, sem políticas sociais arrojadas, sem interesse na esfera educacional, desprezando as universidades, a ciência e tecnologia, que seriam fundamentais para o progresso do Paraná. Governo sem a valorização da cultura, Luciana Pereira, filha do ex-governador Mario Pereira, não terá o status de secretária, em uma área sempre desvalorizada e desmotivada. Um secretariado e um programa de governo adaptado ao tamanho das ideias políticas e mentalidade do Ratinho.
RCO


Michelle Bolso passou o recibo de que está sentindo mal as críticas. A notícia de hoje é que a ex-secretária Michelle Bolso vai estar no centro das crises políticas e dragará a família Bolso inteira para um rápido aumento na rejeição política. Uma pessoa com origens simples, periféricas e populares, que poderiam ser vantagens no jogo do poder, mas sem letramento, sem cultura, sem o mínimo tato político e que se aproximou de Bolso com uma grande diferença de idade, diferença social e de status. Rosane Collor foi outra protagonista na queda de Collor e com a mesma empáfia, mas Rosane e Thereza Collor eram sinhazinhas oligárquicas, enquanto Michelle, se fosse inteligente, deveria ter algo da discrição pública e simpatia de Marisa Letícia Lula no auge do poder. Paul Valery definiu elegância como a arte de não se fazer notar, aliada ao cuidado sutil de se distinguir, mas Michelle se somará ao desastre político em curso. O que ela deveria responder junto com Bolso é a resposta sobre o dinheiro de Queiroz e companhias, as graves denúncias de crime e peculato legislativo da famiglia.


RCO


Na composição do núcleo militar do Ministério Bolso, todos os generais pertencem a famílias militares, com tradições conservadoras, muitas vezes com pais que atuaram no Golpe de 64 e no serviço da ditadura, com antigos vínculos no pensamento político autoritário de ideologias dos tempos da “Guerra Fria” e da “Doutrina de Segurança Nacional”. Os generais Hamilton Mourão, Augusto Heleno, Fernando Azevedo são todos filhos de oficiais do Exército, o General Santos Cruz e o atual Comandante do Exército, o General Pujol, são filhos de oficiais da Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Os militares, ao lado das famílias políticas do executivo, legislativo e judiciário, só podem ser entendidos quando vistos no conjunto de suas famílias. Há forte hereditariedade militar na composição e recrutamento da elite militar brasileira. Os oficiais generais quase sempre possuem vínculos genealógicos com a classe dominante tradicional ou entram pela tradição militar conservadora. A família do General Etchegoyen era um caso de hereditariedade militar. O General Eduardo Villas Boas, um dos responsáveis pelo fracasso da democracia brasileira, é mais um caso. Filho do Coronel do Exército Antonio Villas Boas e de Inalda Dias da Costa. Neto materno de Antonio Joaquim Dias da Costa e de Edith Neves, grandes fazendeiros em Cruz Alta, Rio Grande do Sul e descendentes das principais famílias latifundiárias, escravistas e políticas da Fronteira Sul, Simões Pires, Carneiro da Fontoura e outras. Parece que voltamos à República Velha e suas oligarquias políticas familiares entreguistas, antimodernidade e antidemocracia. O Ministério do Bolso poderia estar em 1929, antes do Movimento de 1930.


Ricardo Costa de Oliveira

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019


A luta de classes imaginaria travada pelos ideólogos ocorre entre “socialismo” X “fascismo”. Ela gera artigos, discursos e frases de efeito, mas não enche a barriga de ninguém. A luta de classes real e que interessa as pessoas comuns se dá entre dois modelos de capitalismo e os variados matizes dentro de cada um deles: um, pro-mercado e sustentado por uma ideologia punitivista que combate o identitarismo e o politicamente correto. Representantes desse modelo acabaram de chegar ao poder através do voto legitimo da maioria do eleitorado. Nos próximos anos, saberemos os resultados das politicas publicas que sustentam este modelo e que forca social se oporá a ele. Espero que não seja apenas um reedição do neopopulismo identitário lulista, e que emerja algo mais avançado no bojo dos debates que ocorrerão daqui por diante. Se ha algo que o bolsonarismo nos ensina eh que o eleitorado já se cansou de mais do mesmo e busca novas alternativas politicas. Espero que os cientistas sociais e políticos tenham imaginação para formula-las caso queiram desalojar Bolsonaro e sua equipe do poder nos próximos anos.

