Artigo de Ladislau Dowbor
REVISTA IHU ON-LINE
24 Junho 2016
Radiografia de um sequestro: banqueiros e megaempresários
colonizam os partidos, compram acordos no Judiciário, comandam mídia e extraem
dinheiro dos Tesouros. Haverá saída?
O artigo é de Ladislau Dowbor, economista, doutor em
Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de
Varsóvia, professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –
PUC-SP e da Universidade Metodista de São Paulo – Umesp, e consultor de
diversas agências das Nações Unidas, em artigo publicado por Outras Palavras,
23-06-2016.
Eis o artigo.
“A política mudou de lugar: a globalização desafia
radicalmente
os quadros de referência da política, como prática e teoria”
Octávio
Ianni [2]
“Capture is
more subtle and no longer requires a transfer of funds,
since the
politician, academic or regulator has started to believe
that the
world works in the way that bankers say it does”
Joris Luyendijk [3]
Olhar o século 21 pelas lentes do século passado não ajuda.
Quando pensamos o mundo da economia, pensamos ainda em interesses econômicos e
mecanismos de mercado. A política, o poder formal, os impostos, o setor público
em geral representariam outra dimensão. Não é nova a ruptura destas fronteiras,
a penetração dos interesses de grupos econômicos privados na esfera pública. O
que é novo, é a escala, a profundidade e o grau de organização do processo. O
que já foram deformações fragmentadas, penetrações pontuais através de lobbies,
de corrupção e de “portas-giratórias” entre o setor privado e o setor público
se avolumaram, e por osmose estão se transformando em poder político articulado
em que o interesse público é que aflora apenas por momentos e segundo esforços
prodigiosos de manifestações populares, de frágeis artigos na mídia
alternativa, de um ou outro político independente. O poder corporativo
tornou-se sistêmico, capturando uma a uma as diversas dimensões de expressão e
exercício de poder, e gerando uma nova dinâmica, ou uma nova arquitetura do
poder realmente existente.
Uma forma é a própria expansão dos tradicionais lobbies. A
Google, por exemplo, tem hoje oito empresas de lobby contratadas apenas na
Europa, além de financiamento direto de parlamentares e de membros da Comissão
Europeia. É provável que tenha de pagar 6 bilhões de euros por ilegalidades cometidas
no Velho Continente. Os gastos da Google nesta área já se aproximam dos da
Microsoft. A Google mobilizou congressistas americanos para pressionarem a
Comissão: “O esforço coordenado por senadores e membros do Congresso, bem como
de um comité de congressistas, fez parte de um esforço sofisticado, com muitos
milhões de libras em Bruxelas, com que a Google montou a ofensiva para travar
as resistências à sua dominação na Europa.” [4]
Enquanto os lobbies ainda podem ser apresentados como formas
externas de pressão, muito mais importante é o financiamento direto de
campanhas políticas, através de partidos ou investindo diretamente nos
candidatos. No Brasil lei promulgada em 1997 autorizou as empresas a financiar
candidatos, com impactos desastrosos em particular no comportamento de
parlamentares, que passaram a formar bancadas corporativas. Em 2010, os Estados
Unidos seguiram o mesmo caminho, levando a que hoje os americanos comentem que
“temos o melhor Congresso que o dinheiro pode comprar”. No Brasil finalmente o
STF decretou a ilegalidade da prática, a valer a partir das próximas eleições.
Mas em 2016 ainda temos uma bancada ruralista, além da grande mídia, das
empreiteiras, dos bancos, das montadoras, e contam-se nos dedos os
representantes do cidadão. O truncamento do Código Florestal e consequente
retomada da destruição da Amazônia, o bloqueio da taxação de transações
financeiras e tantas outras medidas, ou ausência de medidas como é o caso da
tributação sobre fortunas ou capital improdutivo, resultam desta nova relação
de forças que um Congresso literalmente comprado permite.
A captura da área jurídica adquiriu imensa importância, e se
dá por várias formas. Foi notória a tentativa dos grandes bancos brasileiros,
por meio de financiamentos de diversos tipos, de colocar as atividades
financeiras fora do alcance do Procon e de outras instâncias de defesa do
consumidor. Nos Estados Unidos, um juiz de uma comarca decide colocar a
Argentina na ilegalidade no quadro dos chamados “fundos abutres”, pondo-se claramente
a serviço da legalização da especulação financeira internacional, e acima da
legislação de outro país.
Uma forma particularmente perniciosa de captura do
judiciário deu-se por meio dos acordos ditos “settlements” , pelos quais as
corporações pagam uma multa mas não precisam reconhecer a culpa, evitando assim
que os administradores sejam criminalmente responsabilizados. Assim, os
administradores corporativos e financiadores ficam tranquilos em termos de
eventuais condenações. Joseph Stiglitz comenta: “Temos notado repetidas vezes
que nenhum dos responsáveis encarregados dos grandes bancos que levaram o mundo
à beira da ruína foi considerado responsável (accountable) por seus malfeitos.
