Timothy Williamson - tradução de Thiago Melo.
Imagine um monte de areia. Você cuidadosamente remove um
grão. Há ainda um monte? A resposta é: sim. Remover um grão não torna um monte
em não monte. O princípio pode ser aplicado também quando remove outro grão, e
então outro… Após cada remoção, há ainda um monte, conforme o princípio de que
remover um grão não torna um monte em não monte. Mas havia, finitamente, apenas
muitos grãos para começar, de modo que você se depara com um monte com apenas
três grãos, então um monte com só dois grãos, um monte só com um grão, e
finalmente um monte com nenhum grão. Mas isso é ridículo. Deve haver algo
errado com o princípio. Algumas vezes, removendo um grão, torna um monte de
areia num não monte. Mas isso parece ridículo também. Como pode um grão fazer
tanta diferença? Esse antigo problema é chamado de paradoxo de sorites, da
palavra grega para “monte”.
Não haveria problema se tivéssemos uma boa e precisa
definição de “monte” que nos diga exatamente quantos grãos você precisa para um
monte. O problema é que não temos tal definição. A palavra “monte” é vaga. Não
há um claro limite entre monte e não monte. Na maioria das vezes, isso não
importa. Entendemos bem o suficiente para aplicar a palavra “monte” com base
nas impressões casuais. Mas se a prefeitura te acusasse de ter despejado um
monte de areia num local público, e você negasse que era um “monte”, se você
teve qua pagar uma multa grande, essa situação então pode depender do
significado da palavra “monte”.
Questões morais e legais mais importantes também envolvem
vagueza. Por exemplo, no processo de desenvolvimento humano, desde a concepção,
o nascimento, até a maturidade, quando primeiramente passa a existir uma
pessoa? No processo de morte cerebral, quando não existe mais uma pessoa? Tais
questões importam para admissibilidade de intervenções médicas, como o aborto e
o desligamento de aparelhos. Então, para discutir com propriedade, devemos ser
capazes de raciocinar corretamente com palavras vagas a exemplo de “pessoa”.
Você pode achar aspectos de vagueza na maioria das palavras
do Português ou em qualquer outra linguagem. Em voz alta ou em nossas cabeças,
raciocinamos na maior das vezes com termos vagos. Esse tipo de raciocínio pode
facilmente gerar um paradoxo tipo o do sorites. Você pode ficar pobre ao perder
um centavo? Você pode ficar alto ao crescer um milímetro? A princípio, os
paradoxos parecem ser truques verbais banais. Mas, quanto mais rigorosamente os
filósofos os estudaram, mais profundo e difíceis se tornaram. Eles levantam
dúvidas sobre os mais básicos princípios lógicos.
Tradicionalmente, a lógica tem por base o pressuposto de que
toda afirmação (e negação) é verdadeira ou falsa (e não as duas coisas
simultaneamente). Isso é chamado de bivalência, porque diz que há apenas dois
valores de verdade: verdade e falsidade. A lógica Fuzzy é uma influente
abordagem alternativa para a lógica da vagueza que rejeita a bivalência em
favor de um contínuo grau de verdade e falsidade, que vai da perfeita verdade
de um lado à perfeita falsidade de outro. No meio, uma afirmação pode ser
simultaneamente meio verdadeira e meio falsa. Conforme essa visão, quando você
remove um grão após o outro, a afirmação “Há um monte” torna menos e menos
verdadeira por ínfimos passos. Nenhum passo te leva da verdade perfeita para a
falsidade perfeita. A lógica Fuzzy rejeita alguns princípios-chave da lógica
clássica, nos quais se baseia a matemática padrão. Por exemplo, o lógico
tradicional diz, em cada ponto, “Ou há um monte ou não há”; isso é um exemplo
de um princípio geral chamado terceiro excluído. O lógico fuzzy responde que
quando “há um monte” é apenas uma meia verdade, então “há um monte ou não há um
monte” é apenas meia verdade também.
À primeira vista, a lógica fuzzy pode parecer uma natural e
elegante solução ao problema da vagueza. Mas quando você desenvolve suas
consequências, ela é menos convincente. Para ver o porquê, imagine dois montes
de areia, uma exata cópia de um e outro, um à direita e outro à esquerda. Ao
remover um grão de um lado, você remove um grão exatamente correspondente do
outro lado também. A cada estágio, a areia da direita e a areia da esquerda são
grão por grão cópias exatas uma da outra. Isso é muito claro: se há um monte à
direita, então há uma monte à esquerda também, e vice e versa.
Agora, conforme o lógico fuzzy, quando removemos os grãos um
a um, mais cedo ou mais tarde chegamos no ponto onde a afirmação “há um monte à
direita” é meio verdadeira e meio falsa. Desde que o que está à esquerda copia
o que está à direita, “há um monte à esquerda” é meio verdadeira e meio falsa
também. As regras da lógica fuzzy então implicam que a afirmação complexa “Há
um monte à direita e nenhum à esquerda” é também meio verdadeira e meio falsa,
o que significa que podemos estar igualmente propensos entre aceitar e rejeitá-la.
Mas isso é absurdo. Devemos rejeitar totalmente esta afirmação, já que “Há um
monte à direita e nenhum à esquerda” implica que há uma diferença entre o que
está à direita e o que está à esquerda - mas não há essa diferença; eles são
grão a grão duplicados. Assim, a lógica fuzzy obtém o resultado errado. Ela
perde as sutilezas da vagueza.
Há muitas outras propostas complicadas para revisar a lógica
e acomodar a vagueza. Minha visão é que todas elas estão tentando consertar
algo que não está estragado. A lógica Padrão, com bivalência e terceiro
excluído, é bem testada, simples e poderosa. A vagueza não é um problema sobre
lógica; é um problema sobre conhecimento. Uma afirmação pode ser verdadeira sem
que você saiba que ela é verdadeira. Existe de fato um ponto em que você tem um
monte, você remove um grão, e você não tem mais um monte. O problema é que você
não tem meios para reconhecer esse ponto quando ele chega. Assim, você não sabe
o ponto em que isso acontece.
Uma palavra vaga como “monte” é usada tão imprecisamente que
qualquer tentativa de localizar seus limites exatos não possui solidez e
confiança para continuar. Embora a linguagem seja uma construção humana, isso
não faz ela ser transparente a nós. Como as crianças que fazemos, os
significados que fazemos podem guardar segredos de nós. Felizmente, nem tudo
está escondido de nós. Frequentemente, nós sabemos que há um monte;
frequentemente, nos sabemos que não há um. Algumas vezes, nós não sabemos se há
ou não. Ninguém nunca nos deu o direito de saber tudo!
Timothy Williamson é o professor Wykeham de lógica na
Universidade de Oxford. Seus principais interesses de pesquisa estão na
filosofia da lógica, epistemologia, metafísica e filosofia da linguagem. Seu último livro é Tetralogue: I’m
Right, You’re Wrong (2015).
Texto
originalmente publicado no site Aeon: On vagueness, or, when is a heap of sand
not a heap of sand?
*Não domino a língua inglesa. Portanto, críticas a esta
tradução são bem vindas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário