quarta-feira, 29 de maio de 2013

"Quero uma poesia que mate"
LeRoi Jones

Estamos a dormir e a sonhar que acordámos
com os nervos ligados
a uma bateria de imagens coléricas,
pólvora enrolada na língua
e dedos recriminadores apontando tudo,
dedos enfiados bem fundo na garganta, nessa ferida absurda.

Já tive oportunidade de dizer-te que sou um animal obcecado,
que faço o olhar descer como a noite pelas costuras
no vestido de senhoras sentadas a uma hora destas,
lendo bestsellers nos cafés mais demorados
de Lisboa. Posso agora acrescentar que perdi toda a esperança
de vir a ser recolhido nas suas mãos e de ser acarinhado
nesses regaços, a não ser
que sejam elas a mudar de ideias,
que lhes suba ao espírito um fervor demencial
e rasgando o ventre dêem à luz um eloquente suicida.

Estamos eu, tu, estamos todos à espera
de uma criança em chamas que venha fazer letra morta
dos discursos que nos afogam, de todos os poetas já nacionalizados
e da exausta metafísica que nos gela o sangue.
Essa criança tarda em vir, se calhar calou-se à nascença,
seja como for
não nos resta outra coisa senão chamar mais alto.
Enquanto não vem
vamos nós saindo de chinelos para o cosmos,
em busca desse electro-choque experimental, o texto-motor
que nos vai servindo de exercício e passatempo.

À noite deixo a luz do corredor acesa e a porta do quarto
entreaberta,
não por medo do escuro, mas para conduzir
os demónios aos meus sonhos.
Quero acordar inspirado, há que erguer uma obra
nem que seja só para depois vê-la arder.
Morrer para ela – ainda que vivas –,
ainda que depois de estar escrita a última linha,
permaneças à margem e não te deixes convencer.



Diogo Vaz Pinto


Nevralgias
Blogue "O Melhor Amigo"

Segunda-feira, 3 de Novembro de 2008

Cartas a Lucílio

"Quando vires alguém com um estilo rebuscado e cheio de adornos podes ter a certeza de que a sua alma apenas se ocupa igualmente de bagatelas. Uma alma verdadeiramente grande é mais tranquila e senhora de si a falar, e em tudo quanto diz há mais firmeza do que preocupação estilística. Tu conheces bem os nossos jovens elegantes, com a barba e o cabelo todo aparado, que parecem acabadinhos de sair da fábrica! De tais criaturas nada terás a esperar de firme ou sólido. O estilo é o adorno da alma: se for demasiado penteado, maquilhado, artificial, em suma, só provará que a alma carece de sinceridade e tem em si algo que soa a falso."


Sêneca

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Notas de Petersburgo de 1836

de Nikolai Gogol

“Petersburgo é um rapazinho cheio de expediente, nunca fica em casa, sempre se veste com capricho e, todo enfeitado diante da Europa, faz uma reverência para as pessoas de além-mar. (...) Moscou é um grande bazar; Petersburgo é uma loja iluminada. Moscou é necessária para a Rússia; para Petersburgo, a Rússia é necessária.”

“Em suma, Petersburgo, todo o mês de abril, parece preparar-se para alçar vôo. Desprezar com alegria a vida sedentária e sonhar o tempo todo com estradas distantes, sob outros céus, nos bosques verdejantes do sul, em terras de ar novo e fresco. Com alegria para aquele a quem, no fim de uma rua de Petersburgo, se delineiam as montanhas do Cáucaso cobertas de nuvens, ou os lagos da Suíça, ou a Itália coroada de anêmonas e loureiros, ou a linda Grécia e suas vastidões desertas... Mas basta, meu pensamento: em ambos os lados à minha volta, ainda se erguem as casas de Petersburgo...”

O Chicago! O Widerspruch!

 Volker Braun


Oh Chicago! Oh discrepância! / Brecht, teu charuto acabou se apagando? / Durante os terremotos que provocamos / Nos Estados construídos sobre a areia. / O socialismo vai-se, lá vem Johnny Walker. / Não consigo fixá-lo nos pensamentos / Que aliás estão caindo. As ruas quentes / De outubro são as trilhas frias / Da economia, Horácio. Enfio o chiclete / na bochecha / Eis que é chegado o nada significante.