Como pode ser que ninguém seja responsável? Especialmente quando houve
malfeitos da magnitude dos que ocorreram nos anos recentes?” [5] Elizabeth
Warren, senadora americana, traz no seu curto estudo uma excelente descrição
dos mecanismos, com nomes das empresas. [6]
A GSK, por exemplo, um gigante da área farmacêutica, fez um
acordo com a justiça norte-americana para compensar fraude generalizada com
três tipos de medicamentos, pagando 3 bilhões de dólares. A notícia da
condenação por fraude que atingiu milhões de pacientes não causou prejuízo
significativo à empresa, cujas ações subiram ao se constatar que tinha lucrado
com a fraude mais do que o valor da multa. Os aplicadores financeiros
consideraram que o seu dinheiro fora bem defendido. Esta desresponsabilização é
hoje generalizada, abrindo uma porta paralela de financiamento de governos
graças às ilegalidades. Para dar alguns exemplos, o Deutsche Bank está pagando
uma multa de 2,6 bilhões de dólares em 2015; o Crédit Suisse está pagando 2,5
bilhões por condenação em 2014 e assim por diante, envolvendo todos os gigantes
corporativos. Um exercício de sistematização da criminalidade financeira pode
ser encontrado no site Corporate Research Project, que apresenta as condenações
e acordos agrupados por empresa. George Monbiot chama isto de “um sistema
privatizado de justiça para as corporações globais” e considera que “a
democracia é impossível nestas circunstâncias”.[7] (252)
Hoje as corporações dispõem do seu próprio aparato jurídico,
como o International Centre for the Settlement of Investment Disputes (ICSID) e
instituições semelhantes em Londres, Paris, Hong Kong e outros. Tipicamente,
irão atacar um país se este impuser regras ambientais ou sociais que o mundo
corporativo julga desfavoráveis, e processá-lo por lucros que poderiam ter
tido. A disputa jurídica constitui uma dimensão essencial dos tratados TTIP
(Transatlantic Trade and Investment Partnership), na esfera do Atlântico, e TPP
(Trans-Pacific Partnership) na esfera do Pacífico. Tais acordos amarram um
conjunto de países com regras internacionais em que os Estados nacionais
perderão a capacidade de regular questões ambientais, sociais e econômicas, e
muito particularmente, as próprias corporações. Pelo contrário, serão as
próprias corporações a impor-lhes — e a nós todos — as suas leis. Nas palavras
de Luís Parada, um advogado de governos em litígio com grupos mundiais
privados, “a questão finalmente é de saber se um investidor estrangeiro pode
forçar um governo a mudar as suas leis para agradar ao investidor, em vez de o
investidor se adequar às leis que existem no país.” [8]
Outro eixo poderoso de captura do espaço político se dá
através do controle organizado da informação, construindo uma fábrica de
consensos onde Noam Chomsky nos deu análises preciosas.[9] O alcance planetário
dos meios de comunicação de massa, e a expansão de gigantes corporativos de
produção de consensos permitiram que se atrasasse em décadas a compreensão
popular do vínculo entre o fumo e o câncer; que se bloqueasse nos Estados
Unidos a expansão do sistema público de saúde; que se vendesse ao mundo a
guerra pelo controle do petróleo como uma luta para libertar a população
iraquiana da ditadura e para proteger o mundo de armas de destruição em massa.
A escala das mistificações é impressionante.
Ofensiva semelhante em escala mundial, e em particular nos
EUA, foi organizada para vender ao mundo não a ausência da mudança climática –
os dados são demasiado fortes – mas a suposição de que “há controvérsias”,
adiando ou travando a inevitável mudança da matriz energética. James Hoggan
realizou uma pesquisa interessante sobre como funciona esta indústria. A
articulação é poderosa, envolvendo os think tanks, instituições conservadoras
como o George C. Marshall Institute, o American Enterprise Institute (AEI), o
Information Council for Environment (ICE), o Fraser Institute, o Competitive
Enterprise Institute (CEI), o Heartland Institute, e evidentemente o American
Petroleum Institute (API) e o American Coalition for Clean Coal Electricity
(ACCCE), além do Hawthorne Group e tantos outros. A ExxonMobil e a Koch
Industries são poderosos financiadores, esta última aliás grande articuladora
do Tea Party e da candidatura Trump. Sempre petróleo, carvão, produtores de
carros e de armas, muitos republicanos e a direita religiosa.[10]
Campanhas deste gênero são veiculadas por gigantes da mídia.
