sexta-feira, 12 de julho de 2019


Tem gente que comemora condenação sem provas. Tem gente que comemora perda de direitos trabalhistas. Tem gente que comemora trabalhar mais pra ganhar menos ao se aposentar. Tem gente que comemora entrega do patrimônio público. Tem gente que comemora pobre na rua. Tem gente que comemora linchamento. Tem gente que comemora estupro...

Olha, tem muita gente estúpida no mundo!
Olw


Ser escritor não é vocação, chamado divino ou destino. Ser escritor é decisão. Em determinado momento da vida, geralmente depois da leitura de livros ou de um livro em especial, alguém decide ser escritor. E em cima dessa decisão, outras decisões são tomadas: um certa disciplina de leituras, estudo de línguas, determinada faculdade ou profissão -- tudo em função de favorecer a opção fundamental: tornar-se escritor. O escritor poderá a vir trabalhar como publicitário, jornalista, professor, advogado, o escambau, mas essa 'profissão' sempre será subsidiária diante da decisão maior de ser escritor. Ele pode até passar anos sem escrever, mas estará sempre acumulando forças para o grande livro que escreverá um dia. Mesmo quando ele está vivendo, ele não vive simplesmente pela vida. Ele vive para acumular experiências para enriquecer sua escritura. Nesse sentido ele vampiriza-se a si mesmo e aos outros. Ele pode estar na maior fossa, sozinho num quarto de hotel ou numa estação deserta, depois que seu amor o deixou -- e mesmo em meio a dor ele estará pensando: como posso transformar isso num poema ou na cena de um romance?
Assim, tornar-se escritor não é necessariamente decidir-se a escrever livros, mas orientar a sua vida de tal maneira que o objetivo de vir a escrever livros não seja prejudicado. Boa parte da energia libidinal do escritor será canalizada para este objetivo, às vezes a tal ponto que faltará energia para outras áreas vitais. Não é que o escritor esteja condenado a ser um fracassado na vida, mas suas energias estão voltadas de tal maneira para sua decisão que chegam a faltar em outras áreas, muitas vezes mais necessárias na luta cotidiana pela vida. Quem não entende isso, não sente isso, pode até escrever livros e ser reconhecido socialmente como escritor, mas nunca o será de fato. Muitos podem alegar que há aqui uma certa herança do cristianismo e de suas ideias de sacrifício e abnegação. Não nego. A literatura não é um evento solto no ar da não-história. A literatura é fruto de uma longa construção histórica que teve suas raízes lá na Grécia antiga e cuja configuração atual se determinou em algum momento entre os séculos XVIII e XIX. Faz parte dessa construção a ideia de que o escritor é um santo sem fé num mundo sem deuses cujo último sucedâneo do sagrado não é necessariamente o fetichismo do livro literário mas o própria decisão de tornar-se escritor. E se a literatura perdeu sua relevância no mundo contemporâneo, este gesto só se reveste de maior heroísmo ainda. E só o herói é belo.

Otto Leopoldo Winck


Jesus nasceu sem teto, trabalhou como carpinteiro numa humilde aldeia da Galileia, periferia da Palestina. Em seu ministério, conviveu com ladrões, corruptos e prostitutas. Não ligava muito para os preceitos religiosos, pois "trabalhava" no sábado, curando os aflitos e oprimidos. Por fim, condenado pelo Império, é executado entre dois ladrões, na ignomínia de uma cruz. Agora, dizer-se seguidor desse cara e ser intolerante para com toda diferença, é uma contradição que nunca vai entrar na minha cabeça.

OLW


Estamos testemunhando a destruição de um país.

Destruição de sua democracia, de sua economia, de seu povo, de suas esperanças.

O que nos aguarda no futuro, a continuar nesse passo, é um Estado policial, para conter a multidão de miseráveis, enquanto a “elite”, sócia minoritária do capital transnacional, desfruta do sol de Miami.

Há, nessa destruição deliberada, uma boa participação dos interesses de fora, mas essa destruição não seria possível sem a colaboração ativa dos locais.

Empresariado predatório, classe política vendida, mídia amoral, cúpula militar arrivista.

Sem esquecer, claro, de 58 milhões de pessoas estúpidas e perversas, que colaboram para sua própria tragédia a fim de satisfazer sua maldade.


Luis Felipe Miguel


A ideologia capitalista é tão bem sucedida que toda a ira e frustração ocasionadas pela exploração são canalizadas contra aqueles que justamente tentam minorar essa exploração...