Koktebel

Para meus versos, escritos num repente
Quando eu nem sabia que era poeta,
Jorrando como pingos de nascente,
Como cintilas de um foguete,

Irrompendo como pequenos diabos,
No santuário, onde há sono e incenso,
Para meus versos de mocidade e morte,
— Versos que ler ninguém pensa! –

Jogados em sebos poeirentos
Onde ninguém os pega ou pegará)
Para meus versos, como os vinhos raros,
Chegará seu tempo.

Maio de 1913 - Koktebel
Marina Tsvetaeva

*em russo*

Моим стихам, написанным так рано,
Что и не знала я, что я — поэт,
Сорвавшимся, как брызги из фонтана,
Как искры из ракет,

Ворвавшимся, как маленькие черти,
В святилище, где сон и фимиам,
Моим стихам о юности и смерти,
— Нечитанным стихам!

Разбросанным в пыли по магазинам,
Где их никто не брал и не берёт,
Моим стихам, как драгоценным винам,
Настанет свой черёд.

Коктебель, 13 мая 1913
Цветаева
.



Paraíso perdido


Aryia

De extremo a extremo
O céu está pegando fogo
E nele desaparecem
Todas as esperanças e sonhos.

Mas você está dormindo
E um anjo voa na sua direção
Limpa suas lágrimas,
E no sono você ri!

Adormeça,
Nos meus braços adormeça,
Adormeça
Sob a melodia da chuva...
Lá longe
Lá onde termina a borda do céu
Você encontrará
O paraíso perdido.

No sono um demônio astuto
Pode atravessar paredes
E o fôlego dos adormecidos
Ele sabe raptar.

Não é preciso ter medo,
Minha alma estará por perto,
Para os teus sonhos
Velar até o amanhecer.

Estendo minhas mãos -
Para você encher com sua dor,
Encha-as com a tristeza
Com o medo das trevas que ecoam,

E você nem perceberá
Que o céu está pegando fogo
E a vida desmantelando
Todas as esperanças e sonhos.

Adormeça,
Nos meus braços adormeça,
Adormeça
Sob a melodia da chuva...
Lá longe
Lá onde termina a borda do céu
Você encontrará
O paraíso perdido.

*em russo*

~Потерянный рай~
Группа Ария

От края до края
Hебо в огне сгорает,
И в нем исчезают
Все надежды и мечты.

Hо ты засыпаешь,
И ангел к тебе слетает,
Смахнет твои слезы,
И во сне смеешься ты!

Засыпай,
Hа руках у меня засыпай,
Засыпай
Под пенье дождя...
Далеко,
Там, где неба кончается край,
Ты найдешь
Потерянный рай.

Во сне хитрый демон
Может пройти сквозь стены,
Дыханье у спящих
Он умеет похищать.

Бояться не надо,
Душа моя будет рядом,
Твои сновиденья
До рассвета охранять.

Подставлю ладони -
Их болью своей наполни,
Hаполни печалью,
Страхом гулкой темноты,

И ты не узнаешь,
Как небо в огне сгорает,
И жизнь разбивает
Все надежды и мечты.

Засыпай,
Hа руках у меня засыпай,
Засыпай
Под пенье дождя...
Далеко,
Там, где неба кончается край,
Ты найдешь
Потерянный рай.


domingo, 26 de maio de 2013

fragmento

me declaro cavalo e pecador
temporais de um corpo inexistente.
em dezembro me caso por amor."

romério rômulo

fragmento

me declaro cavalo e pecador
temporais de um corpo inexistente.

em dezembro me caso por amor."

 romério rômulo
"Para quem vive numa jaula, afogar-se é o melhor que lhe pode suceder.".

 (Por MIA COUTO)
Roberta Tostes Daniel

Poesia feita escápula,
acesa em Ícaro
(desvelo de seus remos),
praias abertas em que nadam
antigos desastres.