No Brasil, 97% dos domicílios têm televisão, que ocupa três a quatro horas do
nosso dia, e que está presente nas salas de espera, nos meios de transporte,
incessante bombardeio que parte de alguns poucos grupos. No nível mundial,
Rupert Murdoch assume tranquilamente ser o responsável pela ascensão e suporte
a Margareth Thatcher, financiou um sistema de escutas telefônicas em grande
escala na Grã-Bretanha, sustenta um clima de ódio de direita através da Fox,
sem receber mais que um tapinha na mão quando se revelam as ilegalidades que
pratica. No Brasil, com o controle da nossa visão de mundo por quatro grupos
privados – os Marinho, Civita, Frias e Mesquita – o próprio conceito de
imprensa livre se torna surrealista, e os impactos na Argentina, no Chile, na
Venezuela e outros países são impressionantes em termos de promoção das visões
mais retrógradas e de geração de clima de ódio social.
A vinculação da dimensão midiática do poder com o sistema
corporativo mundial é em grande parte indireta, mas muito importante. As
campanhas de publicidade veiculadas promovem incessantemente comportamentos e
atitudes, centrados no consumismo obsessivo dos produtos das grandes
corporações. Isto amarra a mídia de duas formas: primeiro, porque pode dar más
notícias sobre o governo, mas nunca sobre as empresas, mesmo quando entopem os
alimentos de agrotóxicos, deturpam a função dos medicamentos ou nos vendem
produtos associados com a destruição de biomas como a floresta amazônica.
Segundo, como a publicidade é remunerada em função de pontos de audiência, a
apresentação de um mundo cor de rosa de um lado, e de crimes e perseguições
policiais de outro, tudo para atrair a atenção pontual e fragmentada, torna-se
essencial, criando uma população desinformada ou assustada, mas sobretudo
obcecada com o consumo, o que remunera com nosso dinheiro as corporações que
financiam estes programas. O círculo se fecha, e o resultado é uma sociedade
desinformada e consumista. A publicidade, o tipo de programas e de informação,
o consumismo e o interesse das corporações passam a formar um universo
articulado e coerente, ainda que desastroso em termos de funcionamento
democrático da sociedade.[11] (217)
Além dos think tanks e do controle da mídia, o controle das
próprias visões acadêmicas avançou radicalmente nas últimas décadas, por meio
dos financiamentos corporativos diretos, e em particular pelo controle das
publicações científicas. Em muitos países, e particularmente no Brasil, as
universidades privadas passaram a ser propriedade de grupos transnacionais que
trazem a visão corporativa no seu bojo. A dinâmica é particularmente sensível
nos estudos de economia. Helena Ribeiro traz um exemplo desta deformação
profunda do ensino na universidade Notre Dame de Nova York. “Dado que corria o
ano de 2009 e o mundo financeiro entrava em colapso aos olhos de todos, os
alunos pensaram que seria um excelente tema para debater na aula de
macroeconomia. A resposta do professor: “Os estudantes foram laconicamente
informados que o tema não constava do conteúdo programático da disciplina, nem
era mencionado na bibliografia afixada e que, por isso, o professor não
pretendia divergir da lição que estava planejada. E foi o que fez”. O artigo de
Ribeiro mostra as dimensões desta deformação, mas também os protestos dos
alunos e a multiplicação de centros alternativos de pesquisa econômica, como o New
Economics Foundation, a Young Economists Network, o Institute of New Economics
Thinking e numerosas outras instituições.[12]
Menos percebido, mas igualmente importante, é a
oligopolização do controle das publicações científicas no mundo. Segundo estudo
canadense, “nas disciplinas das ciências sociais, que incluem especialidades
tais como sociologia, economia, antropologia, ciências políticas e estudos
urbanos, o processo é impressionante: enquanto os cinco maiores editores eram
responsáveis por 15% dos artigos em 1995, este valor atingiu 66% em 2013”.
Temos aqui o domínio impressionante de Reed-Elsevier (hoje boicotado por mais
de 15 mil cientistas americanos), Springer, Wiley-Blackwell, e poucos mais.