Sérgio Braga

A FESTA



Os comentaristas da posse têm a mesma “ingenuidade” que destruiu o centro político no País : ignoram que a divisão entre Bolsonaro e os “vermelhos” ( expressão estúpida e simplista ) não é só uma quebra de protocolo, mas tem raízes históricas , cicatrizes e conflitos inconciliáveis.
O novo presidente representa a tortura, da qual foi vítima boa parte da oposição, o autoritarismo , 21 anos de Ditadura, a corrupção institucionalizada impossível de ser revelada pela censura à imprensa, impunidade para os carrascos , exploração máxima das classes populares, exclusão e miséria.
A “prosperidade” que promete evoca o tempo em que “a economia ía bem e o povo passava fome” do “milagre brasileiro”.
A ausência da oposição de esquerda na posse é tratada nos comentários como quebra das regras democráticas e uma ameaça â união nacional. Ilusão de falsos liberais e candura de jornalistas do imediato.
O que disse o capitão de gravata no Congresso e no púlpito da entrega da faixa presidencial não foi mera retórica de campanha nem uma contradição com o seu “espírito conciliador”. Foi a expressão do que ele simboliza, representa e encarna : o histórico autoritarismo brasileiro, que vem desde o positivismo estampado na bandeira como Ordem e Progresso.
Tosco, violento e hipocritamente referindo-se às Leis, à Constituição e à Democracia, o que exala é o cheiro de um Estado policialesco impondo à bala o ajuste fiscal do Paulo Guedes e seu experimento econômico ultra-liberal de capitalismo selvagem.
Há contradições nisso tudo, a começar pelo amigo do Queiroz falar em duro combate à corrupção. A política externa medieval que se delineia é outro paradoxo num mundo de interdependência.
O que não há é a conciliação nacional pedida pelos comentaristas políticos e econômicos , pois essa pretensa união é que não passa de ficção. A realidade subjacente é o peso das botas e metralhadoras, mesmo em sua versão soft.

Reinaldo Lobo

Reinauguração




                     Entre o gasto dezembro e o florido janeiro,
                     entre a desmitificação e a expectativa,
                     tornamos a acreditar, a ser bons meninos,
                     e como bons meninos reclamamos
                     a graça dos presentes coloridos.
                     Nossa idade — velho ou moço —
                                          [pouco importa.
                     Importa é nos sentirmos vivos
                     e alvoroçados mais uma vez, e revestidos
                                          [de beleza, a exata beleza
                                          que vem dos gestos espontâneos
                     e do profundo instinto de subsistir
                     enquanto as coisas em redor se derretem
                                          [e somem
                     como nuvens errantes no universo estável.
                     Prosseguimos. Reinauguramos. Abrimos
                                          [olhos gulosos
                     a um sol diferente que nos acorda para os
                     descobrimentos.
                     Esta é a magia do tempo.
                     Esta é a colheita particular
                     que se exprime no cálido abraço
                                          [e no beijo comungante,
                     no acreditar na vida e na doação de vivê-la
                     em perpétua procura e perpétua criação.
                     E já não somos apenas finitos e sós.
                     Somos uma fraternidade, um território,
                                          [um país
                     que começa outra vez no canto do galo
                                          [de 1º de janeiro
                     e desenvolve na luz o seu frágil projeto
                                          [de felicidade.

Carlos Drummond de Andrade