Ou sob o eixo da lua, sangrenta,
enchendo o mar para o que bebe,
águas singradas de sono
tangendo a pureza, até o leite.

Porque sucumbem, suas imagens
trazem o retrato potencial:
o exame das formas inexistentes.

E ilhargas, calos, tendões;
anatomia alada;
escreve-se para rompê-la.

Chegar onde saúdam -
o sol do breve entendimento.



Destino em minhas mãos

Não quero sentir o fio da navalha em meu pescoço tão pouco a lamina de uma
espada.
Mas se o destino que tenho não for possível ser mudado .
Não me resta nada esperar.
A cigana leu o meu destino,torço para ela ter errado.
Minhas mãos não ficam mais a mostras,tenho receio de uma outra cigana traçar o mesmo destino.
Olho para as ruas !
cada canto vejo se encontro um beco para eu me esconder da morte que está a caminho.
Procuro no nada, para ver se encontro o tudo.
O tudo não existe.
Que tolo sou eu!
Apesar de estar vivo não enxergo nada .
Fecho os olhos e faço um ensaio para a morte.
Sinto a sensação de alegria,descubro que a vida é uma ilusão,e que a morte por certa é a única razão.
Razão por eu ter nascido,ter crescido,ter amado,ter sido amado,ter odiado,sendo também odiado,ter sido triste,alegre,feliz,infeliz.
Momentos de harmonia sutis fizeram com que eu me sentisse preso neste mundo.
Volto para a realidade.
Frente ao espelho de meu banheiro com a navalha nas mãos,olho a lamina reluzente e me pergunto:
Como posso ter medo do fio da navalha?
Será que vou me suicidar?
A cigana se enganou.
Rio com um sorriso de satisfação ,por ter a certeza que a cigana não conhece as linhas de minhas mãos.
O destino a mim pertence e sendo assim ,pego uma espada para cortar o corpo da mulher que me enganou.
Encontro a arma cheia de poder naquele momento.
Sim,ela decidira se a cigana continuara a viver.
Espada na cinta saio á procura da velha adivinha.
Encontro uma esquina.
Lá está ela sentada em uma pedra a me esperar,me aproximo sem nada falar.
Ela me olha sem medo e sem nada dizer.
Empunho a espada ao alto e falo:
Esta é a arma da justiça,pagará com a vida por ter me enganado.
Falou-me que estava escrito em minhas mãos.
que a morte estava a me rondar e que o suicídio estava a caminho.
Como pode ver agora, nada me aconteceu.já esta para escurecer e não deixarei passar impune a sua mentira.
Desço o braço com toda força que tenho ,para atingir o meu alvo.
A lamina bate ao lado da cigana,atingindo a pedra em que ela se encontra sentada.
Perco o equilíbrio e bato com a cabeça na pedra.
O ensaio de antes torna-se realidade.
Um filete de sangue escorre de minha cabeça a céu aberto e a espada ao meu lado
Faz se cumprir o destino que a cigana havia previsto.
Agora vivo no mundo da razão ,quem sabe um dia voltarei ao mundo da ilusão.



Ubirajara Souza


 Casi fuera del cielo ancla entre dos montañas 
la mitad de la luna. 
Girante, errante noche, la cavadora de ojos. 
A ver cuántas estrellas trizadas en la charca. 

Hace una cruz de luto entre mis cejas, huye. 
Fragua de metales azules, noches de las calladas luchas, 
mi corazón da vueltas como un volante loco. 
Niña venida de tan lejos, traída de tan lejos, 
a veces fulgurece su mirada debajo del cielo. 
Quejumbre, tempestad, remolino de furia, 
cruza encima de mi corazón, sin detenerte. 
Viento de los sepulcros acarrea, destroza, dispersa tu raíz soñolienta. 
Desarraiga los grandes árboles al otro lado de ella. 
Pero tú, clara niña, pregunta de humo, espiga. 
Era la que iba formando el viento con hojas iluminadas. 
Detrás de las montañas nocturnas, blanco lirio de incendio, 
ah nada puedo decir! Era hecha de todas las cosas. 