(Larivière, 2015)[13]
A este conjunto de mecanismos de captura do poder temos de
acrescentar a erosão radical da privacidade nas últimas décadas. Hoje o sangue
da nossa vida trafega em meios magnéticos, deixando rastros de tudo que
compramos ou lemos, da rede dos nossos amigos, os medicamentos que tomamos, o
nosso nível de endividamento. As empresas têm acesso à gravidez de uma
funcionária, através da compra de informações dos laboratórios. A defesa dos
grandes grupos de informação sobre as pessoas é de que se trata de informações
“anonimizadas”, mas a realidade é que os cruzamentos dos rastros eletrônicos
permitem individualizar perfeitamente as pessoas, influindo em potencial
perseguição política ou dificuldades no emprego. Mas o acesso às informações
confidenciais das empresas também fragiliza radicalmente grupos econômicos
menores frente aos gigantes, que podem ter acesso às comunicações internas. Não
se trata apenas de alto nível de espionagem, como se viu na gravação de
conversas de Dilma Roussef e Angela Merkel. Trata-se de todos nós, e com o
apoio de um sistema mundial de captura e tratamento de informações do porte da
NSA. O Big Brother is Watching You deixou de ser apenas literatura.[14]
A expansão dos lobbies, a compra dos políticos, a invasão do
judiciário, o controle dos sistemas de informação da sociedade, a manipulação
do ensino acadêmico e a invasão da privacidade representam alguns dos
instrumentos mais importantes da captura do poder político geral pelas grandes
corporações. Mas o conjunto destes instrumentos leva, em última instância, a um
mecanismo mais poderoso que os articula e lhe confere caráter sistêmico: a
apropriação dos próprios resultados da atividade econômica, por meio do
controle financeiro em pouquíssimas mãos.
Vejamos agora um pouco o que são estas grandes corporações.
É surpreendente, mas até 2012 não tínhamos nenhum estudo global de como
funciona a rede mundial de controle corporativo. O Instituto Federal Suíço de
Pesquisa Tecnológica, um tipo de MIT da Europa, selecionou 43 mil grupos
mundiais mais importantes e estudou em profundidade como se dá, através de
participações cruzadas e de fusões interempresariais, o controle do conjunto.
Chegou a uma cifra impressionante que mudou a visão que temos do sistema
econômico mundial: 737 grupos apenas controlam 80% do mundo corporativo, sendo
que nestes um núcleo de 147 controla 40%. Estes últimos gigantes são
essencialmente (75%) grupos financeiros. Ou seja, não precisam controlar
diretamente o processo decisório, seguram o sistema, digamos assim, pelas
partes delicadas, que é o acesso aos recursos. Um grupo tão limitado não
precisa fazer conspirações misteriosas, são pessoas que se conhecem no campo de
golfe ou no Open de Tênis da Austrália, se ajeitam confortavelmente entre si.
Os autores da pesquisa concluem claramente que falar em mecanismos de mercado
neste clube restrito não faz muito sentido.[15]
François Morin, assessor do banco central da França,
concentra a sua análise na forma como os 28 maiores gigantes financeiros se
articulam. Na análise estão todos: JPMorgan Chase, Bank of America, Citigroup,
HSBC, Deutsche Bank, Santander, Goldman Sachs e outros, com um balanço de mais
de 50 trilhões de dólares em 2012, quando o PIB mundial foi de 73 trilhões. A
relação com os Estados é particularmente interessante, pois a dívida pública
mundial, de 49 trilhões, está no mesmo nível que o faturamento dos 28 grupos
financeiros que Morin analisa, também da ordem de 50 trilhões. Os Estados,
fruto do endividamento público com gigantes privados, viraram reféns e
tornaram-se incapazes de regular este sistema financeiro em favor dos
interesses da sociedade. “Face aos Estados fragilizados pelo endividamento, o
poder dos grandes atores bancários privados parece escandaloso, em particular
se pensarmos que estes últimos estão, no essencial, na origem da crise
financeira, logo de uma boa parte do excessivo endividamento atual dos
Estados”. (Morin, 36)[16]
O poder político apropriado pelo mecanismo da dívida
constitui uma parte muito importante do mecanismo geral. Os grandes grupos
financeiros têm suficiente poder para impor a nomeação dos responsáveis em
postos chave como os bancos centrais ou os ministérios da fazenda, ou ainda nas
comissões parlamentares correspondentes, com pessoas da sua própria esfera,
transformando pressão externa em poder estrutural internalizado. A política
sugerida aos governos é de que é menos impopular endividar o governo do que
cobrar impostos. “Estas instituições financeiras são as donas da dívida do
governo, o que lhes confere poder ainda maior de alavancagem sobre as políticas
e prioridades dos governos. Exercendo este poder, elas tipicamente demandam a
mesma coisa: medidas de austeridade e ‘reformas estruturais’ destinadas a
favorecer uma economia de mercado neoliberal que em última instância beneficia