OLW

IMPREVIDÊNCIA


" Essa 'reforma da Previdência' (sempre entre aspas porque não é reforma nem será Previdência) é cruel sob vários aspectos, mas um deles me chama mais atenção: sob a falsa aparência de que as novas regras correspondem a critérios técnicos, cálculos precisos e medidas urgentes para salvar, no presente, o futuro da Previdência, vende-se a ilusão de que as instituições deste país (todo o Estado e, dentro dele, o INSS) estarão de pé, sadias e cumprindo os compromissos hoje assumidos daqui a 20, 40, 60 anos. Quem dorme nesse papo? Eu, por exemplo, se der tudo certo no caminho, completarei 65 anos em 3 de dezembro de 2041. Se der tudo muito certo mesmo, daqui até lá terei contribuído cerca de 45 anos para minha aposentadoria. Eu não consigo imaginar como estarei aos 65 anos, mas não ligo para isso. Perco o sono, no entanto, ao pensar sobre o que chamaremos de 'país' e 'mundo' em 2041. Na verdade, já me desespera pensar sobre que país e que mundo teremos em 2020 (ou hoje mesmo!). É um luxo sonhar com 2041, fazer planos daqui até lá, no país em que não se pode sequer dormir -- literal e figurativamente. O atual 'governo' nos mostra, em todos os seus atos, que estamos cercados pela morte (dos agrotóxicos às armas de fogo nas mãos dos nossos vizinhos, da truculência oficial ao agravamento das injustiças sociais). É o último 'governo' que pode prometer algo (bom) para o nosso futuro, nem para hoje ou amanhã."

Tarso de Melo

Árvore da memória



Rosmarie Waldrop, no livro Split Infinites
Tradução Marcelo Lotufo


E EM SEGUNDO LUGAR, na Alemanha

Meu primeiro dia na escola , setembro de 1941, dia show de bola. O tempo não passava, mas era conduzido ao cérebro. Me ensinaram. A saudação nazista, brincar de flautista. Quão firmemente entrincheiradas, as velhas teorias. Já usando papel, caneta e tinta. Sim, eu disse, estou aqui.

Eu tinha seis ou sete anões, a branca era de neve, o príncipe estava em guerra. Hitler no rádio, seguido por Léhar. Sentidos impingiam-se. Apagões, sirenes, colchões no chão, visitantes ou fantasmas furtivos.

E mamãe furiosa. Sirenes. Silvos. O gato. Minha irmã gritou como nunca. Sua amiga. Com medo de olhar. O que eu sabia sobre trabalho forçado ou trabalho de parto? Dos interiores profundos do corpo? Eu tinha aprendido a andar de bicicleta.

O gato preto. A neve branca, a flor azul. Uma ameaça de uma cor diferente. Movimento uniforme em velocidade inultrapassável. Nada fastidioso. Nada necessário o preenchimento de substâncias no âmago profundo.

Mãe, eu gritei, extremamente. E o lobo. Passando pela neve eu estava dentro de casa em, lã puxada sobre os meus olhos. O lobo. O menino que não gritou ‘olha o lobo’ também morreu. Aberturas crepusculares.

Testa honesta. Cabelos negros. Mãos parcimoniosamente sobre os joelhos. Uma menina polonesa. Na Alemanha? Na guerra? Movendo-se velozmente pelo ar entre nós, uma imagem contínua. Chega de medo de gato preto, sinos (assassinos, ferinos), de sirenes, silvos de bombas.

*

Uma longa vida aprendendo sobre o capítulo anterior. Que minha alma está de calça jeans, minha mãe dando à luz, meu banco de esperanças na Alemanha, leste de expectativas, oeste de ainda esperando. Na cama com um antídoto.

Comendo da árvore. Folhas caindo antes da queda. Por um buraco na memória. A fruta enruga novos problemas, mas não extingue. O pomar há muito abandonado.

*


Traduzindo Brecht



Franco Fortini
Tradução Cláudia Alves


Um grande temporal,
durante toda a tarde, retorceu-se
por cima dos telhados antes de se romper em relâmpagos, água.
Eu fitava versos de cimento e de vidro
onde havia gritaria e escaras muradas e membros
também meus, aos quais sobrevivo. Com cautela, olhando
ora as telhas batalhadas, ora a página seca,
eu escutava morrer
a palavra de um poeta ou transformar-se
em outra, não mais por nós, voz. Os oprimidos
estão oprimidos e tranquilos, os opressores tranquilos
falam ao telefone, o ódio é educado, eu mesmo
acredito não saber mais de quem é a culpa.

Escreva, digo a mim mesmo, odeia
quem com doçura guia ao nada
os homens e as mulheres que te acompanham
e acreditam não saber. Entre os inimigos
escreva também o teu nome. O temporal
dissipou-se com ênfase. A natureza
ao imitar as batalhas é muito fraca. A poesia
não muda nada. Nada é certo, mas escreva.

(Una volta per sempre, 1963)

*

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Amar hasta fracasar (solo la vocal “a”)



Hablábamos varios hombres de letras de las cosas curiosas que, desde griegos y latinos, han hecho ingenios risueños, pacientes o desocupados, con el lenguaje. Versos que se pueden leer al revés tanto como al derecho, guardando siempre el mismo sentido, acrósticos arrevesados, en losange; y luego, prosas en que se suprimiera una de las vocales, en largos cuentos castellanos.