Ansiedad que partiste mi pecho a cuchillazos, 
es hora de seguir otro camino, donde ella no sonría. 
Tempestad que enterró las campanas, turbio revuelo de tormentas 
para qué tocarla ahora, para qué entristecerla. 

Ay seguir el camino que se aleja de todo, 
donde no esté atajando la angustia, la muerte, el invierno, 
con sus ojos abiertos entre el rocío
PABLO NERUDA
 [Nada de revolta: honremos as idades nas suas quedas sucessivas e o tempo na sua voracidade.]
 Victor Segalen

[Descansa do som no silêncio, e do silêncio digna-te tornar ao som. Sozinho, se souberes estar só, deixa-te ir por vezes até à multidão.] 
Victor Segalen

Fallece Calderón de la Barca



25 de mayo de 1681

El 25 de mayo de 1681 falleció el dramaturgo español Pedro Calderón de la Barca. Estudió en Alcalá de Henares, Salamanca y viajó por Italia y Flandes donde empezó a escribir sus primeras obras Amor, honor y poder y El mayor encanto, el amor.

Fue ordenado sacerdote en 1561 y llegó a ser el dramaturgo más exitoso de la corte. En 1663 el rey lo designó capellán de honor y se trasladó definitivamente a Madrid.

Su producción artística consta de ciento diez comedias y ochenta autos sacramentales, loas, entremeses y otras obras menores. Calderón partió de las pautas dramáticas establecidas por Lope de Vega y entre sus obras destacan: El príncipe constante y El mágico prodigioso, El alcalde de Zalamea, La vida es sueño, una de las obras de la literatura española de valor universal. Con Calderón de la Barca adquirieron especial relevancia la escenografía (maneras de apariencia) y la música.

Meu amorzinho



Meu amorzinho
Leve-me com você
Lá na terra distante
serei tua esposa

Minha querida,
Eu te levaria
Mas lá na terra distante
eu já tenho esposa.

Meu amorzinho
Leve-me com você
Lá na terra distante
serei tua irmã.

Minha querida,
Eu te levaria
Mas lá na terra distante
eu já tenho irmã.

Meu amorzinho
Leve-me com você
Lá na terra distante
serei uma estranha pra ti.

Minha querida,
Eu te levaria
Mas lá na terra distante
eu não preciso de uma estranha.

*em russo*

~Миленький ты мой

Миленький ты мой
Возьми меня с собой
Там в краю далёком
буду тебе женой

Милая моя,
Взял бы я тебя
Но там в краю далёком
есть у меня жена.

Миленький ты мой
Возьми меня с собой
Там в краю далёком
буду тебе сестрой

Милая моя,
Взял бы я тебя
Но там в краю далёком
есть у меня сестра.

Миленький ты мой
Возьми меня с собой
Там в краю далёком
буду тебе чужой

Милая моя,
Взял бы я тебя
Но там в краю далёком
чужая ты мне не нужна.

(Bem-feito... hehehe)


.
Se não morre aquele que escreve um livro
ou planta uma árvore,
com mais razão não morre o educador
que semeia a vida e escreve na alma.

(Bertold Brecht)

BRIONI


à Annie

Os cervos são borboletas
as borboletas são peixes
os peixes são claridade
a claridade é morte
a morte é laranja
a laranja é vulcão
o vulcão é feno
o feno é elefante
o elefante é afogamento
o afogamento é riso
o riso é montanha
a montanha é anel
o anel é solidão
a solidão é areia
a areia é roda
a roda é terremoto
o terremoto é cílios
os cílios são cascata
a cascata é bigorna
a bigorna é lembranças
as lembranças são vermelho
o vermelho é chicote
o chicote é fim
o fim é mel
o mel é nuvem
a nuvem é o infinito
o infinito é infinito
( 22 de junho de 2001)

BRIONI
à Annie

Les cerfs sont papillons
les papillons sont poissons
les poissons sont clarté
la clarté est mort
la mort est orange
l’orange est volcan
le volcan est foin
le foin est éléphant
l’éléphant est noyade
la noyade est rire
le rire est montagne
la montagne est anneau
l’anneau est solitude
la solitude est sable
le sable est roue
la roue est tremblement de terre
le tremblement de terre est cils
les cils sont cascade
la cascade est enclume
l’enclume est souvenirs
les souvenirs sont rouge
le rouge est fouet
le fouet est fin
la fin est miel
le miel est nuage
le nuage est l’infini
l’infini est infini

IVSIC, Radovan. "BRIONI". In:Poesia Reunida. Tradução de Eclair Antonio Almeida Filho.1. Ed.,Lumme Editor, São Paulo, 2013, p.p. 304. 305.