estes mesmos bancos e corporações”. É a armadilha da dívida. (Marshall)[17]
Os 28 controlam igualmente os chamados derivativos,
essencialmente especulação com variações de mercados futuros: o volume atingido
em 2015 é de mais de 600 trilhões de dólares, 8 vezes o PIB mundial. Se
pensarmos que tantos países aceitaram de reduzir os investimentos públicos e as
políticas sociais — inclusive o Brasil –, para satisfazer este pequeno mundo
financeiro, não há como não ver a dimensão política que o sistema assumiu. Os
grandes traders de commodities controlam nada menos que o comércio dos grãos
(milho, trigo, arroz, soja), os minerais metálicos, os minerais não metálicos e
os recursos energéticos, ou seja, o sangue da economia mundial. As gigantescas
variações dos preços do petróleo, por exemplo, não resultam de variações da
produção ou do consumo, muito estáveis na escala planetária, mas dos processos
especulativos dos gigantes financeiros.[18]
O sistema é hoje articulado. Um aporte particularmente forte
de François Morin é a análise de como este grupo de bancos foram se dotando, a
partir de 1995, de instrumentos de articulação, a GFMA (Global Financial
Markets Association), o IIF (Institute of International Finance), a ISDA
(International Swaps and Derivatives Association), a AFME (Association for
Financial Markets in Europe) e o CLS Bank (Continuous Linked Settlement System
Bank). Morin apresenta em tabelas como os maiores bancos se distribuem nestas
instituições. O IIF, por exemplo, “verdadeira cabeça pensante da finança
globalizada e dos maiores bancos internacionais”, constitui hoje um poder
político assumido: “O presidente do IIF tem um status oficial, reconhecido, que
o habilita a falar em nome dos grandes bancos. Poderíamos dizer que o IIF é o
parlamento dos bancos, seu presidente tem quase o papel de chefe de estado. Ele
faz parte dos grandes tomadores de decisão mundiais”. (Morin, 61)
Um instrumento particularmente importante deste poder reside
no uso dos paraísos fiscais, que a partir da crise de 2008 foram
suficientemente estudados para que tenhamos hoje os contornos do seu
funcionamento. Basicamente, para um PIB mundial da ordem de 73 trilhões de
dólares em 2012, o estoque de recursos financeiros em paraísos fiscais
situou-se entre 21 e 32 trilhões de dólares segundo a Tax Justice Network,
cifra que a revista Economist arredonda para 20 trilhões.[19] Para se ter uma
ideia dos valores, a grande decisão da cúpula mundial sobre o clima, em Paris
em 2015, foi de alocar até, 2020, 100 bilhões de dólares anuais para salvar o
planeta do aquecimento global: duzentas vezes menos do que está aplicado em
paraísos fiscais, capital improdutivo e em grande parte ilegal. Os arquivos do
Panamá abrem apenas uma janela do processo, mas mostram como dezenas de
milhares de corporações fictícias geraram o caos financeiro atual. [20]O caos
no sistema financeiro do Brasil é apenas um fragmento deste processo
mundial.[21]
Estes recursos são hoje vitalmente necessários para
financiar a reconversão tecnológica que nos permita de parar de destruir o
planeta e para assegurar a inclusão produtiva de bilhões de marginalizados,
reduzindo desigualdade que atingiu níveis explosivos. Com o grau presente de
captura do processo decisório sobre a alocação de recursos, privou-se os
Estados de qualquer controle: praticamente todas as grandes corporações têm
filiais ou empresas “laranja” nos paraísos fiscais, onde o dinheiro
simplesmente desaparece em termos formais, para reaparecer com nomes de outras
empresas, gerando um espaço “branco” onde o seguimento do fluxo financeiro se
interrompe, permitindo toda classe de ilegalidades, e em particular a evasão
fiscal e inúmeras atividades ilegais como o comércio de armas e drogas.[22]
Com o poder hoje muito mais na mão dos gigantes financeiros
do que das empresas produtoras de bens e serviços, estas últimas passaram a se
submeter a exigências de rentabilidade financeira que impossibilitam iniciativas,
no nível dos técnicos que conhecem os processos produtivos da economia real, de
preservar um mínimo de decência profissional e de ética corporativa. Temos
assim um caos em termos de discrepância com os interesses de desenvolvimento
econômico e social, mas um caos muito direcionado e lógico quando se trata de
assegurar um fluxo maior de recursos financeiros para o topo da hierarquia. A
sua competição caótica pode levar a crises sistêmicas, mas quando se trata de
travar iniciativas de controle ou regulação estas corporações reagem de forma
unida e organizada.
De que dimensões estamos falando? As corporações financeiras
classificadas no SIFI (Systemically Important Financial Institutions) trabalham
cada uma com um capital consolidado médio (consolidated assets) da ordem de
$1.82 trilhões para os bancos e $0,61 trilhões para as seguradoras analisadas.