Entonces yo les hablé de una curiosidad, en verdad de las más peregrinas, que hice insertar, siendo muy joven, en una revista que dirigía, allá en la lejana Nicaragua, un mi íntimo amigo. Es un cuento corto, en el cual no se suprime una vocal, sino cuatro. Vais a leerlo. No encontraréis otra vocal más que la a. Y os mantendrá con la boca abierta. ¿Su autor?, sudamericano, seguramente, quizás antillano, posiblemente de Colombia. Ignoro e ignoré siempre su nombre. He aquí la lucubración a que me refiero:



AMAR HASTA FRACASAR

Trazada para la A

La Habana aclamaba a Ana, la dama más agarbada, más afamada. Amaba a Ana Blas, galán asaz cabal, tal amaba Chactas a Atala.

Ya pasaban largas albas para Ana, para Blas; mas nada alcanzaban. Casar trataban; mas hallaban avaras a las hadas, para dar grata andanza a tal plan.

La plaza, llamada Armas, daba casa a la dama; Blas la hablaba cada mañana; mas la mamá, llamada Marta Albar, nada alcanzaba. La tal mamá trataba jamás casar a Ana hasta hallar gran galán, casa alta, ancha arca para apañar larga plata, para agarrar adahalas1. ¡Bravas agallas! ¿Mas bastaba tal cábala?. Nada ¡ca! ¡nada basta a tajar la llamada aflamada!

Ana alzaba la cama al aclarar; Blas la hallaba ya parada a la bajada. Las gradas callaban las alharacas adaptadas a almas tan abrasadas. Allá, halagadas faz a faz, pactaban hasta la parca amar Blas a Ana, Ana a Blas. ¡Ah ráfagas claras bajadas a las almas arrastradas a amar!. Gratas pasan para apalambrarlas2 más, para clavar la azagaya3 al alma. ¡Ya nada habrá capaz a arrancarla!.

Pasaban las añadas4. Acabada la marcada para dar Blas a Ana las sagradas arras, trataban hablar a Marta para afrancar5 a Ana, hablar al abad, abastar saya, manta, sábanas, cama, alhajar casa ¡ca! ¡nada faltaba para andar al altar!

Mas la mañana marcada, trata Marta ¡mala andanza! pasar a Santa Clara al alba, para clamar a la santa adaptada al galán para Ana. Agarrada bajaba ya las gradas; mas ¡caramba! halla a Ana abrazada a Blas, cara a cara. ¡Ah! la a nada basta para trazar la zambra armada. Marta araña a Ana, tal arañan las gatas a las ratas; Blas la ampara; para parar las brazadas a Marta, agárrala la saya. Marta lanza las palabras más malas a más alta garganta. Al azar pasan atalayas, alarmadas a tal algazara, atalantadas a las palabras:

-¡Acá! ¡Acá! ¡Atrapad al canalla mata-damas! ¡Amarrad al rapaz!

Van a la casa: Blas arranca tablas a las gradas para lanzar a la armada; mas nada hará para tantas armas blancas. Clama, apalabra, aclara ¡vanas palabras! Nada alcanza. Amarran a Blas. Marta manda a Ana para Santa Clara; Blas va a la cabaña. ¡Ah! ¡Mañana fatal!

¡Bárbara Marta! Avara bajasa6 al atrancar a Ana tras las barbacanas sagradas (algar7 fatal para damas blandas). ¿Trataba alcanzar paz a Ana? ¡Ca! ¡Asparla8, alafagarla, matarla! Tal trataba la malvada Marta. Ana, cada alba, amaba más a Blas; cada alba más aflatada, aflacaba más. Blas, a la banda allá la mar, tras Casa Blanca, asayaba9 a la par gran mal; a la par balaba10 allanar las barras para atacar la alfana11, sacar la amada, hablarla, abrazarla…

Ha ya largas mañanas trama Blas la alcaldada: para tal, habla. Al rayar la alba al atalaya, da plata, saltan las barras, avanza a la playa. La lancha, ya aparada12 pasa al galán a La Habana. ¡Ya la has amanada13 gran Blas; ya vas a agarrar la aldaba para llamar a Ana! ¡Ah! ¡Avanza, galán, avanza! Clama alas al alcatraz, patas al alazán ¡avanza, galán, avanza!

Mas para nada alcanzará la llamada: atafagarán14 más la tapada, taparanla más. Aplaza la hazaña.

Blas la aplaza; para apartar malandanza, trata hablar a Ana para Ana nada más. Para tal alcanzar, canta a garganta baja:

La barca lanzada
allá al ancha mar
arrastra a La Habana
canalla rapaz.
Al tal, mata-damas
llamaban asaz,
mas jamás las mata,
las ha para amar.
Fallas las amarras
hará tal galán,
ca, brava alabarda
llaman a la mar.
Las alas, la aljaba,
la azagaya…¡Bah!
nada, nada basta
a tal batallar.
Ah, marcha, alma Atala
a dar grata paz,
a dar grata andanza
a Chactas acá.

