Chicago é, na
verdade, uma cidade única nas suas relações acirradas entre arte e arquitetura
Esta semana aconteceu a última aula do meu curso sobre a
canção brasileira na Universidade de Chicago.
O “Maracatu atômico”, de Nelson Jacobina e Jorge Mautner,
estava no centro das questões finais, na versão de Gilberto Gil e depois na de
Chico Science. No dia seguinte soube da morte de Jacobina, cuja discreta e
batalhada serenidade e cujas melodias sóbrias e potentes sempre me tocaram.
Fiquei feliz de que ele tivesse estado conosco, através dessa canção
profundamente afirmativa. Sei que ele venceu durante muito tempo a doença, para
além de todas as previsões médicas, simplesmente afirmando a vida, com arte.
Assim seja.
Aqui, sinto-me finalmente capaz de dizer alguma coisa sobre
a famosa e singular conformação arquitetônica e urbanística da cidade, depois
de dois meses e meio de convivência. Embora se compare Chicago, volta e meia,
com São Paulo, como metrópoles de empuxe industrial, algo da topografia e do
urbanismo se parece surpreendentemente com o Rio, descontadas as abissais e
montanhosas diferenças (isto é, descontados todos aqueles abismos e todas
aquelas montanhas, literais ou metafóricas, que são impensáveis aqui). Mas é
que Chicago se estende ao longo do Lago Michigan, lago-mar cuja borda é um
parque público que pega de ponta a ponta a extensão urbana, como se a cidade
fosse acompanhada em toda a linha por uma espécie de Aterro do Flamengo
modulado com a Lagoa Rodrigo de Freitas.
As vias expressas e as parkways americanas se confundem na
paisagem com vias de pedestres que passam por baixo ou por cima delas,
mostrando-se e escondendo-se em transições bucólicas que têm a água só
eventualmente como praia, e quase sempre como pano de fundo. É possível sair do
Hyde Park, ao sul, em direção ao norte, a pé ou de bicicleta, e ir vendo a
massa fina dos prédios do centro se mostrando em relances e aproximações
gradativas, num show de escalas e contraplanos que criam muitas situações antes
de passar pelo aquário, pelo planetário e chegar ao Millennium Park. O modelo é
o mesmo que gerou o Aterro de Reidy, Burle Marx e Lota Macedo Soares, além de
ser — o das parkways — uma das fontes explícitas do Plano Piloto de Brasília
por Lúcio Costa.
No Millennium Park, a enorme escultura de aço espelhado de
Anish Kapoor, nomeada “ Cloud Gate ” (“Portal Nuvem”), mas conhecida como “The
bean” (“O feijão”), faz o papel de um epicentro imaginário (se é que se pode
falar de epicentro numa cidade tão longilínea e reticulada como Chicago). E não
é fácil explicar por quê. Começa que nenhuma fotografia tinha me dado a
dimensão inusual dessa obra, pelos espaços e reflexos paradoxais que ela cria,
e pela maneira como se localiza em meio aos edifícios. Seria preciso explicar,
antes de mais nada, que Chicago é ela mesma um acontecimento arquitetônico:
incendiada quase completamente em 1871, foi reconstruída por jovens arquitetos
num momento de grandes saltos técnicos, como o domínio da tecnologia do
elevador, que liberou a construção de arranha-céus, e o domínio das estruturas
internas aos edifícios que permitiam com que se criassem grandes salões dentro
dele, como o Ganz Hall, projetado por Sullivan.
Esse paradigma inovador do fim do século XIX prosseguiu
através das residências pioneiras de Frank Lloyd Wright no início do século XX,
do surto de edifícios déco nos anos 1920 e 30, ligados, digamos, ao imaginário
da Gotham City, do “international style”, moderno, de Mies van der Rohe, nos
anos 1940 aos 60, da leva pós-moderna nos anos 1980. Na pouco notável produção
contemporânea, vale notar que o edifício Aqua Tower, de Jeanne Gang, em 2009,
recebe a influência explícita do Copan de Niemeyer na Avenida Ipiranga, em São
Paulo, e faz homenagens sutis a certos traços de estilo de Lina Bo Bardi.
Voltando à escultura de Anish Kapoor: sua superfície polida,
em forma de ovo que tivesse engolido uma fita de Moebius, espelha e suga para
dentro dela as imagens de tudo o que está à sua volta, os prédios de todas as
décadas, o céu, as nuvens, o sol, as árvores, as pessoas que se aproximam e que
se
distanciam . É
possível entrar por baixo dela, como se entrássemos num portal e num nicho
vertiginoso de imagens e autoimagens multiplicadas, estranhamente superficiais
e longínquas. Como um ovo, a escultura parece suspender o dilema da
interioridade e da exterioridade. Sua pele de aço tem o poder aparente de
engolir e de repelir as imagens, como se se apoderasse delas e as jogasse para
um espaço que é dentro e fora. Como se a escultura fosse ela mesma o cérebro em
que se refletem as imagens das coisas, inteiramente interiores e inteiramente
exteriores a ele.
O resultado é uma peça de entretenimento capaz de excitar
crianças e pelotões de turistas fotografantes e, ao mesmo tempo, nos colocar
diante de enigmas como o do caráter imaginário do real e o da nudez real das
imagens, cujo lugar é longe, perto, dentro, fora, superfície e nada. Essa
grande peça de aço inoxidável polido espelha a arquitetura da cidade à sua
volta, lançando-a para o lugar indeterminado em que a refrata na sua superfície
reluzente.
Chicago é, na verdade, uma cidade única nas suas relações
acirradas entre arte e arquitetura. E uma cidade campeã na defesa do espaço
público. É significativo que a terceira cidade norte-americana o seja, e que a
primeira, Nova York, tenha um enorme espaço público no centro de Manhattan, e
que a segunda, Los Angeles, seja a campeã mundial da privatização de todos os
espaços.
- JOSÉ MIGUEL WISNIK
O Globo.06/02/2012
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