Para efeitos de comparação lembremos que o PIB do Brasil, 7ª potência mundial,
é da ordem de $1,4 trilhões. Mais explícito ainda é lembrar que de acordo com os
dados de Jens Martens, o sistema das Nações Unidas dispõe de 40 bilhões dólares
anuais para o conjunto das suas atividades, o que por sua vez representa apenas
2,3% das despesas militares mundiais.[23]
Frente ao poder global das corporações, não temos instrumentos
públicos correspondentes. Pelo contrário: está sendo documentada a captura do
processo decisório da ONU pelos grupos mesmos corporativos. Estudo do Global
Policy Forum foca diretamente o fato dos interesses corporativos terem
adquirido uma influência desproporcional sobre as instituições que redigem as
regras globais. O documento apresenta “a crescente influência do setor
empresarial sobre o discurso político e a agenda”, questionando “se as
iniciativas de parcerias permitem que o setor corporativo e os seus grupos de
interesse exerçam uma influência crescente sobre a definição da agenda e o
processo decisório político dos governos”. Segundo Leonardo Bissio, “este livro
mostra como Big Tobacco, Big Soda, Big Pharma e Big Alcohol terminam prevalecendo,
e como a filantropia e as parcerias público-privadas deformam a agenda
internacional sem supervisão dos governos, mas também descreve claramente as
formas práticas para preveni-lo e para recuperar um multilateralismo baseado em
cidadãos”. (Martens, 1 e 9)
Em termos de mecanismos econômicos, é central na fase atual
a apropriação da mais-valia já não tanto nas unidades empresariais que pagam
mal os seus trabalhadores, mas crescentemente através de sistemas financeiros
que se apropriam do direito sobre o produto social através do endividamento
público e privado. Esta forma de mais-valia financeira tornou-se extremamente
poderosa. Frente aos novos mecanismos globais de exploração, que atuam em
escala planetária, e recorrem inclusive em grande escala aos refúgios nos
paraísos fiscais, os governos nacionais tornaram-se em grande parte impotentes.
Temos uma finança global descontrolada frente a um poder político fragmentado
em 195 nações, isto que o poder dentro das próprias nações, nas suas diversas
dimensões, está sendo em grande parte capturado. Tornámo-nos sistemicamente
disfuncionais.
Wolfgang Streeck traz uma interessante sistematização desta
captura do poder público no nível dos próprios governos. Por meio do
endividamento do Estado e dos o outros mecanismos vistos acima, gera-se um
processo em que o governo, cada vez mais, tem de prestar contas ao ‘mercado”,
virando as costas para a cidadania. Com isto, passa a dominar, para a
sobrevivência de um governo, não quanto está respondendo aos interesses da população
que o elegeu, e sim se o mercado, ou seja, essencialmente os interesses
financeiros, se sentem suficientemente satisfeitos para declará-lo ‘confiável’.
De certa forma, em vez de república, ou seja, res publica, passamos a ter uma
res mercatori, coisa do mercado. Um quadro resumo ajuda a entender o
deslocamento radical da política:[24] (81)
Naturalmente, um se financia através dos impostos, o outro
se financia através do crédito. Um governo passa assim a depender “de dois
ambientes que colocam demandas contraditórias sobre o seu comportamento”(80)
Entre a opinião pública sobre a qualidade do governo, e a ‘avaliação de risco’
deste mesmo governo deixar de pagar elevados juros sobre a sua dívida, a opção
de sobrevivência política cai cada vez mais para o lado do que qualificamos
misteriosamente de ‘os mercados’. Onde havia estado de bem-estar e políticas
sociais teremos austeridade e lucros financeiros. Não é secundária,
evidentemente, a transformação deste poder corporativo em sistemas tributários
que oneram proporcionalmente mais os que menos ganham. A força vira lei, o
estado vira instrumento de privatização dos próprios impostos. Segundo Streeck,
não é o fim do capitalismo, mas sim do capitalismo democrático.
A pesquisa e compreensão das novas articulações de poder são
indispensáveis para se entender os mecanismos e a escala radicalmente novos de
acumulação de riqueza nas mãos dos 0,01% da população mundial, e a espantosa
cifra de 62 bilionários que são donos de mais riqueza do que a metade mais pobre
da população mundial. Igualmente significativo é o fato da economia brasileira
estar em recessão quando os bancos Bradesco e Itaú, por exemplo viram seus
lucros declarados aumentarem entre 25% e 30% em 12 meses [25]. De certa forma,
ao analisarmos os mecanismos de captura do poder, estamos desvendando os canais
que permitem o dramático reforço da desigualdade entre e dentro das nações,
além do travamento do crescimento econômico pelo desvio dos recursos do
investimento para aplicações financeiras (26).