Acabada la cantata Blas anda para acá, para allá, para nada alarmar al adra15. Ana agradada a las palabras cantadas salta la cama. La dama la da al galán. Afanada llama a ña Blas, aya16 parda. Ña Blasa, zampada a la larga, nada alcanza la tal llamada; para alzarla, Ana la jala las pasas. La aya habla, Ana la acalla; habla más; la da alhajas para ablandarla. Blasa las agarra. Blanda ya, para acabar, la parda da franca bajada a Ana para la sala magna. Ya allá, Ana zafa aldaba tras aldaba hasta dar a la plaza. Allá anda Blas. ¡Para, para, Blas!

Atrás va Ana. ¡Ya llama! ¡Avanza, galán avanza! Clama alas al alcatraz, patas al alazán. ¡Avanza, galán, avanza!

-¡Amada Ana!..

-¡Blas!…

-¡Ya jamás apartarán a Blas para Ana!

-¡Ah! ¡Jamás!

-¡Alma amada!

-¡Abraza a Ana hasta matarla!

-¡¡Abraza a Blas hasta lanzar la alma!!…

A la mañana tras la pasada, alzaba ancla para Málaga la fragata Atlas. La cámara daba lar para Blas, para Ana…

Faltaba ya nada para anclar; mas la mar brava, brava, lanza a la playa la fragata: la vara.

La mar trabaja las bandas: mas brava, arranca tablas al tajamar; nada basta a salvar la fragata. ¡Ah tantas almas lanzadas al mar, ya agarradas a tablas claman, ya nadan para ganar la playa! Blas nada para acá, para allá, para hallar a Ana, para salvarla. ¡Ah tantas brazadas, tan gran afán para nada, hállala, mas la halla ya matada! ¡¡¡Matada!!!… Al palpar tan gran mal nada bala ya, nada trata alcanzar. Abraza a la ama:

-¡Amar hasta fracasar! -clama…

Ambas almas abrazadas bajan a la nada17. La mar traga a Ana, traga a Blas, traga más…¡Ca! ya Ana hablaba a Blas para pañal, para fajas, para zarandajas. ¡Mamá, ya, acababa Ana. Papá, ya, acababa Blas!…

Nada habla La Habana para sacar a la plaza a Marta, tras las pasadas; mas la palma canta hartas hazañas para cardarla la lana.

Et voilà. ¿Quién me dirá el nombre del autor?

Rubén Darío

FIN

Mundial Magazine,
París, 1913
1. Adahalas, lo mismo que adehalas.
2. Apalambrar, incendiar.
3. Azagaya, dardo.
4. Añadas, el tiempo de un año.
5. Afrancar, dar libertad, licencia.
6. Bajasa, mujer mala (El Diccionario de la Academia no la trae).
7. Algar, caverna o cueva.
8. Aspar, atormentar.
9. Asayar, experimentar.
10. Balar, desear ardientemente.
11. Alfana, iglesia. Voz de la germanía.
12. Aparar, preparar.
13. Amanar, poner a la mano. Ya la tienes a mano
14. Atafagar, fatigar, sofocar.
15. Adra, porción de un barrio, barriada.
16. Aya, se dice vulgarmente de las criadas de razón.
17. Almas por cuerpos, Dios me libre de la impiedad.

Agradecemos a Carlos Moya Moradas su aportación de este cuento a la Biblioteca Digital Ciudad Seva.

Biblioteca Digital Ciudad Seva

quarta-feira, 10 de julho de 2019


"Se você olhar atentamente você verá que existe apenas uma coisa e somente uma coisa que causa infelicidade. O nome desta coisa é apego. O que é apego? Um estado emocional de aderência causado pela crença de que sem alguma coisa particular ou alguma pessoa você não consegue ser feliz."

-- Anthony de Mello

terça-feira, 9 de julho de 2019


Pobre ego! Você não sabe que é uma ilusão, um mero centro fictício dividido entre tantos e tão contraditórios apelos... De um lado, o Id te convoca a permanecer na cama, curtindo uma preguiça, e só fazer o que te é agradável. De outro, o superego, como um feitor de chicote em punho, te chamando de vagabundo, gritando para você se levantar logo desta cama e cumprir com tuas obrigações... Não é fácil se equilibrar entre esses dois e irreconciliáveis carrascos, entre Eros e Tânatos, entre o Princípio do Prazer e o Princípio da Realidade, entre o dever lá fora e a cama quente aqui dentro... Não é a toa que às vezes bate aquele cansaço e pinta então aquela nostalgia do não-ser, do útero materno, do paraíso perdido...
Sobre esta base arquetípica -- Id e superego, Dionísio e Apolo --, similar em todos, há ainda um dicotomia que está na raiz do ser humano ocidental. Há em nosso cérebro um Sócrates e um São Paulo, um grego e um hebreu, um filósofo e um anacoreta -- e eles nunca chegarão a um acordo. A cada dia que me levanto, além da briga acirrada ente Id e superego, tem esses dois que não param de discutir... Não, não sou clássico. Não posso ser clássico, arcádico, parnasiano, ainda que eu quisesse... Depois da Idade Média, não se pode retroceder impunemente à Antiguidade. Com efeito, dentro de mim há uma ágora, onde os filósofos -- estoicos, epicuristas e céticos -- se deblateram eternamente, mas sempre com elegância e educação. No entanto, há também uma catedral gótica, cheia de gárgulas, mosaicos e vitrais -- e visagens de santos e virgens em êxtase... Entre os tamborins das festas helênicas e o órgão solene que brota da catedral sombria, minha alma se dilacera. Por isso eu digo: eu sou barroco, uma encruzilhada de caminhos que levam a múltiplas direções, um feixe de fibras que se cruzam em inúmeros sentidos... Entre céu e lama, luz e trevas, beatitude e maldição, Santo Agostinho e Aristóteles, estou condenado a não ter paz enquanto caminhar sobre esta Terra desolada e sob este Sol impassível. Mas é justamente esta inquietude, esta angústia que é criadora, geradora de estrelas bailarinas. É preciso um caos para criar um cosmos. Se o preço da paz interior é a apatia, eu prefiro este vulcão permanente dentro de mim. Em vez da bonança e da paz da Arcádia, o ímpeto e a tempestade. Mesmo sabendo que sou -- meu ego, este que escreve, ou acha que escreve este texto -- uma ilusão. Ou por isso mesmo.

