Bernard Manin
Freqüentemente se afirma que a representação política está passando por uma
crise nos países ocidentais. Durante décadas, a representação parecia estar
fundamentada em uma forte e estável relação de confiança entre o eleitorado e
os partidos políticos; a grande maioria dos eleitores se identificava com um
partido e a ele se mantinha fiel. Hoje, porém, o eleitorado tende a votar de
modo diferente de uma eleição para a outra, e as pesquisas de opinião revelam
que tem aumentado o número dos eleitores que não se identificam com partido
algum. Até pouco tempo atrás, as diferenças entre os partidos pareciam um
reflexo das clivagens sociais. Mas hoje tem-se a impressão que são os partidos
que impõem à sociedade clivagens, cujo caráter "artificial" é
lastimado por alguns observadores. No passado, os partidos propunham aos
eleitores um programa político que se comprometiam a cumprir, caso chegassem ao
poder. Hoje, a estratégia eleitoral dos candidatos e dos partidos repousa, em
vez disso, na construção de imagens vagas que projetam a personalidade dos
líderes. As preferências dos cidadãos acerca de questões políticas expressam-se
cada vez mais freqüentemente por intermédio das pesquisas de opinião e das
organizações que visam fomentar um objetivo particular, mas não têm a intenção
de se tornar governo. A eleição de representantes já não parece um meio pelo
qual os cidadãos indicam as políticas que desejam ver executadas. Por último, a
arena política vem sendo progressivamente dominada por fatores técnicos que os
cidadãos não dominam. Os políticos chegam ao poder por causa de suas aptidões e
de sua experiência no uso dos meios de comunicação de massa, não porque estejam
próximos ou se assemelhem aos seus eleitores. O abismo entre o governo e a
sociedade, entre representantes e representados, parece estar aumentando.
Nos últimos dois séculos, o governo representativo passou por importantes
modificações, especialmente durante a segunda metade do século XIX. A mudança
mais evidente, que mais chamou a atenção dos historiadores do governo
representativo, diz respeito ao direito de voto: a propriedade e a cultura
deixaram de ser representadas e o direito ao sufrágio foi ampliado. Essa
mudança ocorreu paralelamente a uma outra: a emergência dos partidos de massa.
O governo representativo moderno foi instalado sem a presença de partidos
organizados, seguindo os exemplos das revoluções inglesa, americana e francesa.
A maioria dos fundadores do governo representativo chegava a pensar que a
divisão entre partidos ou "facções" era uma ameaça ao sistema que pretendiam
estabelecer.(1) A partir da segunda metade do século XIX, porém, a presença de
partidos políticos na organização da expressão da vontade do eleitorado passou
a ser vista como um componente essencial da democracia representativa. Além
disso, os programas políticos também tinham um papel de reduzida importância no
modelo original dos governos representativos: a própria idéia de plataforma
política era praticamente desconhecida no final do século XVIII e início do.
século XIX. Mas com o aparecimento dos partidos de massa, os programas
políticos passaram a ser um dos principais instrumentos da competição
eleitoral.
O aparecimento dos partidos de massa e de seus programas veio transformar a
própria relação de representação. A existência de partidos organizados
aproximava os representantes dos representados. Os candidatos passaram a ser
escolhidos pela organização partidária, na qual militantes de base tinham a
oportunidade de se manifestar. A massa do povo podia, assim, ter uma certa
participação na seleção de candidatos e escolher pessoas que compartilhassem de
sua situação econômica e de suas preocupações. Uma vez eleitos, os
representantes permaneciam em estreito contato com a organização pela qual se
elegeram, ficando, de fato, na dependência do partido. Isso permitia aos
militantes, ou seja, aos cidadãos comuns, manter um certo controle sobre seus
representantes fora dos períodos eleitorais. Apresentando-se diante dos
eleitores com um programa, os partidos pareciam dar aos próprios cidadãos a
possibilidade de determinar a política a ser seguida.
No final do século XIX, vários analistas interpretaram o novo papel dos
partidos e das plataformas políticas como sinal de uma crise da representação
(Ostrogorski, especialmente vol. I, p. 568). O protótipo do governo
representativo era, então, encontrado no "parlamentarismo" ou no
"parlamentarismo liberal", do qual o sistema inglês, na forma que
assumiu até cerca de 1870, era tido como o exemplo mais acabado.(2) No início
do século XX, multiplicaram-se as análises sobre uma "crise do
parlamentarismo".(3) Mas, com o tempo, tornou-se claro que, embora a
emergência de partidos de massa tivesse ocasionado a falência do
parlamentarismo, o governo representativo não estava agonizando. Alguns
observadores compreenderam que tinha surgido uma forma nova e viável de
representação. Esse novo modelo não foi definido por um conceito tão preciso
quanto o de parlamentarismo, e seu reconhecimento como fenômeno relativamente
estável e internamente coerente foi assinalado pela criação de dois termos
novos: "governo de partido", entre os analistas anglo-americanos, e
parteiendemokratie, entre os teóricos alemães. Cada um desses dois termos
visava reunir sob uma só denominação as características que distinguiam a nova forma
de governo representativo do modelo do parlamentarismo.
Foi possível, então, chegar a diversas conclusões. A maioria dos analistas
concordou com a idéia de que a nova forma de representação era radicalmente
diferente do parlamentarismo. Além disso, firmou-se a convicção de que a
relação de representação típica do parlamentarismo tinha sido substituída por
outra de novo formato, na qual o papel dos partidos de massa e das plataformas
políticas parecia ter evoluído como conseqüência da extensão do direito de voto.
Já que não se imaginava um retorno a padrões mais restritivos, concluiu-se que
a relação de representação tinha sido irreversivelmente modificada. Enfim,
ainda que alguns analistas lastimassem o declínio do parlamentarismo, o
surgimento de um novo formato de governo representativo foi entendido, de modo
geral, como um progresso, um indício de avanço da "democracia". Essa
percepção decorreu não só do fato de que o novo sistema acompanhava a extensão
do direito de voto, como também do tipo de relação de representação que
implicava. O "governo de partido" parecia criar uma maior identidade
social e cultural entre governantes e governados e parecia também dar aos
últimos um papel mais importante na definição da política pública. O governo
representativo parecia, assim, aproximar-se do ideal de autogoverno, do povo
governando a si mesmo. Esse progresso rumo à democracia, entendida como o
governo do povo pelo povo, chegou a ser interpretado como um prolongamento da
história dos Whigs ou, numa versão mais próxima de Tocqueville, como um degrau
no avanço inexorável dos direitos de igualdade e autonomia dos indivíduos, que
o "parlamentarismo liberal" realizava de modo imperfeito.
Há uma notável simetria entre a situação atual e a do final do século XIX e
início do século XX. Hoje, como então, a idéia de uma crise de representação é
um tema usual, o que nos leva a crer que estamos diante de uma crise que é
muito menos da representação como tal do que de uma forma particular de governo
representativo. Cabe, portanto, indagar se as mudanças que hoje atingem a
representação não estariam sinalizando a emergência de uma terceira forma de
governo representativo, tão estável e coerente quanto o modelo parlamentar e a
democracia de partido.
É ainda mais extraordinário que a chamada crise de representação atual seja
atribuída ao desaparecimento ou enfraquecimento daquelas mesmas características
que distinguiam a democracia de partido do parlamentarismo e que pareciam
aproximar a primeira de um governo do povo pelo povo. O que está atualmente em
declínio são as relações de identificação entre representantes e representados
e a determinação da política pública por parte do eleitorado. Isso sugere que
talvez existam semelhanças entre a forma de representação que hoje está
emergindo e o tipo de governo representativo que a democracia de partido teria
substituído definitivamente. A mudança que adveio no fim do século XIX talvez
tenha sido menos radical do que se imaginava.
Três tipos-ideais de governo representativo serão construídos neste ensaio:
o "parlamentar", a "democracia de partido" e a
"democracia do público" (ver Quadro na página 31).(4) Esses tipos
ideais não esgotam todas as formas possíveis de governo representativo, nem
mesmo todas as formas que ele assumiu na realidade. O estudo examina apenas os
modelos mais significativos e estáveis, sob o ângulo da relação de
representação que estabelecem. Em determinado ponto do tempo e em um dado país,
as várias modalidades de representação política aqui analisadas podem coexistir
e se fundir umas nas outras, mas, dependendo do tempo e do lugar, uma forma ou
outra predomina.
Os princípios do governo representativo
Examinando-se as origens do governo representativo à luz de sua história
posterior, percebe-se a existência de um certo número de princípios, formulados
no final do século XVIII, que praticamente nunca foram postos em questão desde
essa época. Ao me referir a "princípios" não estou falando de meras
abstrações ou ideais, e sim de idéias que se traduziram em práticas e
instituições concretas. Quatro princípios, entendidos dessa maneira, foram
formulados nos primeiros tempos do governo representativo moderno.
1) Os representantes são eleitos pelos governados
A natureza exata da representação tem sido objeto de muita controvérsia,
mas, de modo geral, há concordância no entendimento de que não existe
representação quando os governantes não são periodicamente eleitos pelos
governados. Eleições periódicas não têm como conseqüência uma identidade
rousseauniana entre governantes e governados por duas razões principais.
Em primeiro lugar, as eleições não eliminam a diferença de status e função
entre o povo e o governo. Em um sistema eletivo o povo não governa a si mesmo.
O processo eletivo resulta na atribuição de autoridade a determinados
indivíduos para que governem sobre outros: o poder não é conferido por direito
divino, nascimento, riqueza ou saber, mas unicamente pelo consentimento dos governados.
A eleição reflete o princípio fundamental do pensamento político moderno, de
que nenhum título de origem sobrenatural ou superioridade natural dá a uma
pessoa o direito de impor sua vontade a outras. A eleição é um método de
escolha dos que devem governar e de legitimação de seu poder.
Em segundo lugar, um sistema eletivo não requer que os governantes sejam
semelhantes àqueles que eles governam. Os representantes podem ser cidadãos
ilustres, social e culturalmente diferentes dos representados, contanto que o
povo consinta em colocá-los no poder. Um governo eletivo pode ser um governo de
elites, contanto que essas elites não exerçam o poder unicamente em função de
suas qualidades de distinção. Essa característica do processo eletivo torna-se
mais clara quando comparada com um outro método possível de escolha de
governantes, o sorteio(5). A indicação de autoridades públicas por sorteio
impõe obstáculos ao governo de elites e assegura que os governantes sejam
semelhantes aos demais cidadãos. Vale lembrar que, até o século XVIII, a
escolha por sorteio era tida como o procedimento democrático por excelência. O
fato de que os fundadores do governo representativo tenham escolhido a eleição,
e não o sorteio, como método legítimo de seleção de representantes mostra que
eles não viam incompatibilidade alguma entre representação e governo de elites.
É digno de nota, embora raramente tenha sido analisado, o fato de que ao longo
dos últimos dois séculos jamais tenha sido proposta a indicação de
representantes por meio de sorteio.
Portanto, um sistema eletivo não cria uma identidade entre os que governam e
os que são governados. Isso não significa que os cidadãos comuns têm apenas uma
posição subordinada no governo representativo. Embora o povo não governe, ele não
está confinado ao papel de designar e autorizar os que governam. Como o governo
representativo se fundamenta em eleições repetidas, o povo tem condições de
exercer uma certa influência sobre as decisões do governo: pode, por exemplo,
destituir os representantes cuja orientação não lhe agrade. Por outro lado, o
governo representativo pode ser um governo de elites, mas cabe aos cidadãos
comuns decidir que elite vai exercer o poder:
2) Os representantes conservam uma independência parcial diante das preferências
dos eleitores
Embora sejam escolhidos, e possam ser destituídos, pelos governados, os
representantes mantêm um certo grau de independência em suas decisões. Esse
princípio se traduz na rejeição de duas práticas que igualmente privariam os
representantes de qualquer autonomia de ação: os mandatos imperativos e a
revogabilidade permanente e discricionária dos eleitos, a
"recall".(6)Nenhum dos governos representativos instituídos desde o
final do século XVIII admitiu mandatos imperativos ou concedeu o estatuto de
obrigação legal às instruções dadas pelos eleitores. Nenhum deles tampouco
instituiu um sistema de permanente revogabilidade dos representantes.
Ao longo do século XVIII, firmou-se na Inglaterra a concepção de que os
deputados representam o conjunto da nação, e não o distrito eleitoral
específico que os elegeu. Os eleitores de cada distrito não estavam, portanto,
autorizados a lhes dar "instruções" (Pote, 1983, p. 103). No início
do século XIX, os radicais tentaram reintroduzir uma prática análoga à das
instruções, exigindo dos candidatos "promessas" (pledges) e, após o
First Reform Act, reivindicaram que a lei obrigasse ao cumprimento dessas
promessas. O principal objetivo dos radicais era reduzir o tamanho dos mandatos
parlamentares (que, desde o SeptennialAct, de 1716, era de sete anos). Ao que
parece, os radicais encaravam o sistema de pledges como um substituto vantajoso
para mandatos parlamentares mais curtos (Gash, 1971, p. 30). De sua parte,
Bentham (1983, vol. I, p. 26) mostrou-se particularmente contrário à prática
das instruções: o único mecanismo de influência dos eleitores sobre seus
representantes deveria ser o direito de não os reeleger. De qualquer modo, o
cumprimento das "promessas" eleitorais nunca foi imposto como obrigação
legal na Inglaterra.
A prática das instruções era extensamente disseminada nos Estados Unidos,
tanto durante o período colonial quanto nos dez primeiros anos após a
independência do país (Reid, 1989, pp. 1002). Alguns estados, sobretudo a Nova
Inglaterra, chegaram a incluir o direito de instrução em suas constituições.