Restabelecer a regulação e o controle sobre estes gigantes
financeiros que passaram a reger a economia mundial e as decisões internas das
nações é hoje simplesmente pouco viável, tanto pela dimensão, como pela
estrutura organizacional sofisticada de que hoje dispõem, além evidentemente
dos sistemas de controle sobre a política, o judiciário, a mídia e a academia–
e portanto a opinião pública – conforme vimos acima. A dimensão internacional
aqui é crucial, pois a quase totalidade destes grupos é constituída por
corporações de base norte-americana ou da União Europeia. É a poderosa
materialização de um poder que é global mas no essencial pertencente ao que nos
temos acostumado a chamar de “Ocidente”. As tentativas de constituir um
contrapeso por meio da articulação dos BRICS mostram aqui toda a sua
fragilidade. O poder financeiro global tem nacionalidades, com governos
devidamente apropriados pelos mesmos grupos.
Se há uma coisa que não falta no mundo, são recursos. O
imenso avanço da produtividade planetária resulta essencialmente da revolução
tecnológica que vivemos. Mas não são os produtores destas transformações, desde
a pesquisa fundamental nas universidades públicas e as políticas públicas de
saúde, educação e infraestruturas, até os avanços técnicos nas empresas
efetivamente produtoras de bens e serviços, que levam vantagem: pelo contrário,
ambas as esferas, pública e empresarial, encontram-se endividadas nas mãos de
gigantes do sistema financeiro, que rendem fortunas a quem nunca produziu, e
que conseguem, ao juntar nas mãos os fios que controlam tanto o setor público
como o setor produtivo privado, nos desviar radicalmente do desenvolvimento
sustentável hoje vital para o mundo.
Quanto à população de um país como o Brasil, que busca
resgatar um pouco de soberania na sua posição periférica, o que parece restar é
um sentimento de impotência. Perplexas e endividadas, as famílias vêm aparecer
o seu “nome sujo” na Serasa-Experian – aliás uma multinacional – caso não
respeitem as regras do jogo. Na confusão das regras financeiras, contribuem
para a concentração de riqueza e de poder através dos altos juros que pagam nos
crediários e nos bancos, através dos juros surrealistas da dívida pública, e
através das políticas ditas de ‘austeridade’ que as privam dos seus direitos.
Estas regras do jogo profundamente deformadas serão naturalmente apresentadas
como fruto de um processo democrático e legítimo, pois está escrito na
Constituição que todo o poder emana do povo. A construção de processos
democráticos de controle e alocação de recursos constitui hoje um desafio
central. Boaventura de Souza Santos fala muito justamente na necessidade de
aprofundar a democracia. Mas na realidade, precisamos mesmo é resgatá-la da
caricatura que se tornou.
_____________________________
[1] Uma visão mais detalhada da análise apresentada no
presente artigo pode ser encontrada em Governança Corporativa,
http://dowbor.org/2015/11/ladislau-dowbor-o-caotico-poder-dos-gigantes-financeiros-novembro-2015-16p.html/
; a dimensão propriamente brasileira da deformação financeira encontra-se em
Juros Extorsivos no Brasil, Ética Editora, Imperatriz, 2016,
http://dowbor.org/blog/wp-content/uploads/2012/06/Dowbor-Juros-_pdf-com-capa.pdf
[2] Octávio Ianni – A política mudou de lugar – capítulo do
livro Desafios da Globalização, L. Dowbor, O. Ianni e P. Resende (Orgs.), ed. Vozes, Petrópolis, 2003.
[3] Joris
Luyendijk – Swimming with sharks – Guardian Books, London, 2015
http://www.theguardian.com/business/2015/sep/30/how-the-banks-ignored-lessons-of-crash
[4] The
Guardian, Revealed: How Google enlisted members of the US Congress
http://www.theguardian.com/world/2015/dec/17/google-lobbyists-congress-antitrust-brussels-eu
[5] Joseph
Stiglitz – On Defending Human Rights – Geneva, 3 December 2013
http://www.ohchr.org/Documents/Issues/Business/ForumSession2/Statements/JosephStiglitz.doc
[6] Warren,
Elizabeth – Rigged Justice – Jan. 2016, 16 p. http://www.warren.senate.gov/files/documents/Rigged_Justice_2016.pdf
and New York Times 29/01/2016
http://www.nytimes.com/2016/01/29/opinion/elizabeth-warren-one-way-to-rebuild-our-institutions.html?_r=0
[7]
Monbiot, George – A global ban on leftwing politics”, in How Did we Get into
this Mess, Verso, London, New York, 2016 –
http://www.monbiot.com/2013/11/04/a-global-ban-on-left-wing-politics/
[8]
Provost, Claire and Matt Kennard – The obscure legal system that lets
corporations sue countries – The Guardian, June 2015 – https://www.google.com/url?q=http://www.theguardian.com/business/2015/jun/10/obscure-legal-system-lets-corportations-sue-states-ttip-icsid&sa=U&ved=0ahUKEwid0aacve3JAhWJXR4KHXkHAv4QFggFMAA&client=internal-uds-cse&usg=AFQjCNE_bryAhhqokmP_TQPeoYdWUmYckQ
[9] Ver em particular o documentário Chomsky&Cia,
legendado em português, https://www.youtube.com/watch?v=IHSe9FRGpJU
[10] James Hoggan – The Climate Cover-up: the cruzade to
deny global warming –ver
http://dowbor.org/2009/12/climate-cover-up-the-cruzade-to-deny-global-warming-2.html/
; sobre os financiadores, ver
http://dowbor.org/2010/04/petroleira-dos-eua-deu-us-50-mi-a-ceticos-do-clima-6.html/
; ver também o ver artigo de Jane Mayer The dark money of the Koch Brothers,
2016, http://www.truth-out.org/news/item/35450-the-dark-money-of-the-koch-brothers-is-the-tip-of-a-fully-integrated-network
[11] Ver o curto e excelente comentário de George Monbiot,
How did we get into this mess, no livro do mesmo nome – Verso, London/New York,
http://www.monbiot.com/2007/08/28/how-did-we-get-into-this-mess/
[12] Helena Ribeiro – Os protestos nas universidades por um
novo ensino da economia – Jornal dos Negócios, Lisboa, dezembro de 2013 –
http://dowbor.org/2013/12/helena-oliveira-o-protesto-nas-universidades-por-um-no-ensino-da-economia-dezembro-2013-3p.html/
[13] V.
