Paulo Leminski
Literatura, isto é, escrever sem publicar, é uma espécie de vício
secreto. Pequena perversão. Que nem colocar calcinhas de mulher. Seus
praticantes estão sujeitos a muito mais. Olhai uns pares deles.
COMPLEXO DE CASTRO ALVES - Leva os poetas a delirar se imaginando numa
tribuna em praça pública, cercado por um mar de povo, recebendo o brado do seu
bardo, o verbo quente e a exortação para a ação. Os poetas afetados deste mal
substituem a ação pela palavra.
COMPLEXO DE MACHADO DE ASSIS - Manifesta-se em um desejo irreprimível de
entrar para o Serviço Público. Levar vida reservada e tímida. Ter atitudes
ambíguas sobre os problemas da comunidade. Esperar a glória, pacientemente.
Alguns casos mais graves levam os pacientes a fundar academias.
COMPLEXO DE JORGE AMADO - Leva os pacientes a escrever livros e mais
livros, sofregamente, uns cada vez mais parecidos com os outros.
Frequentemente, vence pelo cansaço e acorda consagrado internacionalmente.
Pertence ao quadro deste complexo o sonhar com o Nobel. Alguns têm frenesis em
que se imaginam traduzidos para 18 idiomas.
MAL DE ROSA - Só faz vítimas entre membros do Corpo Diplomático.
O paciente imagina que é um jagunço do sertão. Conta casos estranhos,
numa linguagem meio antiga e meio sertaneja. E diz em entrevistas na Europa: -
Nós, no sertão…
SÍNDROME DE BORGES - O escritor-paciente imagina-se dentro de um livro,
atacado por citações, vidas de outros séculos. Para o paciente afetado desta
moléstia, o céu não tem estrelas. Tem asteriscos.
Ocorre de o paciente, andando em círculos, tropeçar numa vírgula,
engolir o parágrafo e bater com a cabeça num travessão.
Devem ser constantemente vigiados.
Se não melhorarem, o jeito é encaderná-los e doá-los a uma Biblioteca
Pública.
MAL DE DRUMMOND - Apenas uma variante do Complexo de Machado de Assis.
O doente pode apresentar dores abdominais.
Bem na altura de Minas Gerais no mapa do Brasil.
A seguir, os delírios.
O paciente grita:
-Tirem essa pedra do meio do meu caminho!
ATAQUE A JOÃO ANTONIO- Os acometidos desse mal crêem-se jogadores de
sinuca, malandros da noite e velhos boêmios. Alguns tentam se parecer com
Adoniram Barbosa. Quando além disser “literatura é um corpo-a-corpo com a
vida”, esteja certo: ali está alguém sofrendo do Mal de João Antonio. Vivem
normalmente de uma dieta de Górki e Lima Barreto. O melhor modo de curá-los é
convidá-los para uma partida de sinuca.
PARALISIA CABRALINA - Súbito enrijecimento do nervo poético, causado por
leituras intensivas de João Cabral de Melo Neto. O cabra da peste acometido
desse mal começa a ver tudo em quadradinhos e a só reconhecer rimas toantes.
Nos casos mais graves, desenvolve pedras nos rins, na bexiga e na veia.
Apresenta tendências para litogravura, a marmoraria, ou coleciona cristais. Tem
coração de pedra, e só se comove com agrestes, caatingas e canaviais
pernambucanos. Normalmente, leva uma vida e morte severina.
LEMINSKI, Paulo. "Ensaios e Anseios Crípticos". Curitiba, Pólo
Editorial do Paraná, 1997. p. 24-25.
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