Fonte : Vidraguas


sexta-feira, 24 de maio de 2013

Na Gare




Selma Baptista :Estou aqui pensando nesta pequena estação de trem da minha cidade natal há muito e muitos anos... quando talvez eu ainda nem existisse! Que linda metáfora da vida... partir, voltar, esperar... movimentos que nós fazemos ao longo da vida e na maioria das vezes nem percebemos! Acho lindo isso. Já andei olhando várias fotos de pequenas estações de trem, perdidas no tempo! Lírico.

Olinto Simões- Prefiro pensar sobre a vida no local onde desembarquei do trem que me trouxe, e aproveitar muito bem o tempo que tenho antes que precise eu, na mesma estação, embarcar no trem que me levará.
De onde ele saiu, pra me trazer, não faço a menor ideia, pra onde me levará..., idem. Portanto, cumpre-me aqui onde estou, fazer o meu melhor. Pelo menos, tento, se consigo, é outra história.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Vermelho e o Negro


Renato Janine Ribeiro

Estou com Stendhal na cabeça. Lembrei o Vermelho e o Negro; Julien Sorel, não sabendo como reconquistar a amada Matilde, segue o conselho de um amigo e começa a cortejar - copiando cartas de amor que o amigo lhe deu - uma conhecida da namorada. São dezenas de cartas, em linguagem tão empolada que, diz Stendhal, a vantagem do discurso enfático é que ninguém presta atenção nos absurdos. Por exemplo, ele escreve Londres em vez de Paris, mistura as datas e nada disso causa problemas. Faz pensar em pessoas que falam de um modo que nem elas, nem ninguém, entende...

Servidões


até cada objecto se encher de luz e ser apanhado
por todos os lados hábeis, e ser ímpar,
ser escolhido,
e lampejando do ar à volta,
na ordem do mundo aquela fracção real dos dedos juntos
como para escrever cada palavra:
pegar ao alto numa coisa em estado de milagre: seja:
um copo de água,
tudo pronto para que a luz estremeça:
o terror da beleza, isso, o terror da beleza delicadíssima
tão súbito e implacável na vida administrativa

Herberto Helder, em Servidões, livro de poemas inéditos.



Sim, no próprio templo do Deleite
É que a Melancolia tem, velada, o seu supremo santuário,
Embora só a veja aquele cuja língua estrênua
Rebente a uva da Alegria contra o céu da boca;
A alma deste provará a tristeza que é o seu poder,
E em meio aos seus troféus nublados ficará suspensa.

John Keats
trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos.

Entre muitos




por Wislawa Szymborska


"Sou quem sou.
Inconcebível acaso
como todos os acasos

Fossem outros
os meus antepassados
e de outro ninho
eu voaria
ou de sob outro tronco
coberta de escamas eu rastejaria.

No guarda-roupa da natureza
há trajes de sobra.
O traje da aranha, da gaivota, do rato do campo.
Cada um cai como uma luva
e é usado sem reclamar
até se gastar.

Eu também não tive escolha
mas não me queixo.
Poderia ter sido alguém
muito menos individual.
Alguém do formigueiro, do cardume, zunindo no enxame,
uma fatia de paisagem fustigada pelo vento.

Alguém muito menos feliz,
criado para uso da pele,
para a mesa da festa,
algo que nada debaixo da lente.

Uma árvore presa à terra
da qual se aproxima o fogo.

Uma palha esmagada
pela marcha de inconcebíveis eventos.

Um sujeito com uma negra sina
que para os outros se ilumina.