Larivière, S. Haustein e P. Mongeon – The Oligopoly of Academic Publishers in
the Digital Era – PlosOne, 2015,
http://dowbor.org/2016/02/the-oligopoly-of-academic-publishers-in-the-digital-era-vincent-lariviere-stefanie-haustein-philippe-mongeon-published-june-10-2015-15p.html/
[14] Lane,
S. Frederick – The Naked Employee- AMACOM, New York, 2003
http://dowbor.org/2005/06/the-naked-employee-o-empregado-nu-privacidade-no-emprego.html/
[15] Vitali, Glattfelder e Battistoni, Zurich, 2011; Ver A
rede do poder corporativo mundial – 2012 –
http://dowbor.org/2012/02/a-rede-do-poder-corporativo-mundial-7.html/
[16] François Morin – L’hydre mondiale: l’oligopole bancaire
– http://dowbor.org/2015/09/francoismorin-lhydre-mondiale-loligopole-bancaire-lux-editeur-quebec-2015-165p-isbn-978-2-89596-199-4.html/
[17] Andrew
C. Marshall – Bank crimes pay under the thumb of the global financial
mafiocracy – Truthout, 8 Dec. 2015 –
http://www.truth-out.org/news/item/33942-bank-crimes-pay-under-the-thumb-of-the-global-financial-mafiocracy
[18] Sobre os derivativos e o poder dos traders de
commodities, ver o nossoProdutores, intermediários e consimidores, 2013,
http://dowbor.org/?s=produtores%2C+intermedi%C3%A1rios+e+consumidores
[19] Henry,
James – The Price of off-shore revisited – Tax Justice Network,
http://www.taxjustice.net/2014/01/17/price-offshore-revisited/
[20] ICIJ –
The Panama Papers – https://panamapapers.icij.org/
[21]
Barbara Adams and Jens Martens – Fit for whose purpose? – Global Policy Forum,
New York, Sept. 2015 –
https://www.globalpolicy.org/images/pdfs/images/pdfs/Fit_for_whose_purpose_online.pdf
[22] Um
excelente estudo destes mecanismos pode ser encontrado em Shaxson, Nicholas –
Treasure Islands: uncovering the damage of offshore banking and tax havens –
St. Martin’s Press, New York, 2011 –
http://dowbor.org/2015/10/nicholas-shaxson-treasure-islands-uncovering-the-damage-of-offshore-banking-and-tax-havens-st-martins-press-new-york-2011.html/
[22] Joseph
Stiglitz – On Defending Human Rights – Geneva, 3 December 2013
http://www.ohchr.org/Documents/Issues/Business/ForumSession2/Statements/JosephStiglitz.doc
[23]
Barbara Adams and Jens Martens – Fit for whose purpose? – Global Policy Forum,
New York, Sept. 2015 – https://www.globalpolicy.org/images/pdfs/images/pdfs/Fit_for_whose_purpose_online.pdf
[24]
Wolfgang Streeck, Buying time – Verso, London 2014 –
http://dowbor.org/category/dicas-de-leitura/
[25] Relativamente a 2013, os bancos Itaú e Bradesco tiveram
aumento nos lucros declarados de 30,2% e 25,9%, respectivamente. Ver o
relatório Dieese –
http://www.dieese.org.br/desempenhodosbancos/2015/desempenhoBancos2014.pdf