Quando o First Congressional Congress (eleito de conformidade com a
Constituição de 1787) discutia o Bill of Rights, alguns de seus membros
propuseram que se acrescentasse à Primeira Emenda (que garante a liberdade de
religião e de expressão) o direito de dar instruções aos representantes. A
proposta foi longamente discutida, mas acabou sendo rejeitada.(7) Os eleitores
americanos continuaram livres para dar instruções como quisessem, mas estas não
teriam caráter de obrigação legal.
Na França, os delegados aos Estados-Gerais, inclusive os que foram
convocados em 1789, eram portadores de instruções (cahiers de doléances). Uma
das primeiras decisões dos revolucionários franceses, em julho de 1789, foi
proibir a prática dos mandatos imperativos. Essa decisão nunca foi posta em
questão durante ou após a Revolução. Em 1793-94, uma parte do movimento dos
sansculottes propôs que os eleitos fossem passíveis de perda do mandato, a
qualquer momento, por ato das assembléias eleitorais de base local. O projeto
de Constituição submetido à Assembléia Geral em 1793 previa esse sistema, mas
ele jamais foi posto em prática. Em 1870, o breve governo revolucionário da
Comuna de Paris instituiu um sistema de revogabilidade.
Na prática, é possível criar instituições e procedimentos que confiram ao
povo maior controle sobre seus representantes; disposições desse tipo chegaram
a ser propostas e eventualmente estabelecidas. Isso dá maior relevo ao fato de
que essas instituições e práticas tenham sido rejeitadas no final do século
XVIII por razões de princípio, e não de ordem prática, e que tal decisão jamais
tenha sido questionada. Promessas podiam ser feitas, programas podiam ser
apresentados, mas os representantes, sem exceção, mantiveram a liberdade de
decidir se deviam ou não cumpri-los. Sabendo que as eleições se repetiriam a
intervalos regulares, os representantes que haviam assumido compromissos
públicos podiam contar com dificuldades para se reeleger, caso não cumprissem as
promessas feitas. Contudo, eles tinham liberdade para sacrificar a perspectiva
de uma reeleição, caso circunstâncias excepcionais lhes impusessem prioridades
mais relevantes do que a carreira política. Mais importante ainda é que os
representantes podiam manter a esperança de que, numa nova candidatura, viessem
a ter condições de convencer os eleitores de suas razões para desrespeitar as
promessas anteriores. O governo representativo nunca foi um sistema em que os
eleitos têm a obrigação de realizar a vontade dos eleitores: esse sistema nunca
foi uma forma indireta de soberania popular.
Nesse aspecto reside uma grande diferença entre o governo representativo e a
democracia, entendida como um regime de autonomia coletiva em que as pessoas
submetidas a normas fazem as normas. Essa diferença era muito visível no final
do século XVIII, como demonstra a crítica da representação formulada por
Rousseau. Não é a presença de delegados que diferencia a representação do
governo do povo pelo povo. A delegação de funções de governo a um organismo
político separado do povo pode ser compatível com o princípio do autogoverno do
povo. 0 próprio Rousseau estava perfeitamente convencido dessa possibilidade.
Em Considerações sobre o governo da Polônia, Rousseau propõe um sistema em que
o povo delegaria a uma assembléia de deputados o exercício do poder soberano.
Extraindo a conseqüência lógica de sua concepção de liberdade política como
autogoverno, ele recomenda, então, a prática de mandatos imperativos (Rousseau,
1986, p. 193). A diferença entre governo representativo e governo do povo pelo
povo não está na existência de um corpo específico de delegados, mas na
ausência de mandatos imperativos.
É surpreendente constatar que dois homens que tiveram um papel decisivo
na,concepção do governo representativo, Madison e Siéyès, tenham percebido a
existência de um nítido contraste entre representação política e democracia. Em
diversas ocasiões, Madison opõe o "governo republicano, caracterizado pela
representação, à "democracia" das pequenas cidades-estados da
Antigüidade. Em sua opinião, o governo representativo não é apenas uma forma
aproximada de democracia, que teria se tornado tecnicamente necessária devido à
impossibilidade concreta de reunir o povo em Estados de grandes extensões. Ao
contrário, Madison considera o governo representativo como uma forma diferente
e superior de exercício do poder. O efeito da representação, observa Madison,
é:
(...) refinar e ampliar as opiniões do povo, fazendo-as passar pelo crivo de
um corpo de cidadãos selecionados, cuja sabedoria pode melhor discernir o
verdadeiro interesse de seu país e cujo patriotismo e amor à justiça fazem
deles cidadãos menos suscetíveis a sacrificar esse interesse por considerações
efêmeras e parciais. Em um sistema desse tipo; é provável que a vontade
popular, expressa pelos representantes do povo, venha a ser mais compatível com
o bem público do que se fosse manifesta pelo próprio povo, reunido para esse
fim (Hamilton et al., 1961, p. 82).
Madison sublinha que um dos objetivos do sistema plenamente representativo,
conforme proposto na Constituição dos Estados Unidos, é colocar no poder
pessoas mais aptas a resistir às "paixões desordenadas" e aos
"equívocos e ilusões efêmeros" que podem tomar conta do povo: somente
deveria prevalecer o "julgamento sereno e ponderado da coletividade"
(1787, p. 384).(8) Não resta dúvida de que, na sua opinião, não é papel do
representante votar da maneira como o povo desejaria em todas as ocasiões. A
superioridade do sistema representativo se encontra no fato de permitir um
distanciamento entre as decisões do governo e a vontade popular.
Em vários textos e discursos, Siéyès sublinha a "enorme" diferença
que separa uma democracia, na qual os próprios cidadãos legislam, de um sistema
representativo, em que o exercício do poder é delegado a outros por meio de
eleições (Siéyès, 1789c e 1789b). Para Siéyès, assim como para Madison, a
representação não é uma versão imperfeita da democracia direta, decorrente de
necessidades práticas; é uma forma de governo totalmente diferente e
preferível. Siéyès considera o governo representativo como um sistema superior,
não tanto por redundar em um processo decisório mais racional e menos
passional, quanto por constituir uma forma política mais adequada às sociedades
mercantis modernas, onde as pessoas estão permanentemente ocupadas na produção
e troca de riquezas. Nessas sociedades, observa Siéyès, os cidadãos não dispõem
mais do tempo necessário para se ocupar constantemente dos negócios públicos.
Sendo assim, eles precisam confiar o governo, por intermédio de eleições, a
indivíduos que dediquem todo seu tempo a essa tarefa. Acima de tudo, Siéyès vê
na representação uma aplicação da divisão do trabalho à esfera da política,
princípio este que ele acredita ser um fator essencial para o progresso social.
"O interesse comum, o aperfeiçoamento das condições da própria sociedade,
reclamam que se faça do governo uma profissão especial" (Siéyès, 1789d).
Ele observa ainda que não é função dos representantes agir como meros
transmissores da vontade dos eleitores. "É portanto incontestável",
diz ele, "que os deputados não estão na Assembléia Nacional para afirmar
vontades já formuladas por seus eleitores, mas para deliberar e votar
livremente, de acordo com o juízo que façam no momento e esclarecidos por todas
as luzes que a Assembléia possa lhes proporcionar." (Siéyès, 1789c).
3) A opinião pública sobre assuntos políticos pode se manifestar
independentemente do controle do governo
Desde o final do século XVIII, prevalece a idéia de que um governo
representativo supõe que os governados possam formular e expressar livremente
suas opiniões políticas. A ligação entre governo representativo e liberdade de
opinião foi definida rapidamente nos Estados Unidos, de maneira mais progressiva
na Inglaterra, e seguiu um roteiro mais lento e mais complexo na França.
A liberdade de opinião política requer dois elementos. Para que os
governados possam formar opinião sobre assuntos políticos, é necessário que
tenham acesso à informação política, o que supõe tornar públicas as decisões
governamentais. Quando os políticos tomam suas decisões em segredo, os
governados dispõem de meios muito frágeis para elaborar opiniões em matéria
política. O princípio da divulgação dos debates parlamentares foi reconhecido
na Inglaterra entre 1760/90 - antes disso, o caráter secreto dos debates era
considerado uma prerrogativa do Parlamento, essencial para protegê-lo das
interferências da Coroa (Pole, 1983). Nos Estados Unidos, os debates, tanto no
Congresso Continental quanto na Convenção de Filadélfia, foram mantidos em
segredo. O primeiro senado eleito sob a nova Constituição decidiu,
inicialmente, realizar debates secretos, mas essa prática foi definitivamente
abandonada quatro anos depois (Pole, op. cit.). Na França, os Estados-Gerais de
1789 decidiram, desde sua instalação, que as deliberações seriam públicas e, de
fato, todos os debates das assembléias revolucionárias foram abertos. O povo
reunido nas galerias fazia intensa pressão sobre as discussões realizadas
durante as sucessivas assembléias revolucionárias. A comparação entre os casos
francês e americano sugere, porém, que, embora a divulgação de atos políticos
seja necessária para informar os cidadãos, ela não é indispensável em todos os
estágios do processo decisório: é bastante razoável pensar que o público
americano dispunha de melhores condições para formar opinião acerca da
Constituição dos Estados Unidos do que o público francês com relação a suas
várias constituições revolucionárias.
O segundo requisito da liberdade da opinião pública é a liberdade para
expressar opiniões políticas. A relação entre a liberdade de opinião e o
caráter representativo do governo não é, porém, tão óbvia assim. De qualquer
modo, não seria de estranhar que os governos. representativos tornassem sagrada
a liberdade de opinião, devido a sua adesão ao princípio liberal segundo o qual
uma parte da vida dos indivíduos deve ser resguardada das decisões coletivas.
Seguindo a distinção popularizada por Isaiah Berlin, poderia ser reivindicado
que a liberdade de opinião fosse incluída entre as "liberdades
negativas", que protegem os indivíduos das intromissões do governo. Nesse
sentido, a liberdade de opinião não tem uma relação direta com o caráter
representativo do governo. A representação diz respeito ao modo de participação
dos cidadãos no governo e garante "liberdade positiva". Há,
entretanto, um vínculo essencial entre a liberdade de opinião e o papel
político do cidadão em um governo representativo, claramente exposto no
conteúdo da Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos e evidenciado
nos debates travados em torno de sua adoção. A Primeira Emenda estabelece que
"o Congresso não aprovará nenhuma lei que vise à oficialização de uma
religião ou que proíba sua livre prática; que limite a liberdade de expressão
ou de imprensa; ou o direito de reunião pacífica e o direito de petição".
A liberdade de religião e a liberdade de expressão política se encontram,
assim, associadas. Cabe notar, além disso, que essa formulação vincula a
expressão individual e a expressão coletiva de opiniões: a liberdade de
religião, aplicável a indivíduos, é associada aos direitos de reunião e de
petição, que são manifestações coletivas. É o caráter coletivo de uma
manifestação que faz dela um ato político: as autoridades do governo podem, sem
grandes riscos, ignorar opiniões individuais expressas de maneira dispersa, mas
não podem fazer pouco caso de uma multidão nas ruas, por mais pacífica que ela
seja, nem deixar de considerar petições que reúnem milhares de assinaturas.
Agregando na mesma cláusula o direito de reunião e o direito de petição, a
Primeira Emenda evidencia sua dimensão política: ela visa proteger não só a
expressão coletiva de opiniões gerais, quanto a manifestação de idéias
dirigidas ao governo, com o intuito de dele obter algum benefício. Por
garantir, ao mesmo tempo, a liberdade de religião e o direito de expressar
opiniões políticas coletivamente dirigidas aos governantes, a Primeira Emenda
não estabelece apenas uma "liberdade negativa" para os indivíduos;
ela também garante aos cidadãos um modo de agir frente ao governo.
O debate que culminou na adoção da Primeira Emenda mostra ainda que suas
implicações políticas eram perfeitamente claras para os constituintes. O simples
fato de terem sido colocados em discussão os temas das instruções e dos
mandatos imperativos demonstra que os redatores percebiam a existência de um
elo entre a liberdade de expressão e a representação. A intervenção de Madison
esclarece melhor o alcance político da Primeira Emenda. Madison pronunciou-se
contra a inclusão do direito de instrução na Emenda. Os defensores da inclusão
desse direito tinham alegado que, num governo republicano, o povo deve ter
direito de fazer prevalecer a sua vontade. Madison respondeu, então, que esse
princípio é verdadeiro "em certos casos", mas não em outros, e
acrescentou:
No sentido em que ele é verdadeiro, esse direito já está suficientemente
afirmado no que estabelecemos até aqui; se não quisermos mais do que isso, que
o povo tenha direito de expressar e comunicar seus sentimentos e desejos, isso
já está garantido. O direito à liberdade de expressão está assegurado; a
liberdade de imprensa está explicitamente colocada fora do alcance do governo;
o povo pode, portanto, dirigir-se publicamente aos seus representantes, pode
aconselhar a cada um separadamente, ou manifestar seus sentimentos ao conjunto
da assembléia através de petição; por todos esses meios, ele pode dar
conhecimento de sua vontade (Madison, 1789, vol. 1, p. 415).
Em sua dimensão política, a liberdade de opinião surge, assim, como
contrapartida à ausência do direito de instrução. Não se exige que os
representantes ajam de acordo com os desejos do povo, mas eles não os podem
ignorar: a liberdade de opinião garante que, existindo esses desejos, eles
serão levados ao conhecimento dos representantes. Como estes sabem que estão
sujeitos ao teste da reeleição, têm um bom motivo para levar em consideração os
desejos do povo. Dessa maneira, a vontade popular se torna um componente
reconhecido do ambiente que cerca uma decisão. À parte as situações em que a
população esteja ameaçando seriamente a ordem pública e coagindo o governo por
um ato de força, a única vontade impositiva dos cidadãos é o voto. Mas os
governados sempre têm a possibilidade de, no momento das eleições ou em outras
ocasiões, manifestar uma opinião coletiva diferente da que é defendida por seus
representantes. Costuma-se chamar de opinião pública essa voz coletiva do povo
que, sem ter valor impositivo, sempre pode se manifestar independentemente do
controle do governo.