Otto Leopoldo Winck



Ser escritor não é uma questão de vocação ou de chamado. Os deuses e as musas estão mortos. Ser escritor é uma questão de decisão, uma decisão que se renova toda dia, contra tudo, contra todos, contra si mesmo. É como ser um santo sem fé num mundo sem heróis. Você nunca será recompensado nem mesmo compreendido. Nem é isso que você busca.
Olw


Viver em função da escrita não é necessariamente escrever sempre. Às vezes são importantes longos hiatos sem escrita alguma. Viver em função da escrita é sobretudo viver em função do que se pretende escrever, ainda que esse escrever esteja num futuro remoto. Viver em função da escrita é viver em função desse desejo; é viver na condição de que a vida, ou parte dela, venha a se converter em escrita -- e esta escrita dê alguma ilusão de sentido à vida que não tem sentido nenhum.

Olw


“Nossa existência não é mais que um curto circuito de luz entre duas eternidades de escuridão.”

Vladimir Nabókov

Pequena lição de economia contemporânea.




Em 1703, o embaixador britânico John Methuen e o Marquês de Alegrete, representando o Reino de Portugal, firmaram o tratado que passou à história com o nome do primeiro.

O tratado é um documento curto, de meia dúzia de linhas. Determina que Portugal não cobrará impostos de importação de têxteis ingleses. Em troca, a Inglaterra não cobraria impostos dos vinhos portugueses.

O volume de exportação dos "panos" ingleses para Portugal era muitas vezes maior que o volume de exportação de vinhos portugueses para a Inglaterra. Mas essa nem foi a mais grave consequência do tratado.

Ele matou a nascente indústria têxtil portuguesa - lembrando que, na época, a indústria têxtil era o carro-chefe da industrialização. Quanto à indústria vinícola inglesa, ela não existia nem poderia existir, até por questões climáticas.

É possível elencar muitas razões para a decadência e o atraso de Portugal a partir do século XVIII. Em qualquer listagem, porém, o tratado de Methuen aparece com destaque.

Não foi ruim para todos, claro. O Marquês de Alegrete, que foi o principal negociador português do tratado, por exemplo, era um grande produtor de vinhos.

Luis Felipe Miguel

Bocas inútei


Bocas inúteis"
[ Contudo, no verão, houve novos protestos de cidadãos e os gaseamentos foram interrompidos. Foi um centro em instituição mental em Hadamar, perto de Limburg, que reavivou os protestos. As câmaras de gás tinham sido instaladas em uma ala de um antigo convento franciscano, e mais uma vez o embuste deu errado. Em junho de 1941 o bispo de Limburg escreveu:

" Várias vezes por semana chegam ônibus em Hadamar com um número considerável de vítimas. Os escolares dos arredores conhecem o veículo e comentam: 'Aí vem outra caixa da morte.' As crianças brigam e dizem umas as outras: 'Você é maluco, devia ser mandado para o forno de Hadamar.'' Ouvem-se os mais velhos comentarem: 'Não me mande para um hospital público. Quando os fracos da cabeça tiverem sido exterminados, os próximos inúteis serão os velhos.' " ] Ravensbrück, Sarah Helm

DUAS OBSERVAÇÕES
1 - é pra um soldado condecorado desse regime que se prestou 'homenagem'.
2 - a "reforma" da previdência é a forma moderna de eliminar "bocas inúteis" do neoliberalismo pauloguedista - com a vantagem de economizar o transporte, o gás e instalações incômodas; as pessoas morrem sozinhas em casa à míngua.

Roberto Pereira


"Essa é a condição da prosa para mim, ser outro quando escrevo, ou melhor, ser outro para escrever. (...) A literatura é um sonho dirigido. Sua condição, para mim, é eu deixar de ser quem supostamente sou. Como num sonho."

Ricardo Piglia, "Os anos felizes: o diários de Emilio Renzi", p. 117-118.

