sábado, 24 de outubro de 2009

Uma novidade no plano mundial: a “História Geral da América Latina” aborda com maior ênfase o passado das sociedades e não o passado das nações que ocupam a parte central e meridional do continente americano. O projeto, no entanto, enfrentou a carência de fontes históricas sobre populações indígenas e afro-americanas.




Com a publicação no início deste ano do último volume da "História Geral da América Latina", a UNESCO encerra um amplo canteiro de obras que oferece uma visão global do passado de uma imensa região que se estende por 22 milhões de quilômetros quadrados. A envergadura desta História Geral – são mais de 5.600 páginas – é excepcional tanto por seu tamanho quanto pelo número de autores que colaboraram no projeto. De acordo com Germán Carrera Damas, historiador venezuelano e presidente do Comitê de Redação, esta obra de referência marca uma inovação fundamental por constituir a primeira tentativa no sentido de escrever a História das Sociedades, e não das Nações, do Continente Latino-Americano.

“Esta obra encarna o esforço despendido pelas sociedades latino-americanas para se compreenderem a si mesmas”, declara Carrera Damas. É isso que a faz original. “Na realidade, já existiam histórias gerais da América Latina. Elas, no entanto, estavam muito mais focalizadas nos Estados e nas nacionalidades em vez de levarem em consideração as sociedades. Foram estas, precisamente, que constituíram o núcleo de nosso estudo”. Enquanto uma história factual nacional segue o fio cronológico do passado de determinado país, a obra publicada pela UNESCO adota uma abordagem temática que vai além das fronteiras nacionais: o capítulo dedicado às ditaduras latino-americanas depois de 1930, por exemplo, trata este tema em sua globalidade, sem se limitar a um único país ou somente a uma parte do continente.

Entre as inovações da obra, Damas destaca a que integra a história do Brasil em uma visão global da história do continente, sem deixar de dedicar capítulos específicos a esse país.

Ele ressalta outra particularidade desta coleção: o universalismo. “Há pouco tempo, a história do mundo continuava sendo escrita em países como França e Inglaterra. Hoje em dia, porém, esforçamo-nos por elaborar uma história realmente universal.” Os nove volumes desta história são o resultado da colaboração de 240 historiadores da América Latina, da Europa e dos EUA. Damas também recorda a criteriosa observação de um historiador chinês quando a “História do Desenvolvimento Científico e Cultural da Humanidade”, da UNESCO, era elaborada. “Vocês falam de ‘Renascença’, mas quando ela ocorreu na Itália, os chineses já tinham passado por quatro decadências e três renascenças!”

Para o historiador venezuelano, a UNESCO desempenhou um papel primordial na realização dessa operação científica de longo prazo. “Aliás, ela era a única organização capaz de empreender tal tarefa ao garantir a liberdade científica e o tempo, assim como os recursos humanos, científicos e materiais indispensáveis. Uma empresa privada não teria condições de realizar sequer o trabalho de redação, que seria extremamente onerosa mesmo para uma instituição universitária.”

Paradoxalmente, porém, os aspectos mais positivos deste projeto, como a dimensão multicultural da equipe de redação e o financiamento de uma organização internacional, geraram alguns problemas: vários autores, entre os mais reputados, faleceram antes de concluírem seus estudos. O projeto também teve de superar inevitáveis vicissitudes econômicas, distâncias geográficas e número insuficiente de reuniões entre os membros da equipe, sem contar com as restrições de ordem tecnológica (no início, a comunicação acontecia por meio de correio postal e faxes).

História: questionando o passado

Será que o próprio título da coleção e o reduzido espaço reservado aos povos indígenas justificam a crítica de que a obra está marcada por eurocentrismo? Depois de explicar que a denominação “América Latina” é simplesmente o qualificativo mais corrente, o presidente do Comitê de Redação acrescenta: “Convém não esquecer que esta História Geral foi escrita com o objetivo de ser divulgada. Sendo assim, a utilização de uma linguagem incapaz de traduzir a realidade acaba por isolar os conhecimentos em vez de facilitar sua difusão”. Na introdução da obra, também é chamada a atenção para o fato de que a redação da história das sociedades latino-americanas é historicamente acompanhada pela afirmação da hegemonia dos crioulos latino-americanos.

