sexta-feira, 6 de setembro de 2019

"O PÁSSARO RARO"




Coletânea de 86, que reúne contos com temática filosófica, marca a estréia de Gaarder na ficção

Obra é espelho sem as deformações de nosso miserável narcisismo

CÁSSIO STARLING CARLOS

EDITOR DO FOLHATEEN

A associação do nome do escritor norueguês Jostein Gaarder com literatura dirigida para o público infanto-juvenil parece quase automática desde o espetacular sucesso global alcançado por seu "O Mundo de Sofia". Antes de publicar seu best seller filosófico, Gaarder dedicara parte de sua produção literária especificamente para esse público.
O mesmo não se pode dizer de "O Pássaro Raro", sua estréia na ficção -no ano de 1986- que reúne dez contos cuja temática filosófica talvez seja demasiado difícil para o público que se deliciou com as aventuras de sua Sofia pelas veredas do pensamento ocidental.
Aqui, Gaarder impôs um autocontrole à sua lúcida pedagogia de professor de filosofia e se entregou à derivação literária com mais liberdade que em seus títulos posteriores.
A temática filosófica evidencia-se nos prólogos a cada um dos contos. Neles, uma "voz" oferece, a título de "enigma", uma questão, cujo desenvolvimento ficcional -ou, melhor dizendo, existencial, vital, posto que experimentado em corpo e alma pelos personagens- libera o Gaarder professor de filosofia das amarras da lógica e da fidelidade ao mundo das idéias.
Mesmo assim seu interesse continua sendo a necessidade de questionar. Por isso, o personagem de "O Crítico" serve de porta-voz para o autor quando afirma: "Deve haver uma espécie de mecanismo inato nos meus semelhantes que os impede de pensar que a vida é um mistério. Eles nasceram com um bloqueio na cabeça que não lhes permite pensar para além da porta da sua casa".
Os contos de "O Pássaro Raro" funcionam como um esboço do que Gaarder tentou -e acabou por conseguir- em "O Mundo de Sofia", ou seja, uma fusão entre a expressão e a difusão de idéias cuja matriz (ocidental, pelo menos) se encontra nos diálogos platônicos.
Porém aqui, a filosofia não parece ser um fim em si mesmo (o que dispensa o autor da ênfase pedagógica assumida em "O Mundo de Sofia"). Ela é, antes, um motor de enigmas que remete constantemente à vida. A prova disso é a presença recorrente de temas existenciais -a doença, o amor, o suicídio- que atravessa os dez contos de "O Pássaro Raro".
"O Diagnóstico" é o exemplo mais explícito, apesar de não ser o conto mais bem-sucedido da coleção. Nele, uma mulher, após receber o diagnóstico de câncer, retorna a suas origens e no caminho procede a uma espécie de "fusão universal": se esquece dos limites do seu corpo, perene, degradável, e alcança uma espécie de graça alimentada pela iminência da morte. O resultado é uma leitura que se constitui alegre e afirmativa da maldição cristã que condena peremptoriamente: "Do pó vieste, ao pó retornará".
Outro momento, mais brilhante e arriscado, é "Ponto de Encontro: Castel Sant'Angelo", no qual dois amantes tanto mais se aproximam quanto tentam aumentar a distância entre si após uma ruptura impensada. E cumprem à risca o destino que parece determinar cada passo das pessoas apaixonadas, capazes de repetir como autômatos a história trágica de casais como Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Tosca e Mario.
A leitura de "O Pássaro Raro" pode começar descompromissada, num canto qualquer de uma livraria confortável, mas tende a se tornar compulsiva em virtude de um bom motivo: aqui, encontramos um espelho sem as deformações que alimentam nosso miserável narcisismo.


O Pássaro Raro
Diagnosen Og Andre Noveller   
Autor: Jostein Gaarder
Tradutor: Sonali Bertuol
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 24 (208 págs.)

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