A liberdade de opinião pública distingue o governo representativo do que tem
sido chamado de representação absoluta, cuja formulação mais conhecida é
encontrada em Hobbes. Segundo Hobbes, um grupo de indivíduos somente constitui
uma unidade política após ter conferido autoridade a um indivíduo ou
assembléia, a quem esses indivíduos prestam obediência, para expressar sua
vontade (evidentemente, o representante pode ser uma assembléia). Antes da
designação do representante, e independentemente de sua pessoa, o povo não tem
unidade alguma; é uma multitudo dissoluta, uma multidão dispersa. O povo
somente adquire força política por intermédio da pessoa do representante, que,
a partir do momento em que chega ao poder, substitui completamente aqueles que
representa. Os representados não têm outra voz senão a dele.(9) É precisamente
essa substituição absoluta dos representados pelo representante que a liberdade
de opinião pública impede. A massa do povo sempre pode se manifestar como uma
entidade política dotada de uma certa unidade, independente do representante.
Quando os indivíduos, agindo como grupo, dão instruções aos seus
representantes, quando grupos exercem pressão sobre o governo, quando uma
multidão se reúne nas ruas ou assina uma petição, o povo está se manifestando
como uma entidade política capaz de falar e agir independentemente dos que
estão no governo. A liberdade de opinião pública mantém a permanente
possibilidade de que o povo fale por si mesmo. O governo representativo é um
sistema em que os representantes jamais podem declarar com confiança e
segurança absolutas: "Nós, o povo".
Tanto o autogoverno do povo quanto a representação absoluta redundam na
eliminação da distância entre governantes e governados: o primeiro porque
transforma os governados em governantes; a segunda porque substitui os
representados pelos representantes. O governo representativo, ao contrário,
mantém essa distância.
4) As decisões políticas são tomadas após debate
Já se tornou usual a idéia de que o governo representativo foi originalmente
concebido e justificado como um governo do debate. As análises de Carl Schmitt
tiveram grande influência na disseminação dessa interpretação (Schmitt,1988 e
1928). Vale notar que os textos mencionados por Schmitt em apoio às suas
concepções datam principalmente do século XIX, época em que o governo
representativo não era mais uma novidade. Ele cita com muita freqüência
escritos e discursos dos séculos XVII e XVIII, quando os princípios da
representação foram elaborados e aplicados pela primeira vez. (10) As virtudes
do debate parlamentar são evidentemente muito elogiadas por Montesquieu,
Madison, Siéyès ou Burke, mas, como objeto de reflexão, o tema ocupa um espaço
muito menor nas obras de Guizot, Bentham e John Stuart Mill. O debate sequer é
mencionado no Segundo tratado do governo civil, de Locke. Nem os
revolucionários americanos nem os constituintes franceses de 1789/91 definiram
o governo representativo como um governo do debate. Além disso, a expressão
"governo do debate" é muito pouco clara. Ela não indica com precisão
o lugar ocupado pela discussão dentro do governo. Será que o debate está
presente em todas as etapas do processo decisório ou apenas em algumas? A
expressão significa que, no governo representativo, assim como "no diálogo
permanente", tão caro aos românticos alemães, tudo é submetido a uma
discussão interminável?
Ainda que o debate não figure com tanto relevo no pensamento dos fundadores
do governo representativo quanto no das análises do século XIX, é evidente que,
desde suas origens, a idéia de representação esteve ligada à da discussão,
nesse tipo de governo. Dispositivos legais adotados na Inglaterra, nos Estados
Unidos e na França comprovam esse fato: os representantes gozam da mais ampla
liberdade de expressão dentro do recinto da assembléia. O elo entre
representação e discussão só pode ser entendido pela introdução da noção
intermediária de assembléia. O governo representativo sempre foi interpretado e
justificado como um sistema político em que a assembléia desempenha um papel
decisivo. Seria possível imaginar, como assinala corretamente Schmitt, que a
representação fosse o apanágio de um único indivíduo, designado e autorizado
pelo povo.(11) É inegável, porém, que o governo representativo não foi
proposto, nem estabelecido, como um regime em que o poder seria confiado a um
único indivíduo escolhido pelo povo; ao contrário, foi criado como um regime em
que um órgão decisório coletivo deveria ocupar uma posição central. Schmitt e
diversos outros analistas posteriores vêem muito mais do que a existência de um
vínculo entre a idéia de representação e o papel da assembléia: consideram o
papel predominante atribuído à assembléia como efeito de uma crença anterior e
mais fundamental nas virtudes do governo da verdade (veritas non auctoritas
facit legem).(12)Segundo essa linha de interpretação, a estrutura de crenças
que justifica o governo representativo, definido como governo por meio de uma
assembléia, seria a seguinte: a verdade deve ser a base da lei, o debate é o
caminho mais adequado para determinar a verdade; portanto, o órgão central de
tomada de decisões deve ser um local de debates, em outras palavras, uma
assembléia.
O fato é que os argumentos defendidos pelos primeiros partidários do governo
representativo não seguiram esse padrão. Em Locke, Montesquieu (quando analisa
o regime inglês), Burke, Madison ou Siéyès, o caráter coletivo de um órgão
decisório representativo nunca é inferido a partir de um argumento sobre as
vantagens da discussão. O fato de a representação exigir uma assembléia é
considerado óbvio. A associação entre representação e assembléia não foi uma
criação ex nihilo do pensamento político moderno, mas um legado da história. Os
parlamentos modernos efetivamente se formaram ao longo de um processo gradual
de mudança (na Inglaterra), de uma transformação violenta (na França), ou por
imitação (nas colônias americanas) dos organismos representativos da sociedade
feudal, as "assembléias dos estamentos". Os primeiros defensores das
modernas assembléias representativas insistiam na idéia de que a forma de
governo que propunham era muito diferente das instituições anteriores, mas essa
própria insistência sugere a percepção de continuidades entre o velho e o novo.
A natureza coletiva dos órgãos decisórios era um dos elementos dessa
continuidade. O debate aparece nos textos e nos discursos dos fundadores da
representação moderna como uma característica inevitável e de certo modo
natural das assembléias.
A noção de governo representativo, além disso, sempre esteve vinculada à
aceitação da diversidade social. Em sua primeira formulação, a representação
aparecia como uma técnica que permitia a instauração de um governo do povo em
nações muito populosas e diversificadas. Madison e Siéyès repetiram várias
vezes que a homogeneidade e o tamanho reduzido das comunidades políticas é que
possibilitavam a democracia direta nas antigas repúblicas. Esses autores
alertaram que essas condições não existiam mais no mundo moderno, que se
caracteriza pela divisão do trabalho, pelo progresso do comércio e pela
diversificação dos interesses. O mais ilus tre opositor da representação,
Rousseau, ao contrário, condenava a "sociedade mercantil" e o
progresso da ciência e das artes, exaltando as pequenas comunidades homogêneas.
Durante o século XVIII, admitia-se, em geral, que as assembléias
representativas deveriam refletir essa diversidade. Até mesmo analistas como
Siéyès e Burke, que insistiam em realçar o papel da assembléia na produção da
unidade, reconheciam que os delegados, eleitos por diferentes localidades e
populações, davam às assembléias uma feição de reflexo da diversidade social.
(13)A assembléia representativa sempre foi vista, portanto, como
simultaneamente coletiva e diversificada.
A natureza coletiva e diversificada do organismo representativo, e não a
existência de uma convicção prévia e independente nas virtudes do debate
parlamentar, é que explica o papel atribuído à discussão. Em um organismo
decisório de caráter coletivo, cujos numerosos integrantes são eleitos por
populações diferenciadas, e que provavelmente têm opiniões divergentes, o
problema é alcançar um acordo, uma convergência de vontades. Os fundadores do
governo representativo colocaram a igualdade das vontades na base de suas
concepções políticas: nenhuma superioridade intrínseca confere a determinados
indivíduos o direito de impor sua vontade aos demais. Por conseguinte, se uma
convergência de vontades deve ser atingida numa assembléia onde nem o mais
forte, nem o mais competente, nem o mais rico, têm razões para impor sua
vontade aos demais, todos os participantes devem procurar conquistar o
consentimento dos outros através da persuasão. A obviedade dessa solução
explica por que ela raramente é objeto de contestação explícita entre os
fundadores do governo representativo, e por que, além disso, o debate é
proposto como uma atividade natural nas assembléias. O princípio da igualdade
das vontades, que torna as eleições o método mais legítimo de designação de
representantes, também faz do debate a forma legítima de interação entre esses
representantes.
A noção de debate e sua função predominante entre os primeiros partidários
da representação estão expressas com toda clareza em um dos textos básicos do
governo representativo moderno, Vues sur les moyens d'exécution, de Siéyès. O
trecho dedicado ao exame do tema do debate parlamentar esclarece alguns pontos
cruciais e merece ser examinado mais detidamente. É preciso observar,
primeiramente, que Siéyès introduz suas considerações a respeito do debate
depois de ter afirmado a necessidade do governo representativo e para responder
às objeções levantadas "contra as grandes assembléias e contra a liberdade
de expressão". Sem mais justificativas, Siéyès admite que o sistema
representativo requer uma assembléia e que a razão de ser desta é o debate.
Respondendo às objeções, Siéyès afirma que:
Em primeiro lugar, há uma desaprovação da maneira complicada e lenta com que
os assuntos são tratados em grandes assembléias deliberativas. Isso se deve ao
fato de que, na França, já nos acostumamos a decisões arbitrárias, tomadas em
segredo, nos meandros dos escritórios ministeriais. Uma questão discutida em
público por um grande número de pessoas que têm opiniões divergentes, todas com
igual direito a usar a palavra de modo mais ou menos prolixo, e que se permitem
expor suas idéias com um brilho e um entusiasmo estranhos ao modo de ser da
sociedade, é algo que naturalmente assusta nossos bons cidadãos, da mesma
maneira que um concerto de instrumentos barulhentos cansaria o ouvido frágil de
um doente no hospital. Fica difícil imaginar que pudesse ocorrer uma opinião
sensata durante um debate tão livre e agitado. É tentador que se queira, então,
chamar alguém muito superior aos demais para fazer toda essa gente entrar em
acordo em vez de passar o tempo todo brigando entre si (Siéyès, 1789a, p. 92,
grifos meus).
Siéyès considera inevitável que, de início, reine a discordância geral na
assembléia; mas, como o governo representativo se fundamenta na igualdade, ele
tende a rejeitar a tentadora solução recomendada pelos seus críticos: que se
ponha um fim à discórdia apelando para a intervenção de uma vontade superior às
demais. Em um trecho posterior do livro, Siéyès escreve:
Em todas as deliberações, há um problema a ser resolvido: o de saber, em
cada caso, o que prescreve o interesse geral. Quando começa o debate, não se
pode saber que rumo ele tomará até que se tenha certeza da descoberta desse
interesse. Não há dúvida de que o interesse geral nada representa se não for o
interesse de alguém: esse interesse específico é que é comum ao maior número de
eleitores. Daí decorre a necessidade da competição entre as opiniões.(14) O que
aparenta ser uma mistura, uma confusão capaz de tudo obscurecer, é um passo
preliminar indispensável para se alcançar a luz. É preciso deixar que todos
esses interesses pressionem uns aos outros, concorram entre si, lutem para
definir o problema, e é preciso incita-los, na medida da força de cada um, em
direção à meta proposta. Nesse processo de teste, idéias úteis e perniciosas
são separadas; as últimas são abandonadas, as primeiras prosseguem em busca de
um equilíbrio até que, modificadas e purificadas por sua ação recíproca, por
fim se fundem numa só opinião (Siéyès, 1789a, pp. 93-4).
No pensamento dos fundadores do governo representativo, o debate parlamentar
realiza, portanto, a tarefa específica de produzir acordo e consentimento; não
constitui, em si mesmo, um princípio de tomada de decisões.O que faz de uma
proposta uma decisão pública não é a discussão, mas o consentimento.
Entretanto, é preciso acrescentar que esse consentimento deve ser de uma
maioria, e não uma concordância universal, menos ainda uma expressão da
verdade.(15)A respeito disso, assim escreveu Locke:
Pois sendo o que leva qualquer comunidade a agir o consentimento dos
indivíduos que a formam, e sendo necessário ao que é um só corpo, se mover em
uma direção, é necessário que esse corpo se mova para o lado para o qual o
arrasta a força mais forte, que é o consentimento da maioria; não sendo assim,
é impossível que continue a agir ou continue a ser um corpo, uma comunidade
(...).(16)
Vale notar que neste texto, central em seu pensamento, Locke não fundamenta
o princípio majoritário em qualidades ou virtudes da maioria, como, por
exemplo, sua capacidade de expressar o que é verdadeiro ou justo, mas no
simples fato de que é preciso agir e tomar decisões. Por si mesmo, o debate
parlamentar não preenche essa função. Aliás, por si mesmo, ele também não
contém um princípio de limitação. A regra majoritária é que, de fato, fornece
um princípio para a tomada de decisões, porque ela é compatível com as
limitações temporais às quais está submetida toda ação, especialmente a ação
política. A qualquer momento, é possível contar o número de votos e determinar
qual proposta obteve aceitação mais ampla. Debates acadêmicos podem ser
travados exclusivamente no âmbito do princípio da discussão, porque, ao
contrário do que se passa na política, não estão submetidos a limites de tempo.
Essa é uma situação que não se aplica aos debates políticos. Os fundadores do
governo representativo certamente não confundiam um parlamento com uma
sociedade de intelectuais. O princípio do governo representativo deve ser
formulado da seguinte maneira: nenhuma medida tem a validade de uma decisão
enquanto não obtiver o consentimento de uma maioria, ao final dos debates.