1964



Ya no es mágico el mundo. Te han dejado.
Ya no compartirás la clara luna
ni los lentos jardines. Ya no hay una
luna que no sea espejo del pasado,

cristal de soledad, sol de agonías.
Adiós las mutuas manos y las sienes
que acercaba el amor. Hoy sólo tienes
la fiel memoria y los desiertos días.

Nadie pierde (repites vanamente)
sino lo que no tiene y no ha tenido
nunca, pero no basta ser valiente

para aprender el arte del olvido.
Un símbolo, una rosa, te desgarra
y te puede matar una guitarra.

II

Ya no seré feliz. Tal vez no importa.
Hay tantas otras cosas en el mundo;
un instante cualquiera es más profundo
y diverso que el mar. La vida es corta

y aunque las horas son tan largas, una
oscura maravilla nos acecha,
la muerte, ese otro mar, esa otra flecha
que nos libra del sol y de la luna

y del amor. La dicha que me diste
y me quitaste debe ser borrada;
lo que era todo tiene que ser nada.

Sólo que me queda el goce de estar triste,
esa vana costumbre que me inclina
al Sur, a cierta puerta, a cierta esquina.


Jorge Luis Borges


"Para Proust, escrever é ler esse livro interior de signos desconhecidos. Não há Logos, só hieróglifos. Escrever é interpretar o que já está escrito e é ilegível."

Deleuze


"Na realidade, a literatura mostra o opacidade do mundo, nunca sabemos nada sobre as pessoas, mesmo aquelas que estão perto e que amamos, só sabemos o que elas nos dizem mas nunca o que pensam, porque sempre podem mentir; nesse sentido, lemos romances porque eles são o único modo de vermos uma pessoa por dentro. Eu conheço melhor Ana Kariênina do que a mulher com quem vivo há anos."

Ricardo Piglia, 'Os anos felizes: os diários de Emilio Renzi', p. 129.

Século Passado


"O problema é que a realidade presente no século XXI ,de globalização econômica e de pessoas ainda convive com uma ideologia do século passado no tratamento dos problemas decorrentes  disso "

Stephen Klineberg, sociólogo, um dos maiores especialistas em imigração nos Estados Unidos , dizendo que a explosão dos níveis de imigração pode originar tanto uma "bomba- relógio " como um tremendo patrimônio para os EUA , ontem na folha.

“ A fome deixa de ser um fato isolado ou ocasional e passa a ser um dado generalizado e permanente . Ela atinge  800 milhões de pessoas  espalhadas por todos  os continentes . Quando os progressos de a medicina  e da informação deviam autorizar uma redução substancial dos problemas de saúde sabemos que 14 milhões de pessoas morrem todos os dias , antes do quinto ano de vida.
Dois bilhões  de pessoas sobrevivem sem água potável . (...)O fenômeno dos sem-teto , curiosamente na primeira metade do século XX , hoje é um fato banal , presente em todas as grandes cidades do mundo . O desemprego é algo tornado comum (...) A pobreza também aumenta . No fim do século XX havia mais de 600 milhões de pobres  do que em 1960 ; e 1,4 bilhão de pessoas ganham menos de um dólar por dia . (...) O fato , porém , é que a pobreza , tanto quanto o desemprego , são considerados como algo “natural “ , inerente a seu próprio processo . Junto ao desemprego e à pobreza absoluta , registre-se o empobrecimento relativo de camadas cada vez maiores graças a deterioração do valor do trabalho. “


Milton Santos . in Por uma outra Globalização – do pensamento único à consciência universal . p 59 .

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Cuando lejos muy lejos…





Cuando lejos muy lejos, en hondos mares,
en lo mucho que sufro pienses a solas,
si exhalas un suspiro por mis pesares,
mándame ese suspiro sobre las olas.

Cuando el sol con sus rayos desde el oriente
rasgue las blondas gasas de las neblinas,
si una oración murmuras por el ausente,
deja que me la traigan las golondrinas.

Cuando la tarde pierda sus tristes galas,
y en cenizas se tornen las nubes rojas,
mándame un beso ardiente sobre las alas
de las brisas que juegan entre las hojas.

Que yo, cuando la noche tienda su manto,
yo, que llevo en el alma sus mudas huellas,
te enviaré, con mis quejas, un dulce canto
en la luz temblorosa de las estrellas!


 Julio Flórez. Colômbia 

Biblioteca Digital Ciudad Seva


segunda-feira, 1 de julho de 2019

No te salves




No te quedes inmóvil
al borde del camino
no congeles el júbilo
no quieras con desgana
no te salves ahora
ni nunca

no te salves

no te llenes de calma
no reserves del mundo
solo un rincón tranquilo
no dejes caer los párpados
pesados como juicios
no te quedes sin labios
no te duermas sin sueño
no te pienses sin sangre
no te juzgues sin tiempo

pero si

pese a todo no puedes evitarlo

y congelas el júbilo
y quieres con desgana
y te salvas ahora
y te llenas de calma
y reservas del mundo
solo un rincón tranquilo
y dejas caer los párpados
pesados como juicios
y te secas sin labios
y te duermes sin sueño
y te piensas sin sangre
y te juzgas sin tiempo
y te quedas inmóvil
al borde del camino
y te salvas

entonces

no te quedes conmigo.