O presumível crioulocentrismo da História Geral da América Latina é enfatizado pelo equatoriano Enrique Ayala Mora, membro do Comitê de Redação, ao lembrar que a historiografia se limita a traduzir a situação concreta. Em seu entender, a carência de estudos elaborados por experts indígenas sobre a história dos respectivos povos e a ausência ainda mais notória de pesquisas sobre as sociedades afro-americanas empreendidas por seus próprios membros têm a ver com a realidade que, aliás, é sublinhada na obra. “Sabíamos desde o início que um espaço desproporcionado seria atribuído à história mestiça, considerando a carência de fontes de informação sobre as sociedades autóctones”, explica Mora. “Assim, por mais criticável que possa ser tal situação, esta obra culmina em uma história da continuidade crioula na América Latina pelo simples fato de não existirem outras abordagens historiográficas escritas sobre a realidade latino-americana. Esta História Geral, no entanto, traz esclarecimentos sobre a situação mais recente dos povos indígenas e afro-americanos.”

Segundo o historiador equatoriano, o fato de ter dedicado um volume ao período pré-colombiano e os oito restantes à época posterior à chegada dos europeus não deveria ser interpretado como uma tendência em atribuir importância demais ao mundo crioulo. “As questões amplificam-se à medida que nos aproximamos do presente. Por exemplo, reservamos apenas dois volumes ao período colonial e quatro ao período republicano, diz ele. “Cada um dos volumes relativos ao período colonial abrange mais de 100 anos, enquanto a duração de estudo de cada volume do período republicano é, em média, de 60 anos. O volume dedicado aos povos pré-colombianos, por sua vez, abrange dois milênios. A História é um questionamento do passado.”

Em vez de se preocupar com o número de volumes dedicados à história dos povos indígenas, ele opina que o essencial consiste em conhecer os volumes desta História Geral abordando o período posterior à conquista. Eles também fazem menção às populações indígenas que ainda vivem no continente americano. "A presença dos povos autóctones é importante em vários volumes e mais limitada em outros. Essa situação se deve especialmente à ausência de trabalhos de pesquisa a respeito desse assunto. De acordo com a regra adotada, porém, os autores foram levados a abordar temas cujo estudo ainda não havia sido empreendido ou o foi de forma precária."



Espírito pan-americano

Pode-se dizer que a redação desta história contribuiu para a formação de historiadores latino-americanos “generalistas”. “Antes, contávamos com monografias nacionais ou, na melhor das hipóteses, de estudos comparativos que incidiam sobre dois ou três países”, explica Ayala Mora. “Os historiadores têm tendência a evitar os temas gerais, preferindo estudar questões específicas. Por exemplo, a extração de minério em Potosí (Bolívia), no século XVII. Pois não foi nada fácil encontrar um historiador para escrever sobre a industrialização em todo o continente, entre 1880 e 1930.” Assim, a obra teve o mérito de desempenhar um papel de “escola”,ao sensibilizar historiadores para assuntos latino-americanos, incentivando-os a empreender pesquisas sobre processos comuns aos países do continente.

Para concluir, o historiador equatoriano destaca outro aspecto importante da obra: “Ela serve de eco às aspirações pan-americanistas, atualmente na moda em alguns países da América Latina”. Ele também evoca a existência centenária destas aspirações: “Já em 1781, com a rebelião indígena de Tupac Katari no território da atual Bolívia, surgia a afirmação de uma identidade autóctone peculiar que se concretizaria no momento das independências. O interesse por uma história latino-americana comum será fortalecido pelas pretensões integracionistas em alta nos anos 60 entre os economistas da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) e os teóricos da dependência, entre eles o futuro presidente brasileiro [1995-2002], Fernando Henrique Cardoso”.

Niels Boel, jornalista dinamarquês. Os depoimentos de Germán Carrera Damas e de Enrique Ayala Mora, respectivamente presidente e membro do Comitê de Redação da História Geral da América Latina, foram registrados na Venezuela e no Equador.

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