É digno de nota que os quatro princípios que acabamos de expor - eleição de
representantes pelos governados, independência parcial dos representantes,
liberdade da opinião pública e decisões políticas tomadas após deliberação -
tenham permanecido constantes ao longo de toda a história do governo
representativo. A representação política, na realidade, mudou muito menos do
que se pensa. É certo, porém, que esses quatro princípios tiveram conseqüências
e implicações diferentes de acordo com as circunstâncias dentro das quais foram
postos em prática. Essas diferenças deram origem a três formas de governo
representativo que passamos a analisar a seguir.
O governo representativo de tipo parlamentar
1) Eleição dos representantes pelos governados
As eleições foram concebidas como um meio de conduzir ao governo indivíduos
que gozavam da confiança de seus concidadãos. Nos primórdios do governo
representativo, essa confiança se baseava em circunstâncias especiais: os
candidatos vitoriosos eram pessoas que inspiravam confiança nos eleitores, em
virtude de uma rede de relações locais, de sua notoriedade social ou da
deferência que suscitavam.
A relação de confiança tem um caráter essencialmente pessoal no modelo
parlamentar. O candidato inspira confiança por sua personalidade, não por suas
relações com outros representantes ou com organizações políticas. O
representante mantém uma relação direta com os eleitores: ele é eleito por
pessoas com quem tem contato freqüente. As eleições parecem ser um reflexo e
uma expressão da interação não-política. A confiança decorre do fato de que o
representante pertence à mesma comunidade de seus eleitores, e essa comunidade
se define em termos puramente geográficos ou em função "dos grandes
interesses do reino" (propriedade fundiária, mercantil, manufatureira
etc.). As relações de proximidade local ou de pertencimento a uma dessas áreas
de interesse são conseqüências espontâneas dos laços sociais e da interação.
Não são produzidas pela competição política. Ao contrário, elas constituem
recursos prévios que os atores políticos mobilizam na disputa pelo poder. Ao
mesmo tempo, os representantes alcançaram proeminência na comunidade em virtude
de sua personalidade, riqueza ou ocupação. As eleições selecionam um tipo
particular de elite: os notáveis. O governo parlamentar é o reinado dos
notáveis.
2) Independência parcial dos representantes
Os deputados são livres para votar de acordo com sua consciência e seu
julgamento pessoal. Não faz parte de seu papel transmitir uma vontade política já
formulada do lado de fora do Parlamento. Os representantes não são porta-vozes
dos eleitores, mas seus homens de confiança, seus trustees. Esta é a definição
de representante elaborada por Burke no célebre "Discurso aos Eleitores de
Bristol" (Burke, 1774). A esse respeito, suas palavras apenas refletem a
opinião dominante na época e que prevaleceu durante toda a primeira metade do
século XIX. 0 período que vai da primeira Reform Bill (1832) até a segunda
(1867) chegou a ser chamado de ".a idade de ouro do private M. P (Membro
do Parlamento)", quer dizer, do deputado que vota unicamente em função de
suas convicções pessoais e não de compromissos assumidos fora dó Parlamento
(Beer, 1982). Entre o fim das guerras napoleônicas e a segunda Reform Bill, a
Cãmara dos Comuns pode ser considerada um modelo arquetípico de
parlamentarismo. A independência de cada deputado deve-se em parte ao fato de
que sua eleição foi conseqüência de um fator não-político, o prestígio local.
3) A liberdade da opinião pública
A primeira metade do século XIX assistiu a uma proliferação de associações
políticas extraparlamentares, como o cartismo, e de movimentos de defesa dos
direitos dos católicos, da reforma parlamentar e de repúdio à lei do trigo.
Numerosas associações organizavam manifestações públicas, petições, campanhas
de imprensa. (17) Um aspecto particular merece ser ressaltado: as linhas de
clivagem dessas diversas questões cortavam as divisões entre os partidos. O que
tenho chamado de "opinião pública" não podia encontrar expressão
adequada através do voto. A eleição de representantes e a expressão da opinião
pública (através de associações, petições, campanhas de imprensa etc.) diferiam
não só por seu status constitucional - apenas a primeira tinha efeitos legais
-,como também por seus objetivos. Algumas questões, como a liberdade de
religião, a reforma do Parlamento e o livre comércio, não eram temas discutidos
durante as campanhas eleitorais, nem eram decididos pelos resultados da
votação. Foram levadas ao centro da arena política por organizações ad hoc e
resolvidas por meio de pressões exercidas de fora do Parlamento.
A diferença de objetivos que separa a eleição dos representantes e a
expressão da opinião pública decorria não só do caráter restritivo do direito
de voto, como da natureza dessa forma de governo representativo. Se as eleições
escolhiam as pessoas tendo em vista a confiança pessoal que elas inspiravam, as
opiniões dos cidadãos sobre assuntos e orientações políticas precisavam
encontrar outro canal de expressão. O eleitorado nem sempre dispunha dessas
opiniões; isso ocorria apenas em situações de crise. Mas a estrutura do governo
de tipo parlamentar implica que, havendo essas opiniões, elas devem ser
expressas fora dos momentos de eleição.
Assim, no sistema parlamentar de representação, a liberdade de expressão da
opinião pública possibilita a existência de uma não-correspondência, ou mesmo
de um conflito, entre a opinião pública e as preferências políticas manifestas
nas eleições. Recorrendo a uma imagem espacial, pode-se falar na possibilidade
de um corte horizontal entre a vontade superior do povo, que elege o
Parlamento, e sua vontade inferior, que se manifesta nas ruas e através da
imprensa. A estrutura fundamental dessa configuração aparece de modo mais
evidente quando a voz da multidão, do lado de fora do Parlamento, expressa
preocupações que não repercutem do lado de dentro. Os analistas mais sensíveis
têm observado que a possibilidade dessa divergência, por mais ameaçadora que
seja à ordem pública, é essencial para a forma parlamentar do governo
representativo. Analisando o funcionamento do parlamentarismo inglês, antes da
constituição dos partidos de massa, Ostrogorski escreveu:
Além dos períodos eleitorais, quando assume sua forma alais elevada, a
opinião pública supostamente também representa uma permanente fonte de
inspiração para os deputados e seu líderes, e exerce um permanente controle
sobre eles. Manifestando-se independentemente de qualquer via constitucional,
esse poder da opinião pública se impõe e leva a melhor (...). Mas para que esse
poder, de uma natureza eminentemente sutil e instável, se faça sentir, é
preciso que lhe seja dada total liberdade para assumir formas diversas e
contrárias às regras e para que chegue até as portas do Parlamento
(Ostrogorski, s/d, vol. 1, p. 573).
Mas quando o povo se encontra fisicamente presente nas portas do Parlamento,
aumentam os ris-
cos de desordem e violência. Essa forma de governo representativo
caracteriza-se pelo fato de que a liberdade de opinião é inseparável do risco
da desordem pública.
4) Decisões políticas tomadas após debates
Como os representantes não estão submetidos à vontade de seus eleitores, o
Parlamento pode ser um local de deliberação no sentido pleno da palavra, ou
seja, um lugar onde os políticos definem suas posições através da discussão e
onde o consentimento de uma maioria é alcançado através da troca de argumentos.
Uma discussão só pode gerar um acordo entre participantes que têm, de início,
opiniões divergentes, se estes puderem mudar de idéia no transcorrer das
argumentações. Se, em determinadas circunstâncias, essa mudança for impossível,
a discussão não se prestará à construção do consentimento da maioria.
Exatamente para permitir a deliberação é que, no parlamentarismo clássico, os
deputados não estão presos à vontade de seus eleitores. Na Inglaterra, durante
a primeira metade do século XIX, predominava a crença de que os deputados
deviam votar de acordo com as convicções que tivessem formado por intermédio do
debate parlamentar, e não em função de decisões previamente tomadas. Ainda que
esse modelo nem sempre tenha sido seguido, a maioria dos candidatos e dos
deputados, na prática, defendia tal princípio. A liberdade do representante
pode ser constatada pela contínua mobilidade de suas clivagens e
reagrupamentos.(18)
A democracia de partido
1) Os representantes são eleitos pelos governados
O aumento do tamanho do eleitorado, gerado pela extensão do direito de voto,
impediu-o de manter relações pessoais com seus representantes. Os cidadãos não
votam mais em alguém que conhecem pessoalmente, mas em um candidato que carrega
as cores de um partido. Os partidos políticos, juntamente com suas burocracias
e sua rede de militantes, surgiram exatamente para mobilizar esse eleitorado
mais numeroso.
Na época de sua formação, acreditava-se que os partidos de massa conduziriam
o "cidadão comum" ao poder. Aparentemente, a ascensão desses partidos
prefigurava não só a falência do notável, como também o fim do elitismo que
caracterizara o parlamentarismo. Nos países em que os partidos de massa se
baseavam em divisões de classe, havia a crença de que, por meio do partido
socialista ou social-democrata, a classe operária estaria representada no
Parlamento por seus próprios integrantes, os trabalhadores comuns. Mas a
análise de Michels sobre o partido social-democrata alemão logo desmentiu essas
expectativas (Michels, 1962, especialmente a parte IV, "Social Analysis of
Leadership").
Michels mostrou, e denunciou com amargura, a distância que separava a
liderança da base operária em um partido tipicamente de massa e de classe. Demonstrou
que, embora os líderes e deputados do partido tivessem origem social operária,
na realidade eles levavam uma vida mais pequenoburguesa do que proletária.
Michels afirmou que os líderes e deputados do partido da classe operária se
tornavam diferentes, quando ascendiam ao poder, mas também enfatizou que eles
já eram diferentes antes disso. Segundo Michels, o partido proporciona
"aos membros mais inteligentes [da classe operária] uma oportunidade de
ascensão na escala social", e eleva os proletários "mais capazes e
mais bem-informados" (op. cit., pp. 263-4). Na aurora do capitalismo,
esses trabalhadores "mais inteligentes e ambiciosos" poderiam ter se
tornado pequenos empresários, mas agora se tornavam burocratas de partido
(idem, ibidem, pp. 258-9). Por essa razão, o partido é dominado por elites
"desproletarizadas" que perderam a marca distintiva da classe
operária. Essas elites, no entanto, ascendem a posições de poder a partir de
qualidades e talentos especiais, notadamente o ativismo e a capacidade de
organização.
A análise de Michels mostra que o caráter elitista do governo representativo
não desaparece quando o sistema é dominado pelos partidos de massa. 0 que
acontece é a emergência de um novo tipo de elite. As qualidades que especificam
os representantes não são mais o prestígio social e a notoriedade local, mas o
ativismo e a capacidade de organização. Os eleitores não escolhem seus
representantes por essa razão, mas essas qualidades são selecionados pela
estrutura interna do partido. A democracia de partido é o governo do ativista e
líder partidário, ou do "chefe político".
Observamos anteriormente que, nessa forma de governo representativo, o povo
vota em um partido e não em uma pessoa. O fenômeno da estabilidade eleitoral é
uma prova disso. Os eleitores tendem a escolher, dentre uma longa lista de
candidatos apoiados por diferentes partidos, aqueles que pertencem à mesma
organização. As pessoas não só se inclinam a votar constantemente no mesmo
partido, como também as preferências partidárias são transferidas de uma
geração para a outra: os filhos votam como os pais, e os habitantes de uma
localidade votam no mesmo partido durante décadas. André Siegfried, um dos
primeiros analistas a observar a estabilidade do comportamento eleitoral, falava
da existência de "climas de opinião". A estabilidade dos
comportamentos eleitorais, importante descoberta da ciência política na virada
do século, foi confirmada por inúmeras pesquisas realizadas até a década de
70.(19) Contudo, a estabilidade eleitoral atinge uma das bases do
parlamentarismo clássico, na medida em que a eleição não é mais a escolha de
uma pessoa que os eleitores conhecem pessoalmente e em quem confiam. Como o
modelo parlamentar foi identificado com o governo representativo, ao surgirem os
partidos de massa, a desintegração desse vínculo pessoal foi interpretada como
um indício de crise na representação política.
Por outro lado, a estabilidade eleitoral deriva, em grande medida, da
determinação das preferências políticas por fatores socioeconômicos. Na
democracia de partido as clivagens eleitorais refletem divisões de classe.
Embora já se observasse, na primeira metade deste século, em todos os países
democráticos, a influência dos fatores socioeconômicos sobre o comportamento,
eleitoral, ela é particularmente evidente nos países em que um dos grandes
partidos foi formado e explicitamente concebido para ser a expressão política
da classe operária. Os partidos socialistas ou social-democratas são geralmente
considerados como os arquétipos do partido de massa contemporâneo, que se
transformou, desde o final do século XIX, no núcleo de organização das
democracias representativas. Por essa razão, nos países onde os partidos
social-democratas são fortes é que se pode encontrar a forma mais pura do tipo
de representação gerada por lealdades partidárias estáveis.
Na Alemanha, na Inglaterra, na Áustria e na Suécia, o voto constituiu,
durante décadas, o meio de expressão de uma identidade de classe. Para a
maioria dos eleitores socialistas ou social-democratas, o voto não era uma
questão de escolha, mas de identidade social e destino. Os eleitores confiavam
nos candidatos apresentados pelo "partido", porque os reconheciam
como membros da comunidade a que pertenciam. A sociedade parecia estar dividida
em torno de diferenças econômicas e culturais fundamentais, em um pequeno
número de campos, geralmente dois: o campo conservador, unificado pela religião
e por valores tradicionais, e o campo socialista, definido pela posição
socioeconômica de seus integrantes. (20) 0 eleitor reconhecia seus interesses e
crenças nas posições de um campo ou de outro; cada campo se tornava para ele
uma comunidade, unificada de alto a baixo por fortes laços de identidade.
É por isso que, na democracia de partido, a representação se torna,
fundamentalmente, um reflexo da estrutura social. De início, predomina apenas
um elemento constitutivo da representação, a diversidade social. Contudo, os
setores sociais que se manifestam através das eleições estão em conflito entre
si. Como no governo de tipo parlamentar, a eleição reflete uma realidade social
anterior à política. Mas, enquanto as comunidades locais ou os "grandes
interesses" que se afirmavam no parlamentarismo não estavam
necessariamente em conflito, este passa a tomar uma importância crucial na
democracia de partido. Embora os artífices da representação política
considerassem a natureza pluralista das instâncias representativas como uma de
suas principais virtudes, eles jamais imaginaram que esse mesmo pluralismo
pudesse vir a refletir um conflito social básico e duradouro. Essa
transformação da representação foi uma conseqüência da industrialização e do
conflito de classes por ela engendrado.