Mario Benedetti

Biblioteca Digital Ciudad Seva


Elogio do Amaranto



 “mas, dormindo os homens, veio o seu inimigo, e semeou o joio no meio do trigo e retirou-se” Mateus 13: 24

            Vá um pesquisador estrangeiro buscar informações sobre o Mato Grosso do Sul na Internet e logo descobrirá que a área desse estado é maior que a Alemanha inteira, que foi desmembrado do Mato Grosso no dia 11 de outubro de 1977 e elevado à categoria de estado em 1º de janeiro de 1979. Isso depois de ter tentado emancipar-se de Mato Grosso durante a Revolução Constitucionalista de 1932, quando, entre julho e outubro, seus próceres criaram o efêmero estado de Maracaju. Caso ele queira ler as páginas dedicadas à Economia nos grandes jornais do país e nas revistas especializadas, aprenderá que o estado é um grande produtor de soja, e que essa produção é uma grande fonte de divisas para o nosso país, toneladas e toneladas que fazem grande diferença no equilíbrio e no saldo positivo da balança comercial brasileira. Mas se o tal pesquisador buscasse ouvir Gabriel Kaiowá, obteria dele informações nada ufanistas.
            Gabriel Kaiowá mora na comunidade do Pequizeiro que, há alguns anos atrás, era chamada de favela – quase nada mudou além do nome, porque ficou decidido que “favela” é um termo que pode ofender a autoestima dos moradores da área assim designada, e, logo, tantos os estudiosos das universidades quanto os jornalistas e os governantes aboliram o termo e o substituíram pela expressão “comunidade”, esquecendo-se que “comunidade” serve para designar também o conjunto de moradores de uma área nobre ou os praticantes de uma mesma fé que semanalmente se reúnem no mesmo templo. É essa, aliás, a grande utilidade dos eufemismos: disfarçar o que não queremos admitir, pois a chegada de uma nova designação para a área não veio acompanhada de água encanada, rede de esgoto, creches, postos de saúde, escolas, coleta de lixo e tantas outras intervenções do poder público necessárias à qualidade de vida de seus habitantes. A preocupação do Estado com a autoestima dos moradores do Pequizeiro não foi além da inauguração de um eufemismo.
            Mas, voltando a Gabriel Kaiowá, ele diria ao pesquisador que, onde hoje é a comunidade, que ninguém pode mais chamar de favela porque o Leviatã já permite ações por danos morais contra quem assim o fizer, havia uma aldeia habitada pela nação Guarani-Kaiowá, povo esse que tinha o pequi, fruta típica do Cerrado, como a base da sua alimentação. Contou-lhe seu avô, o pajé, que mora no mesmo barraco que ele, que, quando uma criança nascia, seu pai e seus avós plantavam cinquenta sementes de pequi, que cresceriam para se tornar árvores e garantir o sustento do recém-nascido. Ele mesmo plantara centenas de pequizeiros para sustentar os seus filhos, mas já não havia onde plantar quando nasceram Gabriel e seus outros netos, pois o homem branco já tinha se apossado das terras da tribo. As árvores plantadas em honra ao nascimento do pajé ainda estariam vivas e frutificando se o homem branco não as tivesse cortado para plantar soja para exportação. E se tivesse restado ao seu pai terras para plantar pequis para sustentar a ele e aos seus irmãos, Gabriel não teria que trabalhar tanto.
            O ano que passara fora bom para Gabriel, pois com o pouco de plantas nativas que ainda se encontram junto aos barracos da comunidade, conseguira produzir colares de sementes para vender aos peregrinos que, a caminho do Rio de Janeiro, para prestigiar a visita do recém-eleito papa Francisco, passavam pela cidade: não só gente do Paraguai e da Bolívia, mas até canadenses e japoneses em romaria se encantavam com seu artesanato. Na época da Jornada Mundial da Juventude – esse era o nome do evento do papa –, conseguira trabalhar menos, descansar e estudar mais e assim terminara com louvor o Ensino Médio.
            Depois da visita do papa, quando se foram os últimos peregrinos, voltara à rotina: acordar cedo para ir a pé até a escola, almoçar lá – não comer em casa é uma grande economia para a família – e procurar como arranjar dinheiro: engraxava sapatos, catava latinhas, vendia colares, pintava paredes, fazia todo tipo de trabalho braçal que encontrasse na cidade e, ao anoitecer, andava de volta até a comunidade. Foi nessa época que despontou seu carisma de líder: conseguiu persuadir quantos trabalhavam na comunidade para contribuírem para um fundo comum a fim de que se cavasse um poço artesiano para terem mais fácil acesso à agua. Depois, ensinou às mulheres a colocarem toda a água de que precisariam no dia seguinte em garrafas PET em cima de lonas pretas ao Sol: deixando assim o dia inteiro, o calor fazia a água ferver e matar quantas bactérias nocivas ali houvesse.