E se eu despertasse nas pessoas o medo,
ou só aversão,
ou só pena?

Se eu não tivesse nascido
na tribo adequada
e diante de mim se fechassem os caminhos?

A sorte até agora
me tem sido favorável.

Poderia não me ser dada
a lembrança dos bons momentos.

Poderia me ser tirada
a propensão para comparações.

Poderia ser eu mesma – mas sem o espanto,
e isso significaria
alguém totalmente diferente."

Tradução: Regina Przybycien

Crónica da pomba branca


fragmento da Crónica da pomba branca, de António Lobo Antunes:

"(...) Fininha melancolia vem e cobre-me. Não me abandones neste momento que preciso de coisas suaves, dedos na minha testa, uma voz que me garanta ter um lugar no mundo. Não derivado aos livros, pelo menino que sou. Que desamparo às vezes: tenho esperança de escondê-lo bem. Sou tão importante eu, sou um grande autor e acabei de nascer. Uma impressão num dente mas a perspectiva da broca
- Ora cá temos uma cáriezinha
desagrada-me. E os caixotes do lixo cambulhando para a rua. Vivo só. Não me custa. Quer dizer às vezes, à noite, custa, mas faz de conta que não custa. Ando a escrever um livro que não faço a menor ideia quando acabarei: são tão difíceis as palavras e demorei anos a dar conta disso. Ao princípio era canja. Até a gente perceber que há uma diferença entre escrever bem e escrever mal: então começa a angústia. Um pouco mais tarde percebe-se que há uma diferença, ainda maior, entre escrever bem e obra-prima: então a aflição é completa. De forma que aqui ando eu, de caneta na mão, na minha aldeia no centro da cidade em que acabado o jantar mulheres da vida, travestis. Bares de alterne perto, com uma fila de taxis à espera: tudo isso cheira a miséria rasca. Onde pára aquela que morava no alto da cidade? Num degrau à espera? Nasci de uma mulher e há ocasiões em que me esqueço disso. Devia lembrar-me o tempo inteiro. Onde pára o meu pai que, de certeza, se foi embora do cemitério para a companhia dos seus cachimbos, dos seus livros. Dizia
- Bem vês
e fazia um silêncio antes de continuar. Bem vejo o quê, pai? Os pais estão entre nós e a morte. Se calhar um homem só se torna homem depois do pai morrer. Homem no sentido mais profundo do termo, qualquer que tenha sido a nossa relação com ele. Depois do enterro do meu avô o meu pai fechou-se no escritório e pôs Bach tão forte que se devia ouvir na Venezuela. Ficou para ali horas a ensurdecer o mundo. Quem aqui não sentiu esta nossa fininha melancolia? Chamo-me António. Ao encontrar-me de manhã para a barba penso
- Chamo-me António,
um nome tão comum, de pobre. Se fosse rico chamava-me Bernardo ou Lourenço ou Gonçalo. Assim, consolo-me com António. Apesar de tudo parece-me menos feio que Hernâni. O que importa? Chamo-me Eu. E o Eu debruçado para o papel nas redacções em que tenho gasto a vida. (...)"

terça-feira, 21 de maio de 2013

ESSAS COISAS:


 Carlos Drummond.

«Você não está mais na idade
de sofrer por essas coisas.»

Há então a idade de sofrer
e a de não sofrer mais
por essas, essas coisas?

As coisas só deviam acontecer
para fazer sofrer
na idade própria de sofrer?

Ou não se devia sofrer
pelas coisas que causam sofrimento
pois vieram fora de hora, e a hora é calma?

E se não estou mais na idade de sofrer
é porque estou morto, e morto
é a idade de não sentir as coisas, essas coisas?


_______________________________________________________
Carlos Drummond de Andrade, in 'As Impurezas do Branco'

Poema Mestiço





escrevo mediterrâneo
na serena voz do Índico

sangro norte
em coração do sul

na praia do oriente
sou areia náufraga
de nenhum mundo

hei-de
começar mais tarde

por ora
sou a pegada
do passo por acontecer...
MIA COUTO

No livro "Raiz de Orvalho e outros poemas"