Nesse modelo de governo representativo, o sentimento de pertencimento e
identidade social determina muito mais as atitudes eleitorais do que a adesão
ao programa político de um partido. Naturalmente, os partidos de massa
constituídos no final do século XIX formularam plataformas políticas
detalhadas, que utilizaram em suas campanhas eleitorais. Quanto a isso,
revelaram-se muito diferentes dos partidos existentes no modelo parlamentar.
Mas os eleitores não sabiam muita coisa a respeito do conteúdo preciso dessas
plataformas. Mais freqüentemente do que se pensava, a grande maioria dos eleitores
desconhecia os planos específicos propostos pelos partidos. Mesmo quando os
eleitores tinham conhecimento da existência de programas, eles só guardavam na
memória algumas fórmulas muito vagas e as palavras de ordem mais marcantes
repetidas durante as campanhas. As plataformas políticas serviam para dar aos
ativistas um certo senso de direção, que mobilizava suas energias e unificava o
conjunto do partido. Ainda que por razões distintas, os eleitores dos partidos
de massa não conheciam muito mais a natureza exata das metas defendidas pelos
candidatos do partido em que votavam do que ocorria com o eleitorado no modelo
parlamentar, ao escolher uma pessoa de confiança. Os eleitores dos partidos de
massa votavam num partido porque se identificavam com ele, independentemente
dos planos de ação constantes da plataforma do partido. Nesse sentido, a
democracia de partido, assim como o tipo parlamentar de governo representativo,
baseia-se na confiança. A diferença está no objeto dessa confiança: não mais uma
pessoa, mas uma organização, o partido.
2) A independência parcial dos representantes
Na democracia de partido, os representantes não são mais indivíduos livres
para votar segundo sua consciência e julgamento: eles estão presos à disciplina
partidária e dependem do partido que os elegeu. "O deputado
social-democrata", escreveu Kautsky, "não é um homem livre, por mais
escabroso que isto possa aparecer; ele é um simples delegado do
partido.."2 O membro da classe operária que tem assento no Parlamento é
apenas um porta-voz do partido. Esse principio se traduz em práticas efetivas
que podem ser observadas em todos os países social-democráticos: estrita
disciplina de voto no Parlamento e controle dos deputados pela máquina do
partido. Hans Kelsen, cujos escritos políticos formulam, de maneira exemplar,
os princípios da democracia de partido, propôs diversas medidas destinadas a
garantir ao partido um controle eficiente dos seus deputados: os representantes
deveriam ser obrigados a renunciar ao mandato se abandonassem o partido e os
partidos deveriam ter o direito de destituir o deputado. (22)
Nesse modelo de governo representativo, o Parlamento se transforma em um
instrumento de avaliação e registro da força relativa dos interesses sociais em
luta. Chama a atenção que, com exceção da Inglaterra, todos os países onde a
social-democracia é forte tenham um sistema de representação proporcional, quer
dizer, o sistema eleitoral visa refletir, da maneira mais exata possível, a
situação das relações de força dentro do eleitorado. Kelsen (1981, p. 61)
alegava que a representação proporcional era necessária "para que a
verdadeira estrutura de interesses se refletisse na composição do
Parlamento". Entretanto, numa sociedade em que o principal organismo
político reflete, com distorções mínimas, a luta pelo poder de interesses
contraditórios e solidamente unificados, sempre se corre o risco de um
confronto violento. Como as pessoas se vinculam a um campo ou outro em virtude
de seus interesses e crenças, se um desses campos vencer e tentar impor sua
vontade, as que estão no campo contrário sofrerão uma derrota total, que
afetará todos os setores de suas vidas, e isso poderá induzi-Ias a recorrer à
violência. A estabilidade eleitoral aumenta esses riscos. A minoria não conserva
muitas esperanças de reverter a situação num futuro próximo. A democracia de
partido maximiza o risco de confronto aberto. Mas os altos custos do confronto
motivam os atores a evitá-lo. De modo geral, quanto menos conscientes os atores
estiverem das resistências que terão de enfrentar, mais propensos se mostrarão
a assumir riscos. Na democracia de partido os vários campos não podem estar
equivocados quanto à força dos adversários, pois a composição do Parlamento
reflete essa força com muita precisão.
Para evitar o risco do confronto violento, o campo majoritário tem apenas
uma solução: estabelecer um acordo com a minoria. A democracia de partido só se
torna uma forma viável de governo quando os interesses opostos aceitam o
princípio da conciliação política, uma vez que nada vem atenuar seu conflito na
esfera social. Kelsen, aliás, vê no conceito de conciliação a pedra angular da
democracia, ainda que não tenha explicado claramente a razão pela qual os
protagonistas teriam motivos para transigir (Kelsen, 1981, pp. 53-68). Ao longo
da história, os partidos social-democratas só chegaram ao poder, e nele se
mantiveram, quando aceitaram o princípio da conciliação. Essa aceitação foi
marcada de maneira simbólica pela escolha de uma estratégia de coalizão quando
dominaram o governo pela primeira vez. Ao formar uma coalizão, o partido se
coloca deliberadamente numa situação de não poder realizar todos seus projetos.
Ele escolhe aceitar uma vontade que não é a sua. (23)Por outro lado, a
representação proporcional raras vezes produz uma maioria absoluta no
Parlamento; constitui, portanto, um estímulo à adoção de uma estratégia de
coalizão.
Mas, se a democracia de partido repousa no princípio da conciliação, os
partidos não podem realizar a totalidade dos seus projetos, quando ascendem ao
poder. É importante ressaltar que, para estabelecer uma solução de compromisso
ou formar uma coalizão, a direção do partido precisa ter uma margem de manobra
após as eleições. O partido não pode ficar atrelado exclusivamente ao seu programa
político. Essa liberdade de ação é facilitada pelo fato de que, ao votar, os
eleitores manifestam sua confiança em um partido. Evidentemente a organização
partidária está, até certo ponto, vinculada às promessas que fez, pois assumiu
compromissos públicos com determinadas linhas de ação. Além disso, os
militantes se mobilizaram em torno de uma plataforma que ajudaram a construir.
Dessa maneira, a liderança do partido deve agir de acordo com a orientação
geral traçada na plataforma política. Apesar disso, se o partido quiser entrar
em acordo com a oposição ou com seus aliados, os dirigentes devem se posicionar
como os únicos juízes do grau em que o programa será cumprido. Ao contrário do
que se costuma afirmar, a democracia de partido não suprime a relativa
independência dos representantes, inerente ao modelo parlamentar. O que difere
é a identidade do sujeito dessa independência parcial: em vez de ser o
representante individual, passa a ser o grupo formado pelo partido e por seus
líderes.(24) A independência dos representantes não é tão ampla quanto foi no
parlamentarismo: eles não podem mais decidir segundo seu próprio julgamento,
têm de exercer esse juízo dentro dos limites de uma orientação geral.
Um bom exemplo dessa independência parcial se encontra em uma resolução
adotada pelo Partido Trabalhista Inglês, em 1907, que dizia respeito às
relações entre o congresso anual do partido, que definia seu programa político,
e o grupo parlamentar. A moção estipulava que as instruções encaminhadas pelo congresso
do partido aos parlamentares deveriam ser obrigatoriamente cumpridas, mas o
momento e a maneira de colocá-las em prática ficariam a critério dos deputados,
ouvida a direção do partido. Como observou um dos líderes, essa resolução
significava atribuir à direção o poder de definir as prioridades na execução do
programa (Beer, 1982). Como o partido não permaneceria no poder para sempre,
essa autoridade para definir prioridades conferia à direção uma autonomia nada
desprezível.
3) A liberdade da opinião pública
Nesse tipo de governo representativo, os partidos organizam tanto a disputa
eleitoral quanto os modos de expressão da opinião pública (manifestações de
rua, petições, campanhas pelos jornais). Todas essas formas de expressão são
estruturadas ao longo das clivagens partidárias. As várias associações e os
órgãos de imprensa mantêm laços com um dos partidos. A existência de uma
imprensa de opinião tem uma importância especial: os cidadãos mais
bem-informados, os mais interessados em política e os formadores de opinião,
obtêm informações por intermédio da leitura de uma imprensa politicamente
orientada. Desse modo, os cidadãos são muito pouco expostos à recepção de
pontos de vista contrários, o que contribui para reforçar a estabilidade das
opiniões políticas. Uma vez que os partidos dominam tanto o cenário eleitoral
quanto a articulação de opiniões políticas fora dos períodos de eleição, as
clivagens da opinião pública coincidem com as clivagens eleitorais. Ostrogorski
definiu os partidos de massa como "associações integradoras": quando
uma pessoa ingressa num partido, "ela se dá a ele por inteiro"
(Ostrogorski, op. cit., vol. 11, p. 621). Analisando a República de Weimar,
Schmitt (1931, pp. 83-4) descreve as conseqüências dessa tendência para a
integralidade, afirmando:
(...) a extensão [da política] a todos os setores da vida humana (...) essa
tendência "totalizadora" se realiza por intermédio de uma rede de
organizações sociais para um certo segmento dos cidadãos. Certamente não
estamos diante de um Estado total, mas temos instituições sociais ligadas a
partidos, com tendência à totalidade, e que organizam seu rebanho desde a mais
tenra idade, oferecendo, cada uma delas, uma programação cultural completa.
Como os meios de expressão disponíveis para cada um dos campos em que se
divide a opinião pública são direta ou indiretamente controlados por
organizações partidárias, os cidadãos comuns não podem falar por si mesmos.
Eles não têm outro canal de expressão senão os partidos e suas organizações filiadas.
Essa situação aparentemente representa uma violação do princípio de que, no
governo representativo, a opinião pública pode se manifestar com independência
diante do controle do governo.
As análises de Schmitt ajudam a entender por que não é esse o caso. Não há
dúvida de que cada um dos campos se expressa de maneira unívoca: as
manifestações eleitorais ou não-eleitorais de sua vontade coincidem exatamente,
mas há mais de um campo de opinião e nem todos participam do governo. Por outro
lado, a instância que governa não é mais o Parlamento inteiro, como no sistema
parlamentarista; é o partido majoritário, ou uma coligação de partidos. A
democracia de partido é a era do governo de partido. Isso quer dizer que existe
algo não controlável pelo partido no poder: a oposição e seus canais de
expressão. Na democracia de partido, a liberdade da opinião pública significa
liberdade de oposição. Sempre é possível manifestar livremente uma opinião
diferente da defendida pelo partido no poder, mesmo . que, no interior de cada
um dos campos, os cidadãos não possam exprimir opiniões independentes do
controle dos líderes. Contrastando com o que se passa no governo representativo
de tipo parlamentar, a liberdade da opinião pública sofre um deslocamento.
Recorrendo novamente à metáfora espacial, é como se um corte vertical entre o
partido majoritário e a oposição tomasse o lugar do corte horizontal entre os
que estão do lado de dentro do Parlamento e os que estão do lado de fora.
Talvez se possa alegar que a República de Weimar não constitui exatamente um
modelo de governo representativo viável. Mas o regime foi derrotado porque os
partidos que apoiavam a Constituição não conseguiram estabelecer entre si uma
solução de compromisso. Quando a conciliação é possível, uma ordem política
fundada em campos solidamente unificados se torna viável. A Áustria posterior à
Segunda Guerra Mundial é um exemplo perfeito de um governo representativo desse
tipo.
4) Decisões políticas tomadas após debates
Na democracia de partido, as sessões plenárias do Parlamento não são mais um
fórum de debates deliberativos. Uma rígida disciplina comanda o voto no
interior de cada campo de forças. Além disso, uma vez determinada a posição do
partido, os deputados não podem mudar de opinião em função dos debates. Por
último, as posições de cada campo, no interior do Parlamento, são quase sempre
as mesmas, qualquer que seja o assunto posto em votação. O partido da maioria
sistematicamente apóia as iniciativas do governo, enquanto a minoria lhe faz
oposição. Isso sugere que os deputados não avaliam as propostas em função do
seu mérito, mas assentam suas decisões em considerações extrínsecas. O
Parlamento não é mais um lugar onde se chega a um acordo de maioria sobre
políticas específicas a partir de posições inicialmente divergentes. A posição
da maioria já está fixada antes de começarem os debates. As sessões do
Parlamento e as votações apenas conferem um selo de validade legal a decisões
tomadas em outros lugares.
Essa ruptura com os padrões do parlamentarismo foi objeto de numerosas
análises no início do século XX. De modo geral, ela foi interpretada como urna
indicação de que a época do debate público havia chegado ao fim. Na realidade,
o debate deslocava-se para outros fóruns. É verdade que, na democracia de
partido, uma vez fixada a posição do partido os deputados não podem mudar de
opinião. Também é verdade que as decisões partidárias são tomadas antes dos
debates parlamentares. Contudo, nas discussões realizadas dentro dos partidos,
antes dos debates no Parlamento, os participantes efetivamente podem deliberar.