            No ano de 2014, ano eleitoral, Gabriel conseguiu um outro subemprego: cabo eleitoral. Passava todo o dia panfletando a candidatura de Naamã Felício a deputado federal e à noite dizia à comunidade para não votar em nenhum dos candidatos que pagavam aos jovens por seus serviços: os nababos que os assalariavam eram os mesmos que ocupavam as terras que antes tinham sido da tribo. Naamã prometia aos jovens que de tudo faria para gerar empregos na região e integrá-los ao mercado de trabalho, mas ele mesmo não fora prefeito sem nada fazer em prol dos indígenas? E se não houvesse tantos jovens desempregados, como exército de reserva, onde ele conseguiria quem aceitasse dinheiro para divulgar sua candidatura? Não, as ótimas notas de Gabriel nas aulas de Sociologia não lhe permitiam acreditar em Naamã ou em qualquer outro fazendeiro. As lembranças dessas aulas sempre o desafiavam a encontrar uma maneira de enfrentá-los, conjuntamente com os jovens da tribo. Mas, como, diante dos armamentos dos fazendeiros? – perguntava ele aos colegas, e as discussões terminavam com a turma cantando “Koangagua”, dos rappers indígenas da banda Brô MC’s, unânime referência na preservação da língua ancestral.
            A resposta para suas indagações veio uma tarde, quando ele e seus ex-colegas de escola, desempregados, conversavam na entrada da comunidade: um “gato” – capataz de fazendeiros, encarregado de procurar mão de obra barata para serviços esporádicos – propôs levá-los à fazenda de Naamã. O riquíssimo deputado, que valia-se de máquinas para semear e colher a soja em suas fazendas, gerando pouquíssimos empregos, agora precisava de muitas mãos para que adentrassem nas plantações e arrancassem, um a um, os pés de amaranto que ameaçavam a lavoura. O dinheiro oferecido era pouco mas a necessidade era maior, e assim Gabriel e os outros garotos da tribo aceitaram a oferta. O “gato” viria buscá-los num caminhão quando o Sol nascesse.
            A caminho da fazenda, Gabriel combinava com os amigos, em língua guarani:
 – Ouvi no rádio uma reportagem sobre essa planta invasora. Os fazendeiros creem que as primeiras sementes tenham chegado ao Brasil em máquinas de segunda mão que alguém comprou dos Estados Unidos. Essa planta é forte e resiste aos venenos que os fazendeiros usam contra outras plantas indesejáveis. No Tennessee, houve casos de fazendeiros que perderam toda a safra de soja porque a planta se alastrou, cresceu mais que os pés de soja e sugou a água e os nutrientes necessários à lavoura. Por isso, eles estão com medo que ela se espalhe pelo Brasil. Então, nós vamos lá arrancar essas plantas como eles mandaram, mas vamos esconder sementes delas nos nossos bolsos. E deixar cair algumas delas pelo caminho.
 – Por quê, Gabriel?
 – Josué, você lembra quando o professor de Sociologia exibia para a gente os filmes de Charles Chaplin?
 – Sim, a gente ria muito.
 – Lembra do filme “O Garoto”? Carlitos resolveu cuidar de um menino órfão. E para terem o que comer, o garoto jogava pedras nas vidraças e Carlitos chegava depois com os vidros para substituí-las. Do mesmo modo, não podemos deixar que o amaranto seja eliminado. Enquanto houver amaranto, eles terão que contratar gente para arrancá-lo das plantações, pois seus tratores e colheitadeiras não podem fazer isso sem destruir a soja. Enquanto houver amaranto, teremos trabalho a fazer.
De volta do trabalho, de posse das subversivas sementes, Gabriel decidiu que, no dia seguinte, iria à cidade pesquisar sobre a planta invasora. Todos os jovens passaram o dia esperando as novidades que ele lhes traria.
Ao cair da noite, Gabriel voltou e lhe deu as esperadas notícias:
 – Alvíssaras! O amaranto não é uma planta nociva nem venenosa. Aliás, é um alimento nutritivo. Era a base da alimentação dos incas. É como o caruru, aquela planta que os nordestinos usam na salada. Mas o agronegócio é burro demais para pensar nisso. Vamos plantar essas sementes junto aos nossos barracos, em nossa comunidade, e vamos usar suas folhas e seus grãos na nossa alimentação. E, de vez em quando, jogaremos sementes nas estradas, no pouco de mata que ainda resta. Nós não podemos invadir as fazendas para tomar de volta as terras que os fazendeiros roubaram do nosso povo, porque eles nos matariam com suas armas ou nos jogariam na cadeia. Mas onde nós não podemos entrar, o vento pode. Não há matador algum que atire no vento nem policial algum espancará as tempestades. O vento será nosso vingador. Quando o amaranto expulsar os fazendeiros daqui, entraremos lá e nos apossaremos das terras onde viveram nossos antepassados e novamente faremos grandes aldeias, e plantaremos cinquenta pequizeiros para cada criança que nascer.

(15 e 16 de janeiro de 2017)