A direção do partido e os integrantes do grupo parlamentar discutem entre si
sobre a posição coletiva a ser adotada. É claro que esse tipo de debate exclui
as posições dos outros partidos, mas esse modelo de governo representativo
incentiva a discussão entre os líderes dos diversos partidos. Já observamos
antes que esse sistema de representação se fundamenta no princípio da
transigência política, tanto entre maioria e minoria quanto entre os membros de
uma coalizão. As eleições não determinam as políticas específicas que devem ser
praticadas; elas determinam a força relativa dos vários partidos, cada um com
sua plataforma própria. A relação de forças entre partidos não indica as
questões em que se poderia tentar um acordo, nem define com precisão de que
maneira se poderia chegar a um meio-termo. O conteúdo exato da solução de
compromisso é, portanto, uma questão de negociação entre os partidos e seus
líderes. Por outro lado, as organizações social-democratas institucionalizaram
um processo de consultas e negociação entre grupos de interesse, como
sindicatos e associações empresariais. Esse fenômeno, conhecido como
"neocorporativismo", tem sido objeto de grande atenção por parte da
ciência política recente.(25) As instituições neocorporativistas, cujo objetivo
é facilitar a conciliação entre interesses sociais opostos, incentivam a
discussão. Os termos do acordo não são fixados antes do cotejo das posições;
são, antes, seu resultado. O princípio da conciliação, tanto na política quanto
nas esferas sociais, supõe a negociação e a discussão. É comum subestimar à
importância do debate na democracia de partido, porque o caráter essencial da
solução conciliatória nessa forma de governo não foi adequadamente reconhecido.
Pensava-se que os representantes dos diferentes campos estivessem rigorosamente
comprometidos com os detalhes de suas plataformas políticas - caso em que, de
fato, não seria possível nenhuma mudança de posição e nenhum debate. Mas, na
realidade, quando a democracia de partido é uma forma estável de governo, ela
não funciona por meio da rígida imposição de programas preestabelecidos.
A democracia do público
1) Os representantes são eleitos pelos governados
Tem-se observado, nos últimos anos, uma nítida modificação nas
interpretações dos resultados eleitorais. Antes dos anos 70, a maioria dos
estudos concluía que as preferências políticas podiam ser explicadas pelas
características sociais, econômicas e culturais dos eleitores. Várias pesquisas
sobre o tema mostram que a situação mudou. Os resultados eleitorais tendem a
variar significativamente de uma eleição para a outra, ainda que se mantenham
inalteradas as condições socioeconômicas e culturais dos eleitores. (26)
A personalização da escolha eleitoral
A personalidade dos candidatos parece ser um dos fatores essenciais na
explicação dessas variações: as pessoas votam de modo diferente, de uma eleição
para a outra, dependendo da personalidade dos candidatos. Cada vez mais os
eleitores tendem a votar em uma pessoa, e não em um partido. Esse fenômeno
assinala um afastamento do que se considerava como comportamento normal dos
eleitores em uma democracia representativa, sugerindo uma crise de
representação política. Na realidade, a predominância das legendas partidárias
na determinação do voto é característica apenas de um tipo específico de
representação: a democracia de partido. Um outro aspecto que também aproxima a
situação atual à do modelo parlamentar é o caráter pessoal da relação de
representação. Tem sido observado ainda o aumento da importância dos fatores
pessoais no relacionamento entre o representante e seu eleitorado (Cain et al.,
1987). Esse aspecto aparece de modo nítido na relação que se estabelece entre o
poder executivo e os eleitores no plano nacional. Há muito tempo os analistas
vêm constatando uma tendência à personalização do poder nos países
democráticos. Nos países em que o chefe do poder executivo é eleito diretamente
por sufrágio universal, a escolha do presidente da República tende a ser a
eleição mais importante. Nos regimes parlamentaristas, onde o chefe do poder
executivo também é o líder da maioria parlamentar, as campanhas e as eleições
legislativas se concentram em torno da pessoa desse líder. Os partidos
continuam a exercer um papel essencial, mas tendem a se tornar instrumentos a
serviço de um líder. Ao contrário do que acontece na representação
parlamentarista, é o chefe do governo, e não o membro do Parlamento, que se
considera como o representantepor excelência. Contudo, da mesma maneira que
acontece no parlamentarismo, a relação de representação tem um caráter
essencialmente pessoal.
Essa nova situação tem duas causas. Em primeiro lugar, os canais de
comunicação política afetam a natureza da relação de representação: os
candidatos se comunicam diretamente com seus eleitores através do rádio e da
televisão, dispensando a mediação de uma rede de relações partidárias. A era
dos ativistas, burocratas de partido ou "chefes políticos" já acabou.
Por outro lado, a televisão realça e confere uma intensidade especial à
personalidade dos candidatos. De certa maneira, ela faz recordar a natureza
face a face da relação de representação que caracterizou a primeira forma de
governo representativo. Os meios de comunicação de massa, no entanto,
privilegiam determinadas qualidades pessoais: os candidatos vitoriosos não são
os de maior prestígio local, mas os "comunicadores", pessoas que
dominam as técnicas da mídia. O que estamos assistindo hoje em dia não é a um
abandono dos princípios do governo representativo, mas a uma mudança do tipo de
elite selecionada: uma nova elite está tomando o lugar dos ativistas e líderes
de partido. A democracia do público é o reinado do "comunicador".
O segundo fator determinante da situação atual são as novas condições em que
os eleitos exercem o poder. Reagindo a essas mudanças, os candidatos e os
partidos dão ênfase à individualidade dos políticos em detrimento das
plataformas políticas. Como o âmbito das atividades do governo aumentou
consideravelmente nas últimas décadas, tornou-se mais difícil para os políticos
fazer promessas muito detalhadas; os programas ficariam muito extensos e seriam
praticamente ilegíveis. Um outro fator ainda mais importante é o aumento da
complexidade das circunstâncias políticas com que os governos têm se defrontado
desde a Segunda Guerra Mundial. A crescente interdependência econômica das
nações impõe a cada governo a necessidade de enfrentar decisões tomadas por um
número cada vez maior de atores. Isso significa, por sua vez, que também os
problemas a ser enfrentados pelos políticos no poder são cada vez menos
previsíveis. As circunstâncias dentro das quais se desenvolve a ação do governo
demandam um poder discricionário, cuja estrutura formal pode ser comparada à
antiga noção de prerrogativa. Locke definiu o conceito de prerrogativa como a
autoridade para tomar decisões na ausência de legislação prévia. A necessidade
desse poder é justificada no Segundo Tratado pela eventualidade de o governo
ter de enfrentar situações imprevistas, ao passo que as leis são constituídas
por regras fixas previamente sancionadas. (27)De modo análogo, é possível
pensar que os governos contemporâneos necessitam de um poder discricionário
relativamente aos programas políticos, já que é cada vez mais difícil prever os
acontecimentos que terão de ser enfrentados. Se as circunstâncias atuais exigem
uma determinada forma de poder arbitrário, é de bom senso que os candidatos
realcem suas qualidades e aptidões pessoais para tomar decisões adequadas, em
vez de ficarem com as mãos atadas por promessas muito detalhadas. Os eleitores
também estão cientes de que o governo terá de enfrentar imprevistos. Na opinião
dos eleitores, portanto, a confiança pessoal que o candidato inspira é um
critério de escolha mais adequado do que o exame dos projetos para o futuro.
Mais uma vez, a confiança, tão importante nas origens do governo
representativo, assume uma importância decisiva.
Por conseguinte, os eleitores contemporâneos devem conceder aos seus
representantes uma certa margem de liberdade relativamente às plataformas
eleitorais. A bem dizer, isso sempre aconteceu no governo representativo, desde
que os mandatos imperativos foram proibidos. A situação atual apenas torna mais
visível um aspecto permanente da representação política. Mas o poder
discricionário não é o mesmo que um poder irresponsável. Os eleitores mantêm o
poder fundamental, que sempre tiveram no governo representativo, de destituir
os representantes quando seus mandatos terminam. Hoje é especialmente difícil
avaliar os políticos levando em conta suas plataformas, mas é perfeitamente
viável julgá-los mediante a análise de sua folha de serviços. Também nesse
sentido o conceito de poder discricionário mostra semelhanças com o conceito de
poder de prerrogativa para Locke. Segundo a definição de Locke, o poder de
prerrogativa não era ilimitado, mas apenas uma capacidade de agir
"conforme exijam o interesse e o bem público". Nas atuais
circunstâncias, os eleitores é que determinam a posteriori, reelegendo ou
destituindo o representante, se as iniciativas por ele tomadas promoveram ou
não o bem público.
Os termos gerais da escolha eleitoral
Além da personalidade dos candidatos, os estudos contemporâneos revelam que
o comportamento dos eleitores varia de acordo com os termos da escolha
eleitoral. Por exemplo, os cidadãos votam em diferentes partidos em eleições
presidenciais, legislativas e municipais, sugerindo que as decisões de voto
levam em conta a percepção do que está em jogo numa eleição específica, e não
são decorrentes das características socioeconômicas e culturais dos eleitores.
Assim também, as decisões do eleitorado parecem ser suscetíveis às questões
levantadas durante as campanhas políticas. Os resultados da votação variam
significativamente, até mesmo em períodos curtos de tempo, conforme a ênfase
atribuída às questões no transcorrer das campanhas.(28) Os eleitores parecem
responder (aos termos específicos que os políticos propõem em cada eleição),
mais do que expressar (suas identidades sociais ou culturais). Desse ponto de
vista, a situação atual representa um afastamento do processo de formação das
preferências políticas na democracia de partido. Hoje em dia, predomina a
dimensão reativa do voto.
Toda eleição implica um fator de divisão e diferenciação entre os eleitores.
De um lado, toda eleição visa necessariamente distinguir os que apóiam um
candidato dos que são contrários a ele. Por outro lado, as pessoas se mobilizam
e se unem mais efetivamente quando têm adversários e percebem existir
diferenças entre elas e os demais. Os candidatos precisam, então, não só
identificar a si próprios, como também definir quem são seus adversários. Eles
não só se identificam, como assinalam uma diferença. Em todas as formas de
governo representativo, os políticos necessitam de diferenças que lhes sirvam
de base para mobilizar seus adeptos. As clivagens sociais, que fora dos
períodos eleitorais dividem a massa dos cidadãos, constituem um recurso
essencial.
Nas sociedades em que existe uma divisão, ao mesmo tempo duradoura e
especialmente notória, os políticos sabem, antes da eleição, que clivagens
devem explorar, e isso lhes permite demarcar o divisor de águas que irão propor
durante a campanha. Nessas circunstâncias, portanto, os termos da escolha
oferecidos pelos políticos representam uma transposição para a esfera eleitoral
de uma clivagem preexistente. É isso que acontece na democracia de partido. Mas
em algumas sociedades ocidentais a situação atual é diferente. Nenhuma linha
divisória socioeconômica ou cultural é mais evidente do que as outras. É óbvio
que os cidadãos não constituem uma massa homogênea que possa ser dividida de
qualquer maneira pelas escolhas que lhe são propostas, mas as linhas de
demarcação social e cultural são muito numerosas, se entrecruzam, mudam com
muita rapidez. Um eleitorado desse tipo é suscetível a várias possibilidades de
corte. Os políticos devem decidir, entre esses possiveis cortes, quais serão os
mais eficientes e mais favoráveis a seus propósitos. Uma linha ou outra de
divisão sempre pode ser provocada. Portanto, os articuladores dos termos da
escolha conservam uma relativa autonomia na seleção das clivagens que desejam
explorar. Nessas condições, a iniciativa dos termos da escolha eleitoral cabe
ao político e não ao eleitorado, e isso explica por que razão as decisões hoje
em dia aparentam ser primordialmente reativas.
Rigorosamente falando, em todas as formas de governo representativo o voto
constitui, em parte, uma reação do eleitorado aos termos que lhe são
oferecidos. Mas, quando esses termos espelham uma realidade social,
independentemente da ação dos políticos, tem-se a impressão que o eleitorado é
a fonte dos termos aos quais, na verdade, ele apenas responde com seu voto. O
caráter reativo do .voto é obscurecido por sua dimensão expressiva. Quando,
inversamente, os termos da escolha decorrem principalmente de ações
relativamente independentes dos políticos, o voto ainda é uma expressão do
eleitorado, mas sua dimensão reativa se torna mais importante e mais visível.
Isso explica por que o eleitorado se apresenta, antes de tudo, como um público
que reage aos termos propostos no palco da política. Por essa razão,
denominamos essa forma de governo representativo de "democracia do
público".
Os políticos, no entanto, têm uma autonomia apenas parcial ou relativa na
seleção dos assuntos que dividem o eleitorado; eles não podem inventar, com
total liberdade, os princípios da clivagem que irão propor. Nem toda divisão é
possível, porque o eleitorado já se encontra dividido por fatores sociais,
econômicos e culturais anteriores às decisões dos candidatos. Ademais, os
políticos não podem nem ao menos escolher entre as decisões como melhor lhes
aprouver. Eles sabem que a utilidade das possíveis divisões não é a mesma em
todos os casos: se um candidato fomenta uma linha de clivagem que não mobiliza
eficazmente os eleitores, ou uma outra que funciona contra ele, acaba perdendo
a eleição. Os políticos podem formular uma determinada opinião que, a seu ver,
divide o eleitorado em vez de uma outra qualquer, mas é a eleição que, em
último caso, irá sancionar ou não sua iniciativa. Os candidatos não sabem de
antemão onde está o divisor de águas mais eficiente, mas têm todo interesse em
fazer essa descoberta. Em comparação com a autonomia que os políticos usufruíam
na democracia de partido, a iniciativa deles aumenta nesse novo sistema, mas,
em compensação, eles precisam estar permanentemente empenhados em identificar
as questões que melhor dividem o eleitorado para explorá-las politicamente.
Mas, se ás clivagens mais eficazes são aquelas que correspondem às preocupações
dos eleitores, o processo tende a criar uma convergência entre os termos da
escolha eleitoral e as divisões do público. Na democracia de partido, ao
contrário, pode haver uma correspondência imediata entre esses dois aspectos,
porque os políticos sabem de antemão, e com razoável margem de segurança, quais
são as clivagens fundamentais do eleitorado. Na democracia do público, a convergência
sé estabelece com o tempo através de um processo de ensaio e erro: o candidato
toma a iniciativa de propor uma linha divisória durante a campanha, ou, com
menos riscos, a partir das pesquisas de opinião. O público, a seguir, responde
à divisão proposta e, por fim, o político corrige ou mantém a proposta inicial,
dependendo da reação do público.
Observa-se, além disso, que a escolha final oferecida aos eleitores não é
resultante de um plano consciente ou deliberado. Cada candidato propõe a
questão ou o termo que lhe parece mais eficaz e vantajoso. Mas a escolha
finalmente apresentada e a clivagem que ela provoca decorrem da combinação dos
termos oferecidos pelo conjunto dos candidatos. A configuração final da escolha
é produto da pluralidade de ações descoordenadas.
Nas democracias, a política é freqüentemente analisada por meio de uma
analogia com o funcionamento do mercado. A metáfora teatral do público e do
palco parece, no entanto, mais apropriada do que a da oferta e demanda na
descrição do processo eleitoral contemporâneo. A metáfora teatral expressa a
diferença entre aqueles que tomam a iniciativa dos termos da escolha e aqueles
que fazem as escolhas, e realça a independência parcial dos primeiros. A
metáfora do mercado, ao contrário, contém muitas dificuldades que se tornam
visíveis ao desdobrá-la em todas as suas implicações. Há razões, sem dúvida,
para descrever os políticos como empresários que competem para ganhar votos e
maximizar seus benefícios - as recompensas materiais e simbólicas do poder. Mas
caracterizar os eleitores como consumidores é bem menos apropriado. Um
consumidor que entra num mercado econômico sabe o que quer: suas preferências
independem dos produtos que lhe são ofertados. A teoria econômica supõe que as
preferências dos consumidores são exógenas. Na política, entretanto, esse
suposto não é realista e contraria a experiência. Na maior parte das vezes,
quando um cidadão entra no que se poderia chamar de mercado político, suas
preferências não estão ainda formadas. Ao contrário, elas se firmam à medida
que ele vai tomando conhecimento dos debates públicos. Na política a demanda
não é exógena; de modo geral, as preferências não preexistem à ação dos
políticos.(29)
Ainda não foi suficientemente valorizado o fato de que o próprio Schumpeter,
considerado como o fundador das teorias econômicas da democracia, admitia que,
em política, não existe propriamente uma demanda. Schumpeter insistia que na
esfera dos "assuntos nacionais e internacionais", não se justificava
a hipótese de que os indivíduos têm volições claramente definidas e
independentes das propostas dos políticos. Essas volições existem, mas somente
quando se relacionam com assuntos de importância imediata para as pessoas è das
quais elas têm conhecimento direto, "as coisas que lhes dizem respeito
diretamente, sua família, sua cidade ou seu bairro, sua classe, sua paróquia,
seu sindicato ou qualquer outro grupo do qual participem ativamente"
(Schumpeter, 1975, p. 258). Dentro desse "campo limitado", a experiência
direta da realidade permite a formação de preferências bem definidas e
independentes. Quando, ao contrário, "nos afastamos das preocupações
privadas de ordem familiar ou profissional para penetrar no domínio dos
assuntos nacionais e internacionais, que não se ligam direta e inequivocamente
àquelas preocupações particulares", o senso de realidade enfraquece
(Schumpeter, op. cit.). Assim escreve Schumpeter:
Esse empobrecimento do senso de realidade explica não só um empobrecimento
do senso de responsabilidade, como também uma falta de efetiva volição. As
pessoas têm, naturalmente, suas fórmulas prontas, suas aspirações, suas
fantasias e suas reclamações; elas têm sobretudo suas simpatias e antipatias.
Mas habitualmente isso não se compara ao que chamamos de vontade - a
contrapartida psíquica de uma ação responsável que visa objetivos
precisos" (Idem, ibidem, p. 261; a ênfase é minha).
O que chama a atenção nesse trecho é o fato de Schumpeter negar não só a
natureza racional ou responsável da vontade do indivíduo, além do limitado
círculo de suas preocupações de ordem particular, quanto a própria existência
da volição. Em trecho posterior, ele observa que os eleitores não têm uma
vontade política independente da influência das políticos. "A vontade que
observamos ao analisar os processos políticos", escreve Schumpeter,
"é, em grande parte, fabricada, e não espontânea (Idem, ibidem, p. 263).
Se não existe, em política, uma demanda exógena, a analogia entre a escolha
eleitoral e o mercado cai por terra. O único elemento válido na metáfora do
mercado é a idéia de que a iniciativa da proposta das alternativas de escolha
pertence a atores distintos e relativamente independentes daqueles que, afinal
de contas, fazem as escolhas. Sendo assim, a metáfora do palco e do público é
mais adequada, embora ainda imperfeita, para descrever essa realidade.
No democracia do público os representantes políticos são atores que tomam a
iniciativa de propor um princípio de divisão no interior do eleitorado. Eles
buscam identificar essas clivagens e trazê-las ao palco. Mas é o público que,
afinal, dá o veredicto.
2) A independência parcial dos representantes
Os estudos eleitorais reconhecem que a eleição dos representantes vem sendo
atualmente muito influenciada por uma "imagem", quer seja a imagem da
pessoa do candidato, quer seja a da organização ou partido a que ele pertence.
A palavra "imagem" pode, no entanto, se prestar a confusão. No
vocabulário jornalístico, ela é freqüentemente empregada, em oposição à de
"substância", no sentido de percepções vagas e superficiais
destituídas de conteúdo político. Na verdade, as pesquisas de opinião revelam
que as imagens elaboradas pelos eleitores não deixam de ter um conteúdo
político. Para citar apenas um exemplo, sabe-se que nas eleições francesas de
1981, que deram a vitória aos socialistas, o eleitorado não tinha idéias e
preferências claras acerca da política econômica formulada pelos socialistas
(nacionalizações, estímulo à demanda interna). Entretanto, ficou provado que a
vitória socialista resultou em grande parte de uma percepção, embora vaga, que
incluía um conteúdo: a idéia de que a crise era conseqüência das medidas postas
em prática pelo governo anterior e que era possível retomar o crescimento da
economia e do emprego (Cohen, 1986, pp. 78-80). Uma campanha eleitoral é um
processo de construção de antagonismos: ela joga várias imagens umas contra as
outras. Considerada isoladamente, cada imagem, na verdade, pode significar
quase tudo. O erro está exatamente em examinar cada uma delas em separado. Os
eleitores recebem uma variedade de imagens que competem entre si. Embora sejam
vagas, as imagens não são totalmente indeterminadas ou ilimitadas, pois a
campanha eleitoral cria um sistema de diferenças. Uma coisa pelo menos a imagem
dos candidatos não pode designar: a imagem de seus adversários. Uma campanha
eleitoral pode ser comparada a uma linguagem, como definiu o fundador da lingüística
contemporânea, Ferdinand de Saussure: o significado de cada termo é o resultado
da coexistência de vários termos que se distinguem uns dos outros.
É bem verdade que essas imagens são representações políticas muito
simplificadas e esquematizadas. Evidentemente, a importância dessas
representações esquemáticas decorre do fato de que muitos eleitores não estão
suficientemente capacitados para compreender os detalhes técnicos das medidas
propostas e as razões que as justificam. Mas a utilização de representações
simplificadas também é um meio de resolver o problema dos custos da informação
política. Já se observou que um dos maiores problemas enfrentado pelo cidadão
nas grandes democracias é a desproporção dos custos necessários para conseguir
a informação necessária e a influência que ele espera exercer sobre o resultado
das eleições. Esse problema não ocorre na democracia de partido, porque a
decisão dos eleitores se define por um sentimento de identidade de classe.
Igualmente poderia se dizer que a identificação partidária é uma solução para o
problema dos custos da informação na democracia de partido. Seja como for,
quando a identidade social e a identificação partidária perdem importância na
determinação do voto, surge a necessidade de encontrar caminhos alternativos
para obter informação política.
Já que os representantes são escolhidos a partir dessas imagens
esquemáticas, sobra-lhes um espaço de liberdade, após eleitos, para agir. A
causa de sua eleição foi um compromisso relativamente vago que naturalmente se
presta a diversas interpretações. Fica assegurada, portanto, a independência
parcial dos representantes, que sempre caracterizou o governo representativo.
3) A liberdade da opinião pública
Os canais de comunicação com a opinião pública são politicamente neutros,
isto é, não têm uma base partidária. Razões econômicas e tecnológicas causaram
o declínio da imprensa de opinião. Atualmente, os partidos políticos não
costumam ser proprietários de jornais de grande circulação. Por outro lado, o rádio
e a televisão não têm oficialmente uma orientação partidária. O resultado dessa
neutralização da mídia em relação às clivagens partidárias é que as pessoas
recebem as mesmas informações sobre um dado assunto, a despeito de suas
preferências políticas. Isso não significa que os assuntos ou os fatos -
diferentemente dos julgamentos - sejam percebidos de maneira
"objetiva", sem distorções, mas simplesmente que eles são percebidos
de maneira relativamente uniforme através do amplo espectro das preferências
políticas. Ao contrário, quando grande parte da imprensa se encontra sob
controle dos partidos (como acontece na democracia de partido), as pessoas
escolhem sua fonte de informação de acordo com suas inclinações partidárias; os
fatos ou os assuntos são percebidos pela ótica do partido em que votam.
Uma comparação entre o escândalo de Watergate e o caso Dreyfus, duas
situações nas quais a opinião pública teve um papel fundamental, pode
exemplificar o argumento. Descobriu-se que, durante a crise de Watergate, os
americanos tinham, de modo geral, a mesma compreensão dos fatos,
independentemente de sua preferência partidária e do julgamento que faziam. No
caso Dreyfus, ao contrário, parece que até mesmo a percepção dos fatos foi
diferente entre os vários setores da opinião pública: cada segmento do público
francês percebia os fatos através da ótica dos órgãos de imprensa que refletiam
suas inclinações partidárias (Lang & Lang, 1983, pp. 289-291).
Nesse mesmo sentido, descobriu-se que um dos aspectos mais evidentes das
últimas eleições francesas foi a homogeneização da imagem dos partidos no
interior do eleitorado. Ao que se sabe, durante as eleições parlamentares de
1986, os eleitores tinham aproximadamente a mesma percepção das posições dos
vários partidos. E claro que havia divergências no modo de avaliar os partidos,
e o voto expressou essas diferenças, mas os assuntos tratados eram percebidos
pelo eleitorado de modo quase idêntico, a despeito do partido em que votaram
(Grunberg et al., 1986, pp. 125-127).
Pode-se sugerir, portanto, que a percepção dos temas e dos problemas
públicos (diferentemente do julgamento dessas questões) tende hoje em dia a ser
homogênea e independente das preferências políticas expressas nas eleições. Mas
as pessoas podem assumir posições divergentes á respeito de um assunto
específico. A opinião pública, então, se divide em relação ao tema em questão;
mas a divisão resultante não reproduz as clivagens eleitorais, ou coincide com
elas: o público pode estar dividido em certas linhas de opinião durante as
eleições e em tendências diferentes quanto a questões específicas. Assim, volta
à cena uma possibilidade que desaparecera na democracia de partido: as
manifestações eleitorais e nãoeleitorais do povo podem não ser coincidentes.
Essa não-coincidência decorre principalmente da neutralização dos canais de
comunicação através dos quais a opinião púbica é formada, mas também tem origem
no caráter nãopartidarista das novas instituições que exercem um papel crucial
na expressão da opinião pública: os institutos de pesquisa.
Cabe notar que as pesquisas realizadas por esses institutos funcionam de
acordo com a mesma estrutura formal que caracteriza a democracia do público: o
palco e o público. Os técnicos responsáveis pela elaboração dos questionários
não sabem de antemão que perguntas poderão estimular respostas mais
significativas e trazer à tona as clivagens mais importantes do público. Assim,
eles tomam decisões de maneira relativamente autônoma. Desse ponto* de vista,
as pesquisas de opinião certamente não são uma expressão espontânea da vontade
popular - um efeito da ideologia da democracia direta que, apesar disso, ronda
os pesquisadores. A rigor, as pesquisas são constructos. Mas interessa aos
institutos de pesquisa oferecer aos clientes resultados de algum valor
preditivo e que revelem clivagens significativas. Assim como os políticos, os
pesquisadores trabalham por ensaio e erro.
O aspecto mais importante dessas organizações de pesquisa é que, assim como
os meios de comunicação de massa, elas são independentes de partidos políticos
(o que não significa que não introduzam distorções). Elas podem revelar, sem
inconvenientes, linhas divisórias inexploradas pelos candidatos. Desse modo, as
pesquisas de opinião contribuem para desfazer a associação entre as expressões
eleitorais e não-eleitorais da vontade popular.
Em certo sentido, reencontramos na democracia do público uma configuração
semelhante à do parlamentarismo, exceto pelo fato de que as pesquisas acabam
por conferir um caráter bastante peculiar à manifestação não-eleitoral da
vontade popular. De um lado, as pesquisas reduzem os custos da expressão
política individual. Participar de uma manifestação pública implica um gasto de
tempo e energia; assinar uma petição pode, às vezes, envolver riscos. Em
contrapartida, responder anonimamente a um questionário impõe apenas um custo
mínimo. Ao contrário do que se verifica no tipo parlamentar de governo
representativo, em que os altos custos das manifestações de rua e das petições
reservam para as pessoas mais intensamente motivadas a capacidade de expressão
política não-eleitoral, as pesquisas de opinião dão voz aos cidadãos
"apáticos" e não-engajados. Por outro lado, por serem pacíficas, as
pesquisas facilitam a expressão de opiniões políticas, ao passo que as
manifestações públicas sempre comportam um risco de violência, sobretudo quando
as opiniões estão muito polarizadas. Por conseguinte, a presença do povo
"nas portas do Parlamento" é mais freqüente do que se verifica no
modelo parlamentar: o povo não se faz presente apenas em ocasiões excepcionais.
4) As decisões políticas são tomadas após debates
Com a notável exceção do Congresso dos Estados Unidos, o Parlamento não é o
fórum do debate público. Cada partido se reúne em torno de seu líder e vota
disciplinadamente com. ele.(30) Assim, na democracia do público o Parlamento
tem tão pouca importância como fórum de discussão quanto na democracia de
partido, embora por razões diferentes. Mas as discussões dentro dos partidos e
as consultas entre o governo e os grupos de interesse ou associações são de
fato relevantes.
A grande novidade introduzida pelo terceiro tipo de representação se
encontra em outro aspecto. Durante as últimas décadas, os estudos eleitorais
têm acentuado a importância da instabilidade eleitoral. Vem aumentando o número
dos eleitores flutuantes que não depositam seu voto a partir de uma
identificação partidária estável. Um segmento crescente do eleitorado tende a
votar de acordo com os problemas e as questões postas em jogo em cada eleição.
Na verdade, sempre houve um eleitorado instável, mas, no passado, ele
secompunha de cidadãos pouco informados, pouco interessados em política e com
um nível baixo de escolaridade. A novidade introduzida pelo eleitorado flutuante
de hoje é que ele é bem-informado, interessado em política e razoavelmente
instruído. Boa parte desse fenômeno se deve à neutralização da mídia
informativa e de opinião: os eleitores interessados em política, e que buscam
se informar, são expostos a opiniões conflitantes, enquanto na democracia de
partido as opiniões do mais ativo e interessado dos cidadãos eram reforçadas
pelas fontes de informação a que ele recorria. A existência de um eleitorado
bem-informado e interessado, que pode ser empurrado de um lado para o outro,
estimula os políticos a expor suas idéias diretamente ao público. Pode-se
conquistar o apoio de uma maioria a uma determinada orientação política falando
diretamente ao eleitorado. O debate de temas específicos não fica mais restrito
aos muros do Parlamento (como no parlamentarismo), nem às comissões consultivas
entre partidos (como na democracia de partido); o debate se processa no meio do
próprio povo. Em conseqüência, o formato de governo representativo que hoje
está nascendo se caracteriza pela presença de um novo protagonista, o eleitor
flutuante, e pela existência de um novo fórum, os meios de comunicação de
massa.
Boa parte da insistência na idéia de que existe uma crise de representação
se deve à percepção de que o governo representativo vem se afastando da fórmula
do governo do povo pelo povo. A situação corrente, no entanto, toma outros
contornos quando se compreende que a representação nunca foi uma forma indireta
ou mediada de autogoverno do povo. O governo representativo não foi concebido
como um tipo particular de democracia, mas como um sistema político original
baseado em princípios distintos daqueles que organizam a democracia. Além
disso, no momento em que os partidos de massa. e as plataformas políticas
passaram a desempenhar um papel essencial na representação, se consolidou a
crença de que o governo representativo caminhava em direção à democracia. Um
exame mais minucioso da democracia de partido revela, porém, que os princípios
elaborados no final do século XVIII mantiveram sua força após a emergência dos
partidos de massa; apenas foram postos em prática de uma nova maneira em
virtude da mudança das circunstâncias externas. Quando se reconhece a
existência de uma diferença fundamental entre governo representativo e autogoverno
do povo, o fenômeno atual deixa de ser visto como sinalizador de uma crise de
representação e passa a ser interpretado como um deslocamento e um rearranjo da
mesma combinação de elementos que sempre esteve presente desde o final do
século XVIII.
NOTAS
* As idéias expostas neste ensaio fazem parte de meu próximo livro The
Principles of Representative Government, no prelo. Desejo agradecer a Paul
Bullen e Sunil Khilnani pela assistência na preparação da versão em inglês do
original escrito em francês.
1. Às vezes se diz que, se os ingleses e americanos sempre foram mais
favoráveis à idéia de partidos políticos, a hostilidade para com as
"facções" era uma característica da cultura política francesa no
final do século XV111. Esse modo de pensar não é correto. Na verdade,
praticamente todos os pensadores políticos de origem anglo-americana desse
mesmo período se opunham ao sistema de partidos (cf. Hofstadter, 1969,
principalmente capítulo 1). A exaltação dos partidos que se encontra em Burke é
uma exceção; ainda assim, Burke não tinha em mente partidos análogos aos que
vieram a dominar o cenário político a partir da segunda metade do século XIX.
2. Tanto o Caucus de Birmingham quanto a National Liberal Federation,
considerados como as primeiras organizações políticas de massa, foram fundados
em 1870.
3. Para citar apenas dois exemplos entre os mais significativos e
influentes, ver Schmitt, 1988, e Leibholz, 1966.
4. No original deste artigo, escrito em francês, o autor fala em
"democratie du public", mas na versão para o inglês foi usada a
expressão "tribunal of the public" para denominar essa terceira forma
de representação. Embora esta tradução tenha-se baseado na versão em inglês,
preferimos seguir, neste caso, a forma usada em francês, dada a peculiaridade
do termo "tribunal" em português e também para manter a coerência do
critério de construção dos tipos-ideais. (N. T.)
5. A análise das causas e conseqüências da preferência pela eleição, em
lugar do sorteio, foge ao escopo deste ensaio, mas é tratada em meu prüximo
livro The Principles of Representative Government.
6. Literalmente, "chamar de volta", "ordenar o regresso"
de algum lugar, no mesmo sentido em que, por exemplo, um governo "chama de
volta" ou "ordena o regresso" de seu pessoal diplomático em
virtude de uma crise política internacional. (N. T.)
7. Debate na Câmara dos Representantes (15 de agosto de 1789), in Kurland
& Lerner, 1987, vol. 1, pp. 413-8.
8. O sistema proposto é integralmente representativo por duas razões de
grande importância, na argumentação de Madison. Por um lado, ele destaca que
todas as instâncias (as duas casas do Congresso, o Presidente, os juízes) são
designadas pelo povo, direta ou indiretamente. Para que um governo seja
"republicano" (isto é, representativo), diz ele, "basta que as
pessoas que o administram sejam designadas direta ou indiretamente pelo
povo" (1787; p. 241, grifo de Madison). Portanto, a representação depende
exclusivamente da eleição. Por outro lado, a Constituição é integralmente
representativa, porque o povo reunido não desempenha papel algum. A
representação, acrescenta Madison, não era inteiramente desconhecida nas
repúblicas da Antigüidade: alguns magistrados eram eleitos e, além disso, a
assembléia do povo constituía um órgão de governo. A verdadeira novidade da
república americana não está na representação, mas na "total exclusão do
povo, como corpo coletivo, do sistema de governo" (op. cit., p. 387,
grifos de Madison).
9. O caráter absoluto da representação em Hobbes é analisado em Pitkin,
1967, pp. 15-27.
l0. Schmitt refere-se basicamente aos textos de Guizot reunidos em Histoire
des origines du gouvérnement représentatif(1851); ver Schmitt, 1988, pp. 34-5.
Sobre o papel do debate e a "soberania da razão" em Guizot, ver
Rosanvallon, pp. 55-63 e 87-94. Schmitt também faz referências a Burke, Bentham
e James Bryce.
11. "Se por razões práticas e técnicas os representantes do povo podem
decidirem lugar do povo, não há dúvida então que uma só pessoa de confiança
poderia muito bem decidir em nome desse mesmo povo e a argumentação, sem deixar
de ser democrática, poderia justificar um cesarismo antiparlamentar."
(Schmitt, 1988, p. 41).
12. Schmitt, 1988, pp. 35-43. Essa idéia é longamente analisada por
Habermas, 1989. Schmitt estabeleceu um paralelo entre o valor atribuído ao
debate pelos partidários do parlamentarismo e as virtudes do mercado exaltadas
pelos liberais: "Dá exatamente no mesmo que a verdade possa ser alcançada
por um embate irrestrito de opiniões e que a concorrência produza a
harmonia." (p. 35). A idéia de que a verdade nasce da discussão é bastante
usual; a tradição da filosofia ocidental, desde Platão, tem fornecido numerosas
versões dessa concepção. Não há razão alguma para considera-la uma crença
específica do pensamento liberal em seu sentido estreito.
13. O texto mais importante de Burke sobre o tema do debate é seu famoso
"Discurso aos eleitores de Bristol" (1774, p. 115): "Se o govcrno
fosse uma questão de preferência por um dos lados, o seu, sem sombra de dúvida,
seria o melhor. Mas o governo é uma questão de razão e julgamento, não de
preferência; que tipo de razão é essa em que a decisão precede a discussão, em
que um grupo de pessoas discute e outro decide, e onde os que tiram conclusões
estão a centenas de milhas daqueles que ouvem os argumentos? (...) O Parlamento
não é uma associação de embaixadores que têm opiniões divergentes e hostis,
cujos interesses cada um deve preservar como agente e defensor contra os
interesses de outros agentes e defensores; o Parlamento é a assembléia
deliberativa de uma nação, que tem um interesse, o de seu todo - nem os
objetivos locais, nem os preconceitos locais, deveriam fornecer a orientação,
mas o bem de todos, resultante da consideração do conjunto da nação."
14. A importância dessas frases (a ênfase é minha) nunca poderá ser
superestimada. Elas demonstram que Siéyès não pensa o debate parlamentar como
uma atividade desinteressada, guiada apenas pela busca da verdade, e que, para
ele, o interesse geral, ao contrário da vontade geral em Rousseau, não
transcende os interesses particulares e não tem uma natureza diferentes destes
últimos.
15. A afirmação de que, ao final dos debates, as opiniões "finalmente
chegam a uma única opinião", poderia induzir a pensar que Siéyès faz da
unanimidade o princípio do processo decisório. Isso não é verdade, como revela
outro trecho da mesma obra: "(...) mas, no futuro, exigir que a vontade comum
sempre seja o somatório exato de todas as vontades equivaleria a renunciar à
possibilidade de constituir uma vontade comum, significaria dissolver a união
social. É, portanto, absolutamente necessário optar pela admissão de todos os
aspectos da vontade comum em uma pluralidade reconhecida (isto é, a
maioria)" (1789a, p. 18). Mas, em suas considerações sobre o debate, a
intenção de Siéyès é outra; ele não se dá ao trabalho de repetir um argumento
já apresentado.
16. Locke, 1988, cap. VIII, §96, pp. 331-2. Os argumentos de Locke e Siéyès
são muito parecidos, mas o primeiro é mais incisivo; por isso o citamos aqui.
17. A Anti Corn Law League financiou a criação da revista The Economist. Cf.
Beer, 1982, pp. 43-8.
18. Esse traço do parlamentarismo clássico subsiste ainda hoje no Congresso
americano.
19. Para citar apenas algumas obras mais significativas e influentes nessa
área, ver: Siegtried, 1913; Berelson et al., 1954; Campbell et al., 1964.
20. Na Áustria, aliás, utilizava-se a expressão "mentalidade de
campo" (Lagermentalitãt) para descrever a cultura política do país no
entreguerras.
21. Kautsky, 1900, p. 157. Kautsky foi um dos principais líderes do partido
social-democrata alemão na virada do século.
22. Kelsen (1981, pp. 42-3) afirma que apenas por intermédio dos partidos as
pessoas podem exercer uma influência política: "A democracia é, necessária
e inevitavelmente, uma democracia de partido" (pp. 20-1). Kelsen foi
considerado próximo ao partido socialista austríaco. Ele teve um importante
papel na redação da Constituição da primeira república de seu país, na qual
propôs a criação de uma corte constitucional. Seu pensamento jurídico e
político teve grande influência sobre os líderes socialdemocratas, tanto na
Áustria quanto na Alemanha. Kautsky freqüentemente se referia a ele em seus
trabalhos.
23. Sobre a social-democracia e o princípio da conciliação ver Rustow, 1955,
e também Bergounioux & Manin, 1989, pp. 37-55.
24. Apesar de sua ênfase no conceito de conciliação, Kelsen não diz que os
partidos políticos que apresentam diferentes plataformas precisam preservar uma
liberdade de ação para que seja possível encontrar uma solução de compromisso
entre a maioria e a oposição, ou entre os membros de uma coalizão.
25. O conceito de "neocorporativismo" pode ser mal compreendido se
não se percebe que ele se baseia no reconhecimento de um conflito fundamental
entre os interesses, enquanto o corporativismo tradicional presumia uma
complementaridade funcional - e, portanto, uma harmonia - entre as forças
sociais. Não se trata de uma diferença abstrata ou ideológica: nos arranjos
neocorporativistas, um dos principais instrumentos do conflito social, o
direito de greve, permanece intocado, enquanto no corporativismo tradicional a
greve é proibida. Ver Bergounioux & Manin, 1989, pp. 51-5.
26. Um dos primeiros teóricos a comentar que as preferências políticas são
em grande parte uma resposta à escolha eleitoral oferecida aos eleitores,
independentemente das características socioeconômicas e culturais destes, foi V
O. Key; ver especialmente Key, 1963a e 1963b. Na década de 70, essa idéia foi
aproveitada e desenvolvida em vários outros estudos. Ver, por exemplo: Pomper,
1975; e Nie et al., 1976. Pesquisas recentes realizadas na França também chamam
a atenção para o papel determinante dos termos da escolha oferecidos ao
eleitorado. Ver, especialmente: Lancelot, 1985; e Gaxie, 1985.
27. "Há muitas coisas que a lei não pode prever de modo algum, e estas
devem ser necessariamente deixadas a critério daquele que controla o poder
executivo, para ser por ele determinadas, conforme requeiram o interesse e o
bem público." (Locke, 1988, cap. XIV, § 159).
28. Ver, por exemplo, Nie et al., 1976, pp. 319, 349. "Um tema simples
mas importante atravessa quase todo este livro: o público responde aos
estímulos políticos que lhe são oferecidos. O comportamento político do
eleitorado não é determinado unicamente por fatores sociais e psicológicos, mas
também pelas questões do momento e pela maneira como os candidatos as
apresentam." (p. 319; a ênfase é minha).
29. Manin, 1987, pp. 338-68 contém um aprofundamento desse ponto.
30. Veja o tópico "Personalização da escolha eleitoral", na página
25.
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